Autora de best-seller feminista fala sobre estupro no Rio de Janeiro


“A realidade é que esses crimes ocorrem todos os dias, em todos os lugares do mundo, e esses crimes nos ensinam que homens, muito frequentemente, agem de forma desumana contra a mulher”, fala a escritora Roxane Gay sobre o caso da jovem de 16 anos que foi estuprada no Rio de Janeiro. Nesta entrevista, a autora de Má Feminista também comenta sobre o machismo nas redes sociais e em Hollywood

Por Maria Fernanda Rodrigues
  Foto: Jay Grabiec | DIV

Maria Fernanda Rodrigues

Roxane Gay, 41, é escritora, professora universitária em Indiana e feminista. Mas uma “má feminista”, como se apresenta. Sonha com o closet cheio de sapatos e vestidos. Já disse muitas vezes que preto é sua cor preferida, mas gosta mesmo é de rosa. Repudia letras ofensivas de música que mostram a mulher como um objeto, como uma conquista do homem, mas se pega dançando essas mesmas músicas. Quer ser independente, e encontrar alguém em casa quando chegar. Talvez ter filhos. Uma mulher imperfeita, contraditória, humana e muito firme em seus princípios.

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Ficcionista e ensaísta americana de origem haitiana, ela ganhou destaque por sua defesa de assuntos como igualdade de gênero e de raça e respeito ao outro ao publicar artigos sobre esses temas em diversos veículos – hoje, é colunista do Guardian. E conquistou o grande público quando lançou, em 2014, Má Feminista. Best-seller internacional, a obra chega às livrarias brasileiras pela Novo Século no momento em que as mulheres protestam país afora contra o machismo e a cultura do estupro, quando o presidente interino Michel Temer escolhe para a Secretaria de Políticas para Mulheres Fátima Pelaes, que já disse ser contrária ao aborto mesmo no caso permitido por lei, depois de um estupro, e depois que uma adolescente de 16 anos foi brutalmente estuprada por vários homens – um crime transmitido pela internet que chocou o País.

“Fiquei horrorizada”, disse Roxane Gay ao Estado,

sobre o caso brasileiro que, ela diz, em nada se difere do que aborda no ensaio A linguagem negligente da violência sexual – o de uma criança de 11 anos estuprada por 18 homens em Cleveland, nos Estados Unidos, também filmado. “Este é o futuro. O indizível agora é televisionado”, ela escreve. O alvo de sua crítica, depois, claro, da barbaridade, foi uma matéria do New York Times que falava sobre como a cidade ficou chocada com o crime, como os meninos não poderiam voltar à escola, que criticava as roupas da menina e questionava o paradeiro da mãe na hora do abuso – não o do pai. “Poucas palavras foram dedicadas à menina, à criança. Tinha 11 anos e seu corpo foi dilacerado, não uma cidade. Foi destruída a vida de uma menina de 11 anos, não a dos homens que a estupraram. É difícil imaginar como alguém pode perder de vista esse fato.”

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Seus textos não abordam apenas questões externas, discussões sobre feminismo e racismo (e, aqui, a tradução peca ao tentar acompanhar o original, optando por termos, primeiro entre aspas e depois sem as aspas, já não mais aceitáveis ao se referir aos negros). Ou análises de produtos culturais – ela fala de filmes sobre escravidão a Cinquenta Tons de Cinza, passando por seriados de tevê que descobriram que o estupro dá audiência. Gay fala muito de si, e de um caso particular ocorrido em sua adolescência. Sua história de abuso vai se insinuando em diversos ensaios, como flashes daquela tarde em que fez um passeio de bicicleta com o namorado e deu de cara com uma grande turma do colégio – um encontro organizado pelo rapaz e que deixou marcas profundas e uma forte compulsão por comida, por estragar o corpo, sua imagem. Esse assunto será mais profundamente tratado em Hunger, seu próximo livro.

Gay conta que resistiu ao feminismo no final de sua adolescência e no decorrer dos seus 20 e poucos porque temia que ele não a permitisse ser a confusão em forma de mulher que ela sabia ser. Diz, ainda, que durante anos pensou que não se encaixava no movimento por ser uma mulher negra e que se identificou com lésbicas em diferentes momentos da vida – e “porque ele, historicamente, tem investido no aprimoramento da vida de mulheres heterossexuais brancas, em detrimento de todas as outras”. Mas foi o feminismo que a ajudou a acreditar que sua voz tinha importância. Encontrou, então, sua forma, sua linguagem. “Tento manter meu feminismo em um nível máximo de simplificação.”

Você se apresenta como uma má feminista. Qual é o seu ideal de feminismo?

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Não há um ideal de feminismo porque é um movimento alimentado por seres humanos. Mas acredito que todos devemos ser feministas, uma espécie de configuração padrão da humanidade. E, idealmente, as feministas deveriam estar comprometidas com a melhoria da vida das mulheres ao redor do mundo. Isso inclui entender que não somos apenas mulheres, que habitamos múltiplas identidades que abarcam raça/etnia, sexualidade, espiritualidade, habilidade, classe, etc. E devemos pensar em liberdade reprodutiva, no fim do assédio sexual e da violência, em paridade salarial, licença maternidade, creche subsidiada e por aí vai.

Houve alguma melhora na situação da mulher, mas, como você diz, estar melhor não é suficientemente bom. Estamos nos contentando com pouco? Que ações ainda podem mudar o status quo?

A situação da mulher realmente melhorou nos últimos 100 anos, mas não o suficiente. Sou grata pelos avanços conquistados no que diz respeito aos direitos das mulheres. A gratidão e a consciência de que ainda há muito o que ser feito podem coexistir. Para mudar o status quo, mais pessoas precisam reconhecer que as mulheres são humanas, e tão merecedoras de liberdade quanto os homens.

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Uma jovem de 16 anos foi brutalmente abusada no Rio de Janeiro no último fim de semana. Tudo foi filmado e compartilhado. Além disso, entre janeiro e abril, houve uma média de 13 estupros por dia na cidade, segundo dados da polícia. Como viu esse crime? O que esses recorrentes estupros, coletivos ou não, ensinam sobre nossa sociedade, origem, presente e futuro? E no que o caso ocorrido em Cleveland, no Rio ou em cidades indianas diferem?

Fiquei horrorizada com a notícia do estupro coletivo no Rio. A realidade é que esses tipos de crimes ocorrem todos os dias, em todos os lugares do mundo, e esses crimes nos ensinam que homens, muito frequentemente, agem de forma desumana contra a mulher. É impensável que tantos homens podem se envolver nesse tipo de violação, e lá estão eles. Isso não me deixa otimista com relação ao futuro, mas a falta de esperança não leva a lugar nenhum. E não há absolutamente nenhuma diferença entre o que ocorreu em Cleveland, no Brasil ou na Índia.

Qual é o papel da família e da escola na prevenção de casos como esse e de discriminação de um modo geral?

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Escolas e famílias podem ensinar meninos e meninas sobre consentimento. Podemos ter mais educação sexual e famílias que queiram falar, de forma apropriada, para as diferentes idades, sobre sexo e sexualidade. Assim, homens aprendem que o estupro é inaceitável e mulheres aprendem que elas podem dizer “não”. E aprendem que, se forem estupradas, a culpa não é delas. A vergonha pertence ao homem que se atreve a cometer um crime como esse.

Quando algo chocante como esse é noticiado, as pessoas correm para as redes sociais, usam um filtro especial para suas fotos do perfil para provar que são contra ou que apoiam determinada questão. O debate ocorre ali. Há concordância e muita briga. As redes sociais são, de alguma forma, eficazes no debate, na busca por uma solução, na solução em si?

As redes sociais certamente criam uma maior consciência e espaço de debate. Ainda estamos tentando descobrir como transformar essa consciência e indignação em mudança.

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Ainda sobre as redes sociais, parece que não há mais nenhum filtro e muita gente se sente confortável em demonstrar o quanto despreza as mulheres, os gays, os negros. E seus insultos encontram eco. Isso é visto também nos governos, com bancadas cada vez mais conservadoras dominando e brecando debates como o da legalização do aborto. Na última terça, o presidente interino Michel Temer anunciou uma mulher que já havia se posicionado contra o aborto, mesmo no caso previsto pela lei, como a nova secretária de Políticas para Mulheres. Qual o perigo disso?

