Quando estava na faculdade, na década de 1970, me formei em literatura alemã, concentrando-me quase exclusivamente em Franz Kafka. Fiquei tão impressionada com os saltos fabulísticos dos textos mais curtos de Kafka que passei um semestre trabalhando em um artigo no qual analisava seus diários. Suas entradas, descobri, recaíam em três categorias: observação pura, observação transformada em invenção e invenção pura.
Era mais intrigada com as entradas da segunda categoria. Elas sempre começavam com algum tipo de observação – uma mulher no bonde, digamos, ou a expressão no rosto de um amigo – e logo se transformavam em fabulações. Um exemplo: em 30 de outubro de 1911, Kafka escreve sobre seu trato intestinal famosamente delicado, observando que “pela primeira vez sinto que meu estômago está saudável”.
Na frase seguinte, Kafka desliza para a invenção. Ele se imagina no açougue, enfiando “longos pedaços de costela não mordidos na boca”, comendo “lojas de delicatessen completamente vazias” e vendo “bombons se derramando sobre mim feito granizo”. Não apenas fiquei cativada pela forma repentina como ele mergulhava na sua experiência inventada, mas também silenciosamente comovida com a ideia de estar invadindo a vida interior de Kafka.
Acabei me tornando jornalista e durante quatro décadas me amarrei à primeira categoria de Kafka: observação pura. Essa intrigante segunda categoria estava estritamente fora dos limites. Não podia haver voos para o “e se” da história.
Então, cinco anos atrás, minha filha e eu estávamos fazendo uma viagem de bicicleta e, certa noite, durante o jantar, um dos guias descreveu um hóspede anterior que havia sido particularmente problemático. Nosso guia contou a história em apenas duas ou três frases, mas foi tão evocativo que minha filha se virou para mim e vocalizou o que eu estava pensando: “Isso vale um romance”.
Passei os três anos seguintes escrevendo um livro a partir dessa anedota puída. The Boys, meu primeiro romance depois de seis livros de não ficção e centenas de artigos para o New York Times, é produto da licença que concedi a mim mesma: inventar coisas.
Mesmo agora, depois de lançar meu romance para o mundo, acho difícil abalar a mentalidade de repórter que corre atrás dos fatos. Uma amiga veio jantar recentemente. Ela tinha acabado de ler o romance e estava ansiosa para discutir o enredo, as personagens, suas motivações, sua constituição psicológica. Comecei a me sentir desconfortável, responsável por seu investimento em pessoas que não existiam. Tive uma vontade repentina de me desculpar com ela, de confessar que eu, assim como Janet Cooke e Jayson Blair e outros repórteres que violaram a confiança do público com suas histórias falsas, tinha inventado aquelas pessoas e tudo sobre elas.
Para uma jornalista, recorrer à ficção é libertador, com certeza, e muitas pessoas fizeram a transição sem problemas. Anna Quindlen é um bom exemplo. Geraldine Brooks é outro. Mas escrever ficção também pode ser paralisante para uma repórter. Somos tiranizadas pelo que é verdadeiro, mas também protegidas por ele. O punho fechado dos fatos é uma espécie de refúgio. Quando recebe a liberdade da ficção – e, com ela, o que parece ser um número infinito de direções que uma história pode tomar – a jornalista pode perder o controle e sair dos trilhos: linguagem muito floreada, reviravoltas absurdas, centenas desprovidas de nuances.
Eu me vi particularmente suscetível à tentação de exagerar. Os tópicos que cobri como jornalista carecem de suspense intrínseco. Não escrevi nenhuma história sobre crime, nem narrei um drama de tribunal. Não é fácil trazer tensão narrativa para uma história sobre, digamos, as origens da internet ou o risco de quedas entre os idosos. Mas essa é a parte do desafio de que mais gosto: como fazer algo interessante com a história do amado instrumento de um pianista famoso, ou 150 anos na vida de uma casa na Alemanha, tudo isso dentro da limitação dos fatos? Como tornar esses tópicos interessantes o suficiente para incitar as pessoas a saber o que acontece a seguir?
No entanto, talvez paradoxalmente, as décadas que passei como jornalista me fizeram mais contida como escritora de ficção, não menos. Ou seja, encontro mais semelhanças do que diferenças entre escrever ficção e não ficção. Em ambas, a escolha da linguagem, das imagens e das metáforas é tão importante quanto o ritmo e o enredo. A única diferença fundamental é essa jornada para o “e se?”.
Várias vezes, enquanto escrevia The Boys, eu me lembrei da segunda categoria de Kafka: a passagem da observação para a invenção. Minha visita durante o encontro da faculdade de meu marido na Filadélfia a um museu de esquisitices médicas se tornou o local incomum para um casamento. Um cabo encontrado partido em dois durante um passeio de bicicleta que fiz na Itália se transformou em algo mais sinistro. Minha experiência aterrorizante de ver um homem tossindo no supermercado nas primeiras semanas da pandemia se transformou numa cena que avança a história de meu protagonista.
E como me impedi de vagar pelo terreno imprudente do frenesi linguístico, dos vilões de desenho animado e das tramas ultrajantes? Assim como quando estou pesquisando uma história de não ficção, primeiro fiz a maior parte da reportagem e depois sentei para escrever. Pesquisei a condição psicológica conhecida como reação de aniversário, na qual um aniversário desencadeia sentimentos enraizados em traumas de infância. Fui a um restaurante com jukeboxes; visitei uma casa na Filadélfia que pensei que seria perfeita para meus personagens principais e, em seguida, pedi um tour aos proprietários, que eu nunca tinha visto na vida. Perambulei pelo salão de exposições do Mütter Museum, o museu de esquisitices médicas. Sei que esse tipo de pesquisa básica é algo que os romancistas fazem o tempo todo, mas parecia especialmente importante nessa minha primeira tentativa de ficção.
Uma das lições mais valiosas que aprendi em meus anos escrevendo não ficção é escolher com cuidado, incluir apenas os detalhes e citações que impulsionam a história ou esclarecem um argumento maior. Na época em que os filmes eram lançados em DVD, estudei as discussões sobre as cenas deletadas, buscando insights sobre como um diretor decide o que cortar. Passagens inteiras são cortadas a torto e a direito quando os filmes são feitos, não porque as cenas não sejam boas, mas porque seu serviço à história é fraco ou foi realizado em outro lugar.
Ao escrever não ficção – sejam 1.500 ou 50.000 palavras – luto constantemente com essa pergunta: como cada detalhe ou citação serve à história? Com a ficção, a tarefa é duplamente exigente: não apenas suas palavras devem servir à narrativa, mas você deve estar sempre atenta a seus personagens e ao lugar deles na história. Parece óbvio, mas quando soltos, os jornalistas correm o risco de perder de vista essa regra simples.
Após aquele breve momento de pânico durante o jantar com minha amiga, relaxei ao reconhecer que durante a escrita do livro meus personagens haviam se tornado tão reais para mim quanto agora eram para ela. E, de certa forma, eles eram mais reais para mim do que qualquer pessoa sobre a qual escrevi como jornalista. Há um limite para o que posso saber sobre as pessoas que realmente existem. Quando se trata de minha própria invenção, sou onisciente. É uma sensação inebriante, que certamente inspira muitos romancistas a voltar para mais.
Katie Hafner é jornalista e autora. Ela é anfitriã e coprodutora executiva do podcast Lost Women of Science. Seu primeiro romance, The Boys, foi publicado em dezembro. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU