Literatura e mercado editorial

‘Guardar’, ‘O fim da vida’ e outros poemas: Leia textos de Antonio Cicero; veja vídeo


Poeta, letrista, ensaísta e filósofo, Antonio Cicero morreu nesta quarta-feira, 23, aos 79 anos; em 2012 ele veio ao ‘Estadão’ e leu poemas de ‘Porventura’

Por Maria Fernanda Rodrigues

Conheci Antonio Cicero em 2012, quando ele participou do Leituras Sabáticas, na TV Estadão. Ele veio para comentar o livro que estava lançando, Porventura (Record), sua volta à poesia depois de 10 anos sem publicar nada do gênero, e ler alguns poemas.

A ideia do programa, do caderno Sabático, era essa: o autor lendo seu próprio texto. Era especial. O angolano Pepetela veio (e desenhou um gatinho no meu livro, junto com sua dedicatória). A portuguesa Lídia Jorge também. Caetano Galindo, sensação naquele início de década por causa de sua tradução de Ulysses, leu trecho do texto cult de James Joyce.

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Poeta e ensaísta, Antonio Cicero lê poemas de seu recém-lançado Porventura, que marca sua volta ao gênero depois de 10 anos dedicando-se a ensaios filosóficos e letras de músicas

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Mas, sem saber, conheci Antonio Cicero nos anos 1980. Eu gostava de Marina. Lembro até hoje da loja de discos onde comprei Virgem.

Voltei a Porventura ontem, depois da notícia de sua morte - que comoveu amigos e o meio literário, e que me comoveu.

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Antonio Cicero em 10 de agosto de 2017, dia em em que foi eleito imortal da Academia Brasileira de Letras Foto: Fábio Motta/Estadão

Transcrevo alguns poemas de Cicero daquele livro. Mas, antes, leia, e ouça, Guardar, um de seus textos mais conhecidos.

Guardar

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Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. Em cofre não

se guarda coisa alguma. Em cofre perde-se a coisa à vista.

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto

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é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é,

velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é, estar por ela

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ou ser por ela.

Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro

Do que pássaros sem voos.

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Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, por isso se

declara e declama um poema:

Para guardá-lo:

Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:

Guarde o que quer que guarda um poema:

Por isso o lance do poema:

Por guardar-se o que se quer guardar.

Síntese

PAI MÃE

CÉU CHÃO

MÃE CÉU

PAI XÃO

Consegui

eis o que consegui:

tudo estava partido e então

juntei tudo em ti

toda minha fortuna

quase nada tudo muitas coisas

numa

só:

eu quis correr esse risco antes de virar

pó:

juntar tudo em ti:

toda joia todo pen drive todo cisco

tudo o que ganhei tudo o que perdi

meu corpo minha cabeça meu livro meu disco meu pânico meu tônico

meu endereço

eletrônico

meu número meu nome meu endereço

físico

meu túmulo meu berço

aquela aurora este crepúsculo

o mar o sol a noite a ilha

o meu opúsculo

meu futuro meu passado meu presente

meio aqui

e meio ausente

meu continente meu conteúdo

e além de todo o mundo

também tudo o que é imundo tudo

o medo e a esperança

algo que fica

algo que dança

o que sei o que ignoro

o que rio

e o que choro

toda paixão

todo meu ser

todo meu não

tudo estava perdido e aí

juntei tudo

em ti

O fim da vida

Conheci da humana lida

a sorte:

o único fim da vida

é a morte

e não há, depois da morte,

mais nada.

Eis o que torna esta vida

sagrada:

ela é tudo e o resto, nada.

Longe

A chuva forte, o resfriado

real ou fingido, e eis-me livre

da escola e solto no meu quarto,

nos lençóis, nos mares de Chipre

ou no salão de Ana Pavlovna

ou no de Alcínoo, nas cavernas

de Barabar ou sob a abóbada

de Xanadu; perplexo em Tebas

e pelas veredas ambíguas

do sertão do corpo da língua,

cada vez mais longe de escolas

e de peladas e de bolas

e de promessas de futuros,

é mesmo errático meu rumo.

Balanço

A infância não foi uma manhã de sol:

demorou vários séculos; e era pífia,

em geral, a companhia. Foi melhor,

em parte, a adolescência, pela delícia

do pressentimento da felicidade

na malícia, na molícia, na poesia,

no orgasmo; e pelos livros e amizades.

Um dia, apaixonado, encarei a minha

morte: e eis que ela não sustentou o olhar

e se esvaiu. Desde então é a morte alheia

que me abate. Tarde aprendi a gozar

a juventude, e já me ronda a suspeita

de que jamais serei plenamente adulto:

antes de sê-lo, serei velho. Que ao menos

os deuses façam felizes e maduros

Marcelo e um ou dois dos meus futuros versos.