Há, ao mesmo tempo, o lado bom e o lado ruim de as pessoas estarem sem filtro (para o bem e para o mal) na internet. O lado bom é que isso nos faz lembrar de quanto trabalho temos pela frente no sentido de combater a intolerância de qualquer tipo. Isso nos mostra quem as pessoas realmente são em vez de quem eles frequentemente fingem ser. O lado ruim, claro, é que dói muito ver esse ódio cego. Quanto aos políticos, penso que eles podem ter a opinião que quiserem, mas é irritante e corta o coração saber que ela considera tão pouco a vida das mulheres. Sua perspectiva é perigosa.

Por falar em política, como Donald Trump chegou aonde está? Como seria um país comandado por ele?

Donald Trump é uma criança petulante fazendo birra para quem quiser ver. Ele é todo id e permite que as pessoas também sejam assim. É um pesadelo acompanhar, de verdade.

O que mais a choca quando o assunto é raça e gênero?

Eu ainda fico surpresa com o fato de pessoas odiarem outras pessoas pelo que elas são.

As atrizes Patricia Arquette, Jennifer Lawrence, Gillian Anderson e Robin Wright protestaram recentemente contra o fato de receberem menores salários do que seus colegas atores. No último Oscar, criticou-se a pouca representação da mulher nos filmes concorrentes e a ausência de mulheres nas principais categorias da premiação – assim como a ausência de negros. Como Hollywood ajuda a reforçar a tese da mulher como ser inferior – seja em suas produções ou na relação com seus atores?

O que acontece em Hollywood é apenas um reflexo do mundo como um todo. Mas eles têm um alcance tão grande e longínquo que fazem a discriminação contra a mulher parecer normal.

Você diz que escrever é um ato político, e que é mais barato que terapia e drogas. O que a faz escrever? Que história quer contar?

Escrevo porque amo fazer isso. Eu me sinto mais como eu mesma quando estou colocando palavras numa página e explorando as ideias que me interessam. Quero escrever histórias que sejam inteligentes, engajadas e até divertidas. Eu nunca me imporia limites. Tudo é possível na escrita.

Seu trauma se insinua em vários dos ensaios e em um deles você é mais explícita. Um dia ele melhora? De que forma voltará a esse assunto em sua nova obra?

Melhora sim, embora eu não acredite que possamos apagar o passado. Pelo menos eu não posso, mas gostaria de poder. Meu novo livro, Hunger, é todo sobre o que aconteceu comigo e sobre as consequências que ainda estou vivendo ao focar no meu corpo e me tornar obesa.

Você escreve que está sempre em busca de um final feliz. Você é uma pessoa otimista? Acredita que haverá dias melhores para além da ficção?

Tento ter esperança. Tenho mais sucesso em alguns dias e não em outros. Tento sempre acreditar que dias melhores virão ou então não haveria pelo que trabalhar. Não haveria por que viver.

  Foto: Jay Grabiec | DIV

Maria Fernanda Rodrigues

Roxane Gay, 41, é escritora, professora universitária em Indiana e feminista. Mas uma “má feminista”, como se apresenta. Sonha com o closet cheio de sapatos e vestidos. Já disse muitas vezes que preto é sua cor preferida, mas gosta mesmo é de rosa. Repudia letras ofensivas de música que mostram a mulher como um objeto, como uma conquista do homem, mas se pega dançando essas mesmas músicas. Quer ser independente, e encontrar alguém em casa quando chegar. Talvez ter filhos. Uma mulher imperfeita, contraditória, humana e muito firme em seus princípios.

Ficcionista e ensaísta americana de origem haitiana, ela ganhou destaque por sua defesa de assuntos como igualdade de gênero e de raça e respeito ao outro ao publicar artigos sobre esses temas em diversos veículos – hoje, é colunista do Guardian. E conquistou o grande público quando lançou, em 2014, Má Feminista. Best-seller internacional, a obra chega às livrarias brasileiras pela Novo Século no momento em que as mulheres protestam país afora contra o machismo e a cultura do estupro, quando o presidente interino Michel Temer escolhe para a Secretaria de Políticas para Mulheres Fátima Pelaes, que já disse ser contrária ao aborto mesmo no caso permitido por lei, depois de um estupro, e depois que uma adolescente de 16 anos foi brutalmente estuprada por vários homens – um crime transmitido pela internet que chocou o País.

“Fiquei horrorizada”, disse Roxane Gay ao Estado,

sobre o caso brasileiro que, ela diz, em nada se difere do que aborda no ensaio A linguagem negligente da violência sexual – o de uma criança de 11 anos estuprada por 18 homens em Cleveland, nos Estados Unidos, também filmado. “Este é o futuro. O indizível agora é televisionado”, ela escreve. O alvo de sua crítica, depois, claro, da barbaridade, foi uma matéria do New York Times que falava sobre como a cidade ficou chocada com o crime, como os meninos não poderiam voltar à escola, que criticava as roupas da menina e questionava o paradeiro da mãe na hora do abuso – não o do pai. “Poucas palavras foram dedicadas à menina, à criança. Tinha 11 anos e seu corpo foi dilacerado, não uma cidade. Foi destruída a vida de uma menina de 11 anos, não a dos homens que a estupraram. É difícil imaginar como alguém pode perder de vista esse fato.”

Seus textos não abordam apenas questões externas, discussões sobre feminismo e racismo (e, aqui, a tradução peca ao tentar acompanhar o original, optando por termos, primeiro entre aspas e depois sem as aspas, já não mais aceitáveis ao se referir aos negros). Ou análises de produtos culturais – ela fala de filmes sobre escravidão a Cinquenta Tons de Cinza, passando por seriados de tevê que descobriram que o estupro dá audiência. Gay fala muito de si, e de um caso particular ocorrido em sua adolescência. Sua história de abuso vai se insinuando em diversos ensaios, como flashes daquela tarde em que fez um passeio de bicicleta com o namorado e deu de cara com uma grande turma do colégio – um encontro organizado pelo rapaz e que deixou marcas profundas e uma forte compulsão por comida, por estragar o corpo, sua imagem. Esse assunto será mais profundamente tratado em Hunger, seu próximo livro.

Gay conta que resistiu ao feminismo no final de sua adolescência e no decorrer dos seus 20 e poucos porque temia que ele não a permitisse ser a confusão em forma de mulher que ela sabia ser. Diz, ainda, que durante anos pensou que não se encaixava no movimento por ser uma mulher negra e que se identificou com lésbicas em diferentes momentos da vida – e “porque ele, historicamente, tem investido no aprimoramento da vida de mulheres heterossexuais brancas, em detrimento de todas as outras”. Mas foi o feminismo que a ajudou a acreditar que sua voz tinha importância. Encontrou, então, sua forma, sua linguagem. “Tento manter meu feminismo em um nível máximo de simplificação.”

Você se apresenta como uma má feminista. Qual é o seu ideal de feminismo?

Não há um ideal de feminismo porque é um movimento alimentado por seres humanos. Mas acredito que todos devemos ser feministas, uma espécie de configuração padrão da humanidade. E, idealmente, as feministas deveriam estar comprometidas com a melhoria da vida das mulheres ao redor do mundo. Isso inclui entender que não somos apenas mulheres, que habitamos múltiplas identidades que abarcam raça/etnia, sexualidade, espiritualidade, habilidade, classe, etc. E devemos pensar em liberdade reprodutiva, no fim do assédio sexual e da violência, em paridade salarial, licença maternidade, creche subsidiada e por aí vai.

Houve alguma melhora na situação da mulher, mas, como você diz, estar melhor não é suficientemente bom. Estamos nos contentando com pouco? Que ações ainda podem mudar o status quo?

A situação da mulher realmente melhorou nos últimos 100 anos, mas não o suficiente. Sou grata pelos avanços conquistados no que diz respeito aos direitos das mulheres. A gratidão e a consciência de que ainda há muito o que ser feito podem coexistir. Para mudar o status quo, mais pessoas precisam reconhecer que as mulheres são humanas, e tão merecedoras de liberdade quanto os homens.