Valeu

Vida, valeu.

Não te repetirei jamais

Conheci Antonio Cicero em 2012, quando ele participou do Leituras Sabáticas, na TV Estadão. Ele veio para comentar o livro que estava lançando, Porventura (Record), sua volta à poesia depois de 10 anos sem publicar nada do gênero, e ler alguns poemas.

A ideia do programa, do caderno Sabático, era essa: o autor lendo seu próprio texto. Era especial. O angolano Pepetela veio (e desenhou um gatinho no meu livro, junto com sua dedicatória). A portuguesa Lídia Jorge também. Caetano Galindo, sensação naquele início de década por causa de sua tradução de Ulysses, leu trecho do texto cult de James Joyce.

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Poeta e ensaísta, Antonio Cicero lê poemas de seu recém-lançado Porventura, que marca sua volta ao gênero depois de 10 anos dedicando-se a ensaios filosóficos e letras de músicas

Mas, sem saber, conheci Antonio Cicero nos anos 1980. Eu gostava de Marina. Lembro até hoje da loja de discos onde comprei Virgem.

Voltei a Porventura ontem, depois da notícia de sua morte - que comoveu amigos e o meio literário, e que me comoveu.

Antonio Cicero em 10 de agosto de 2017, dia em em que foi eleito imortal da Academia Brasileira de Letras Foto: Fábio Motta/Estadão

Transcrevo alguns poemas de Cicero daquele livro. Mas, antes, leia, e ouça, Guardar, um de seus textos mais conhecidos.

Guardar

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. Em cofre não

se guarda coisa alguma. Em cofre perde-se a coisa à vista.

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto

é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é,

velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é, estar por ela

ou ser por ela.

Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro

Do que pássaros sem voos.

Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, por isso se

declara e declama um poema:

Para guardá-lo:

Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:

Guarde o que quer que guarda um poema:

Por isso o lance do poema:

Por guardar-se o que se quer guardar.

Síntese

PAI MÃE

CÉU CHÃO

MÃE CÉU

PAI XÃO

Consegui

eis o que consegui:

tudo estava partido e então

juntei tudo em ti

toda minha fortuna

quase nada tudo muitas coisas

numa

só:

eu quis correr esse risco antes de virar

pó:

juntar tudo em ti:

toda joia todo pen drive todo cisco

tudo o que ganhei tudo o que perdi

meu corpo minha cabeça meu livro meu disco meu pânico meu tônico

meu endereço

eletrônico

meu número meu nome meu endereço

físico

meu túmulo meu berço

aquela aurora este crepúsculo

o mar o sol a noite a ilha

o meu opúsculo

meu futuro meu passado meu presente

meio aqui

e meio ausente

meu continente meu conteúdo

e além de todo o mundo

também tudo o que é imundo tudo

o medo e a esperança

algo que fica

algo que dança

o que sei o que ignoro

o que rio

e o que choro

toda paixão

todo meu ser

todo meu não

tudo estava perdido e aí

juntei tudo

em ti

O fim da vida

Conheci da humana lida

a sorte:

o único fim da vida

é a morte

e não há, depois da morte,

mais nada.

Eis o que torna esta vida

sagrada:

ela é tudo e o resto, nada.

Longe

A chuva forte, o resfriado

real ou fingido, e eis-me livre

da escola e solto no meu quarto,

nos lençóis, nos mares de Chipre

ou no salão de Ana Pavlovna

ou no de Alcínoo, nas cavernas

de Barabar ou sob a abóbada

de Xanadu; perplexo em Tebas

e pelas veredas ambíguas

do sertão do corpo da língua,

cada vez mais longe de escolas

e de peladas e de bolas

e de promessas de futuros,

é mesmo errático meu rumo.

Balanço

A infância não foi uma manhã de sol:

demorou vários séculos; e era pífia,

em geral, a companhia. Foi melhor,

em parte, a adolescência, pela delícia

do pressentimento da felicidade

na malícia, na molícia, na poesia,

no orgasmo; e pelos livros e amizades.

Um dia, apaixonado, encarei a minha

morte: e eis que ela não sustentou o olhar

e se esvaiu. Desde então é a morte alheia

que me abate. Tarde aprendi a gozar

a juventude, e já me ronda a suspeita

de que jamais serei plenamente adulto:

antes de sê-lo, serei velho. Que ao menos

os deuses façam felizes e maduros

Marcelo e um ou dois dos meus futuros versos.