Uma jovem de 16 anos foi brutalmente abusada no Rio de Janeiro no último fim de semana. Tudo foi filmado e compartilhado. Além disso, entre janeiro e abril, houve uma média de 13 estupros por dia na cidade, segundo dados da polícia. Como viu esse crime? O que esses recorrentes estupros, coletivos ou não, ensinam sobre nossa sociedade, origem, presente e futuro? E no que o caso ocorrido em Cleveland, no Rio ou em cidades indianas diferem?

Fiquei horrorizada com a notícia do estupro coletivo no Rio. A realidade é que esses tipos de crimes ocorrem todos os dias, em todos os lugares do mundo, e esses crimes nos ensinam que homens, muito frequentemente, agem de forma desumana contra a mulher. É impensável que tantos homens podem se envolver nesse tipo de violação, e lá estão eles. Isso não me deixa otimista com relação ao futuro, mas a falta de esperança não leva a lugar nenhum. E não há absolutamente nenhuma diferença entre o que ocorreu em Cleveland, no Brasil ou na Índia.

Qual é o papel da família e da escola na prevenção de casos como esse e de discriminação de um modo geral?

Escolas e famílias podem ensinar meninos e meninas sobre consentimento. Podemos ter mais educação sexual e famílias que queiram falar, de forma apropriada, para as diferentes idades, sobre sexo e sexualidade. Assim, homens aprendem que o estupro é inaceitável e mulheres aprendem que elas podem dizer “não”. E aprendem que, se forem estupradas, a culpa não é delas. A vergonha pertence ao homem que se atreve a cometer um crime como esse.

Quando algo chocante como esse é noticiado, as pessoas correm para as redes sociais, usam um filtro especial para suas fotos do perfil para provar que são contra ou que apoiam determinada questão. O debate ocorre ali. Há concordância e muita briga. As redes sociais são, de alguma forma, eficazes no debate, na busca por uma solução, na solução em si?

As redes sociais certamente criam uma maior consciência e espaço de debate. Ainda estamos tentando descobrir como transformar essa consciência e indignação em mudança.

Ainda sobre as redes sociais, parece que não há mais nenhum filtro e muita gente se sente confortável em demonstrar o quanto despreza as mulheres, os gays, os negros. E seus insultos encontram eco. Isso é visto também nos governos, com bancadas cada vez mais conservadoras dominando e brecando debates como o da legalização do aborto. Na última terça, o presidente interino Michel Temer anunciou uma mulher que já havia se posicionado contra o aborto, mesmo no caso previsto pela lei, como a nova secretária de Políticas para Mulheres. Qual o perigo disso?

Há, ao mesmo tempo, o lado bom e o lado ruim de as pessoas estarem sem filtro (para o bem e para o mal) na internet. O lado bom é que isso nos faz lembrar de quanto trabalho temos pela frente no sentido de combater a intolerância de qualquer tipo. Isso nos mostra quem as pessoas realmente são em vez de quem eles frequentemente fingem ser. O lado ruim, claro, é que dói muito ver esse ódio cego. Quanto aos políticos, penso que eles podem ter a opinião que quiserem, mas é irritante e corta o coração saber que ela considera tão pouco a vida das mulheres. Sua perspectiva é perigosa.

Por falar em política, como Donald Trump chegou aonde está? Como seria um país comandado por ele?

Donald Trump é uma criança petulante fazendo birra para quem quiser ver. Ele é todo id e permite que as pessoas também sejam assim. É um pesadelo acompanhar, de verdade.

O que mais a choca quando o assunto é raça e gênero?

Eu ainda fico surpresa com o fato de pessoas odiarem outras pessoas pelo que elas são.

As atrizes Patricia Arquette, Jennifer Lawrence, Gillian Anderson e Robin Wright protestaram recentemente contra o fato de receberem menores salários do que seus colegas atores. No último Oscar, criticou-se a pouca representação da mulher nos filmes concorrentes e a ausência de mulheres nas principais categorias da premiação – assim como a ausência de negros. Como Hollywood ajuda a reforçar a tese da mulher como ser inferior – seja em suas produções ou na relação com seus atores?

O que acontece em Hollywood é apenas um reflexo do mundo como um todo. Mas eles têm um alcance tão grande e longínquo que fazem a discriminação contra a mulher parecer normal.

Você diz que escrever é um ato político, e que é mais barato que terapia e drogas. O que a faz escrever? Que história quer contar?

Escrevo porque amo fazer isso. Eu me sinto mais como eu mesma quando estou colocando palavras numa página e explorando as ideias que me interessam. Quero escrever histórias que sejam inteligentes, engajadas e até divertidas. Eu nunca me imporia limites. Tudo é possível na escrita.

Seu trauma se insinua em vários dos ensaios e em um deles você é mais explícita. Um dia ele melhora? De que forma voltará a esse assunto em sua nova obra?

Melhora sim, embora eu não acredite que possamos apagar o passado. Pelo menos eu não posso, mas gostaria de poder. Meu novo livro, Hunger, é todo sobre o que aconteceu comigo e sobre as consequências que ainda estou vivendo ao focar no meu corpo e me tornar obesa.

Você escreve que está sempre em busca de um final feliz. Você é uma pessoa otimista? Acredita que haverá dias melhores para além da ficção?

Tento ter esperança. Tenho mais sucesso em alguns dias e não em outros. Tento sempre acreditar que dias melhores virão ou então não haveria pelo que trabalhar. Não haveria por que viver.

  Foto: Jay Grabiec | DIV

Maria Fernanda Rodrigues

Roxane Gay, 41, é escritora, professora universitária em Indiana e feminista. Mas uma “má feminista”, como se apresenta. Sonha com o closet cheio de sapatos e vestidos. Já disse muitas vezes que preto é sua cor preferida, mas gosta mesmo é de rosa. Repudia letras ofensivas de música que mostram a mulher como um objeto, como uma conquista do homem, mas se pega dançando essas mesmas músicas. Quer ser independente, e encontrar alguém em casa quando chegar. Talvez ter filhos. Uma mulher imperfeita, contraditória, humana e muito firme em seus princípios.

Ficcionista e ensaísta americana de origem haitiana, ela ganhou destaque por sua defesa de assuntos como igualdade de gênero e de raça e respeito ao outro ao publicar artigos sobre esses temas em diversos veículos – hoje, é colunista do Guardian. E conquistou o grande público quando lançou, em 2014, Má Feminista. Best-seller internacional, a obra chega às livrarias brasileiras pela Novo Século no momento em que as mulheres protestam país afora contra o machismo e a cultura do estupro, quando o presidente interino Michel Temer escolhe para a Secretaria de Políticas para Mulheres Fátima Pelaes, que já disse ser contrária ao aborto mesmo no caso permitido por lei, depois de um estupro, e depois que uma adolescente de 16 anos foi brutalmente estuprada por vários homens – um crime transmitido pela internet que chocou o País.

“Fiquei horrorizada”, disse Roxane Gay ao Estado,

sobre o caso brasileiro que, ela diz, em nada se difere do que aborda no ensaio A linguagem negligente da violência sexual – o de uma criança de 11 anos estuprada por 18 homens em Cleveland, nos Estados Unidos, também filmado. “Este é o futuro. O indizível agora é televisionado”, ela escreve. O alvo de sua crítica, depois, claro, da barbaridade, foi uma matéria do New York Times que falava sobre como a cidade ficou chocada com o crime, como os meninos não poderiam voltar à escola, que criticava as roupas da menina e questionava o paradeiro da mãe na hora do abuso – não o do pai. “Poucas palavras foram dedicadas à menina, à criança. Tinha 11 anos e seu corpo foi dilacerado, não uma cidade. Foi destruída a vida de uma menina de 11 anos, não a dos homens que a estupraram. É difícil imaginar como alguém pode perder de vista esse fato.”