Valeu

Vida, valeu.

Não te repetirei jamais

Conheci Antonio Cicero em 2012, quando ele participou do Leituras Sabáticas, na TV Estadão. Ele veio para comentar o livro que estava lançando, Porventura (Record), sua volta à poesia depois de 10 anos sem publicar nada do gênero, e ler alguns poemas.

A ideia do programa, do caderno Sabático, era essa: o autor lendo seu próprio texto. Era especial. O angolano Pepetela veio (e desenhou um gatinho no meu livro, junto com sua dedicatória). A portuguesa Lídia Jorge também. Caetano Galindo, sensação naquele início de década por causa de sua tradução de Ulysses, leu trecho do texto cult de James Joyce.

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Poeta e ensaísta, Antonio Cicero lê poemas de seu recém-lançado Porventura, que marca sua volta ao gênero depois de 10 anos dedicando-se a ensaios filosóficos e letras de músicas

Mas, sem saber, conheci Antonio Cicero nos anos 1980. Eu gostava de Marina. Lembro até hoje da loja de discos onde comprei Virgem.

Voltei a Porventura ontem, depois da notícia de sua morte - que comoveu amigos e o meio literário, e que me comoveu.

Antonio Cicero em 10 de agosto de 2017, dia em em que foi eleito imortal da Academia Brasileira de Letras Foto: Fábio Motta/Estadão

Transcrevo alguns poemas de Cicero daquele livro. Mas, antes, leia, e ouça, Guardar, um de seus textos mais conhecidos.

Guardar

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. Em cofre não

se guarda coisa alguma. Em cofre perde-se a coisa à vista.

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto

é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é,

velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é, estar por ela

ou ser por ela.

Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro

Do que pássaros sem voos.

Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, por isso se

declara e declama um poema:

Para guardá-lo:

Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:

Guarde o que quer que guarda um poema:

Por isso o lance do poema:

Por guardar-se o que se quer guardar.

Síntese

PAI MÃE

CÉU CHÃO

MÃE CÉU

PAI XÃO

Consegui

eis o que consegui:

tudo estava partido e então

juntei tudo em ti

toda minha fortuna

quase nada tudo muitas coisas

numa

só:

eu quis correr esse risco antes de virar

pó:

juntar tudo em ti:

toda joia todo pen drive todo cisco

tudo o que ganhei tudo o que perdi

meu corpo minha cabeça meu livro meu disco meu pânico meu tônico

meu endereço

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físico

meu túmulo meu berço

aquela aurora este crepúsculo

o mar o sol a noite a ilha

o meu opúsculo

meu futuro meu passado meu presente

meio aqui

e meio ausente

meu continente meu conteúdo

e além de todo o mundo

também tudo o que é imundo tudo

o medo e a esperança

algo que fica

algo que dança

o que sei o que ignoro

o que rio

e o que choro

toda paixão

todo meu ser

todo meu não

tudo estava perdido e aí

juntei tudo

em ti

O fim da vida

Conheci da humana lida

a sorte:

o único fim da vida

é a morte

e não há, depois da morte,

mais nada.

Eis o que torna esta vida

sagrada:

ela é tudo e o resto, nada.

Longe

A chuva forte, o resfriado

real ou fingido, e eis-me livre

da escola e solto no meu quarto,

nos lençóis, nos mares de Chipre

ou no salão de Ana Pavlovna

ou no de Alcínoo, nas cavernas

de Barabar ou sob a abóbada

de Xanadu; perplexo em Tebas

e pelas veredas ambíguas

do sertão do corpo da língua,

cada vez mais longe de escolas

e de peladas e de bolas

e de promessas de futuros,

é mesmo errático meu rumo.

Balanço

A infância não foi uma manhã de sol:

demorou vários séculos; e era pífia,

em geral, a companhia. Foi melhor,

em parte, a adolescência, pela delícia

do pressentimento da felicidade

na malícia, na molícia, na poesia,

no orgasmo; e pelos livros e amizades.

Um dia, apaixonado, encarei a minha

morte: e eis que ela não sustentou o olhar

e se esvaiu. Desde então é a morte alheia

que me abate. Tarde aprendi a gozar

a juventude, e já me ronda a suspeita

de que jamais serei plenamente adulto:

antes de sê-lo, serei velho. Que ao menos

os deuses façam felizes e maduros

Marcelo e um ou dois dos meus futuros versos.

Valeu

Vida, valeu.

Não te repetirei jamais

Conheci Antonio Cicero em 2012, quando ele participou do Leituras Sabáticas, na TV Estadão. Ele veio para comentar o livro que estava lançando, Porventura (Record), sua volta à poesia depois de 10 anos sem publicar nada do gênero, e ler alguns poemas.