Seus textos não abordam apenas questões externas, discussões sobre feminismo e racismo (e, aqui, a tradução peca ao tentar acompanhar o original, optando por termos, primeiro entre aspas e depois sem as aspas, já não mais aceitáveis ao se referir aos negros). Ou análises de produtos culturais – ela fala de filmes sobre escravidão a Cinquenta Tons de Cinza, passando por seriados de tevê que descobriram que o estupro dá audiência. Gay fala muito de si, e de um caso particular ocorrido em sua adolescência. Sua história de abuso vai se insinuando em diversos ensaios, como flashes daquela tarde em que fez um passeio de bicicleta com o namorado e deu de cara com uma grande turma do colégio – um encontro organizado pelo rapaz e que deixou marcas profundas e uma forte compulsão por comida, por estragar o corpo, sua imagem. Esse assunto será mais profundamente tratado em Hunger, seu próximo livro.

Gay conta que resistiu ao feminismo no final de sua adolescência e no decorrer dos seus 20 e poucos porque temia que ele não a permitisse ser a confusão em forma de mulher que ela sabia ser. Diz, ainda, que durante anos pensou que não se encaixava no movimento por ser uma mulher negra e que se identificou com lésbicas em diferentes momentos da vida – e “porque ele, historicamente, tem investido no aprimoramento da vida de mulheres heterossexuais brancas, em detrimento de todas as outras”. Mas foi o feminismo que a ajudou a acreditar que sua voz tinha importância. Encontrou, então, sua forma, sua linguagem. “Tento manter meu feminismo em um nível máximo de simplificação.”

Você se apresenta como uma má feminista. Qual é o seu ideal de feminismo?

Não há um ideal de feminismo porque é um movimento alimentado por seres humanos. Mas acredito que todos devemos ser feministas, uma espécie de configuração padrão da humanidade. E, idealmente, as feministas deveriam estar comprometidas com a melhoria da vida das mulheres ao redor do mundo. Isso inclui entender que não somos apenas mulheres, que habitamos múltiplas identidades que abarcam raça/etnia, sexualidade, espiritualidade, habilidade, classe, etc. E devemos pensar em liberdade reprodutiva, no fim do assédio sexual e da violência, em paridade salarial, licença maternidade, creche subsidiada e por aí vai.

Houve alguma melhora na situação da mulher, mas, como você diz, estar melhor não é suficientemente bom. Estamos nos contentando com pouco? Que ações ainda podem mudar o status quo?

A situação da mulher realmente melhorou nos últimos 100 anos, mas não o suficiente. Sou grata pelos avanços conquistados no que diz respeito aos direitos das mulheres. A gratidão e a consciência de que ainda há muito o que ser feito podem coexistir. Para mudar o status quo, mais pessoas precisam reconhecer que as mulheres são humanas, e tão merecedoras de liberdade quanto os homens.

Uma jovem de 16 anos foi brutalmente abusada no Rio de Janeiro no último fim de semana. Tudo foi filmado e compartilhado. Além disso, entre janeiro e abril, houve uma média de 13 estupros por dia na cidade, segundo dados da polícia. Como viu esse crime? O que esses recorrentes estupros, coletivos ou não, ensinam sobre nossa sociedade, origem, presente e futuro? E no que o caso ocorrido em Cleveland, no Rio ou em cidades indianas diferem?

Fiquei horrorizada com a notícia do estupro coletivo no Rio. A realidade é que esses tipos de crimes ocorrem todos os dias, em todos os lugares do mundo, e esses crimes nos ensinam que homens, muito frequentemente, agem de forma desumana contra a mulher. É impensável que tantos homens podem se envolver nesse tipo de violação, e lá estão eles. Isso não me deixa otimista com relação ao futuro, mas a falta de esperança não leva a lugar nenhum. E não há absolutamente nenhuma diferença entre o que ocorreu em Cleveland, no Brasil ou na Índia.

Qual é o papel da família e da escola na prevenção de casos como esse e de discriminação de um modo geral?

Escolas e famílias podem ensinar meninos e meninas sobre consentimento. Podemos ter mais educação sexual e famílias que queiram falar, de forma apropriada, para as diferentes idades, sobre sexo e sexualidade. Assim, homens aprendem que o estupro é inaceitável e mulheres aprendem que elas podem dizer “não”. E aprendem que, se forem estupradas, a culpa não é delas. A vergonha pertence ao homem que se atreve a cometer um crime como esse.

Quando algo chocante como esse é noticiado, as pessoas correm para as redes sociais, usam um filtro especial para suas fotos do perfil para provar que são contra ou que apoiam determinada questão. O debate ocorre ali. Há concordância e muita briga. As redes sociais são, de alguma forma, eficazes no debate, na busca por uma solução, na solução em si?

As redes sociais certamente criam uma maior consciência e espaço de debate. Ainda estamos tentando descobrir como transformar essa consciência e indignação em mudança.

Ainda sobre as redes sociais, parece que não há mais nenhum filtro e muita gente se sente confortável em demonstrar o quanto despreza as mulheres, os gays, os negros. E seus insultos encontram eco. Isso é visto também nos governos, com bancadas cada vez mais conservadoras dominando e brecando debates como o da legalização do aborto. Na última terça, o presidente interino Michel Temer anunciou uma mulher que já havia se posicionado contra o aborto, mesmo no caso previsto pela lei, como a nova secretária de Políticas para Mulheres. Qual o perigo disso?

Há, ao mesmo tempo, o lado bom e o lado ruim de as pessoas estarem sem filtro (para o bem e para o mal) na internet. O lado bom é que isso nos faz lembrar de quanto trabalho temos pela frente no sentido de combater a intolerância de qualquer tipo. Isso nos mostra quem as pessoas realmente são em vez de quem eles frequentemente fingem ser. O lado ruim, claro, é que dói muito ver esse ódio cego. Quanto aos políticos, penso que eles podem ter a opinião que quiserem, mas é irritante e corta o coração saber que ela considera tão pouco a vida das mulheres. Sua perspectiva é perigosa.

Por falar em política, como Donald Trump chegou aonde está? Como seria um país comandado por ele?

Donald Trump é uma criança petulante fazendo birra para quem quiser ver. Ele é todo id e permite que as pessoas também sejam assim. É um pesadelo acompanhar, de verdade.

O que mais a choca quando o assunto é raça e gênero?

Eu ainda fico surpresa com o fato de pessoas odiarem outras pessoas pelo que elas são.

As atrizes Patricia Arquette, Jennifer Lawrence, Gillian Anderson e Robin Wright protestaram recentemente contra o fato de receberem menores salários do que seus colegas atores. No último Oscar, criticou-se a pouca representação da mulher nos filmes concorrentes e a ausência de mulheres nas principais categorias da premiação – assim como a ausência de negros. Como Hollywood ajuda a reforçar a tese da mulher como ser inferior – seja em suas produções ou na relação com seus atores?

O que acontece em Hollywood é apenas um reflexo do mundo como um todo. Mas eles têm um alcance tão grande e longínquo que fazem a discriminação contra a mulher parecer normal.

Você diz que escrever é um ato político, e que é mais barato que terapia e drogas. O que a faz escrever? Que história quer contar?

Escrevo porque amo fazer isso. Eu me sinto mais como eu mesma quando estou colocando palavras numa página e explorando as ideias que me interessam. Quero escrever histórias que sejam inteligentes, engajadas e até divertidas. Eu nunca me imporia limites. Tudo é possível na escrita.

Seu trauma se insinua em vários dos ensaios e em um deles você é mais explícita. Um dia ele melhora? De que forma voltará a esse assunto em sua nova obra?

Melhora sim, embora eu não acredite que possamos apagar o passado. Pelo menos eu não posso, mas gostaria de poder. Meu novo livro, Hunger, é todo sobre o que aconteceu comigo e sobre as consequências que ainda estou vivendo ao focar no meu corpo e me tornar obesa.

Você escreve que está sempre em busca de um final feliz. Você é uma pessoa otimista? Acredita que haverá dias melhores para além da ficção?

Tento ter esperança. Tenho mais sucesso em alguns dias e não em outros. Tento sempre acreditar que dias melhores virão ou então não haveria pelo que trabalhar. Não haveria por que viver.

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