A ideia do programa, do caderno Sabático, era essa: o autor lendo seu próprio texto. Era especial. O angolano Pepetela veio (e desenhou um gatinho no meu livro, junto com sua dedicatória). A portuguesa Lídia Jorge também. Caetano Galindo, sensação naquele início de década por causa de sua tradução de Ulysses, leu trecho do texto cult de James Joyce.

Seu navegador não suporta esse video.

Poeta e ensaísta, Antonio Cicero lê poemas de seu recém-lançado Porventura, que marca sua volta ao gênero depois de 10 anos dedicando-se a ensaios filosóficos e letras de músicas

Mas, sem saber, conheci Antonio Cicero nos anos 1980. Eu gostava de Marina. Lembro até hoje da loja de discos onde comprei Virgem.

Voltei a Porventura ontem, depois da notícia de sua morte - que comoveu amigos e o meio literário, e que me comoveu.

Antonio Cicero em 10 de agosto de 2017, dia em em que foi eleito imortal da Academia Brasileira de Letras Foto: Fábio Motta/Estadão

Transcrevo alguns poemas de Cicero daquele livro. Mas, antes, leia, e ouça, Guardar, um de seus textos mais conhecidos.

Guardar

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. Em cofre não

se guarda coisa alguma. Em cofre perde-se a coisa à vista.

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto

é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é,

velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é, estar por ela

ou ser por ela.

Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro

Do que pássaros sem voos.

Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, por isso se

declara e declama um poema:

Para guardá-lo:

Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:

Guarde o que quer que guarda um poema:

Por isso o lance do poema:

Por guardar-se o que se quer guardar.

Síntese

PAI MÃE

CÉU CHÃO

MÃE CÉU

PAI XÃO

Consegui

eis o que consegui:

tudo estava partido e então

juntei tudo em ti

toda minha fortuna

quase nada tudo muitas coisas

numa

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eu quis correr esse risco antes de virar

pó:

juntar tudo em ti:

toda joia todo pen drive todo cisco

tudo o que ganhei tudo o que perdi

meu corpo minha cabeça meu livro meu disco meu pânico meu tônico

meu endereço

eletrônico

meu número meu nome meu endereço

físico

meu túmulo meu berço

aquela aurora este crepúsculo

o mar o sol a noite a ilha

o meu opúsculo

meu futuro meu passado meu presente

meio aqui

e meio ausente

meu continente meu conteúdo

e além de todo o mundo

também tudo o que é imundo tudo

o medo e a esperança

algo que fica

algo que dança

o que sei o que ignoro

o que rio

e o que choro

toda paixão

todo meu ser

todo meu não

tudo estava perdido e aí

juntei tudo

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O fim da vida

Conheci da humana lida

a sorte:

o único fim da vida

é a morte

e não há, depois da morte,

mais nada.

Eis o que torna esta vida

sagrada:

ela é tudo e o resto, nada.

Longe

A chuva forte, o resfriado

real ou fingido, e eis-me livre

da escola e solto no meu quarto,

nos lençóis, nos mares de Chipre

ou no salão de Ana Pavlovna

ou no de Alcínoo, nas cavernas

de Barabar ou sob a abóbada

de Xanadu; perplexo em Tebas

e pelas veredas ambíguas

do sertão do corpo da língua,

cada vez mais longe de escolas

e de peladas e de bolas

e de promessas de futuros,

é mesmo errático meu rumo.

Balanço

A infância não foi uma manhã de sol:

demorou vários séculos; e era pífia,

em geral, a companhia. Foi melhor,

em parte, a adolescência, pela delícia

do pressentimento da felicidade

na malícia, na molícia, na poesia,

no orgasmo; e pelos livros e amizades.

Um dia, apaixonado, encarei a minha

morte: e eis que ela não sustentou o olhar

e se esvaiu. Desde então é a morte alheia

que me abate. Tarde aprendi a gozar

a juventude, e já me ronda a suspeita

de que jamais serei plenamente adulto:

antes de sê-lo, serei velho. Que ao menos

os deuses façam felizes e maduros

Marcelo e um ou dois dos meus futuros versos.

Valeu

Vida, valeu.

Não te repetirei jamais

Conheci Antonio Cicero em 2012, quando ele participou do Leituras Sabáticas, na TV Estadão. Ele veio para comentar o livro que estava lançando, Porventura (Record), sua volta à poesia depois de 10 anos sem publicar nada do gênero, e ler alguns poemas.

A ideia do programa, do caderno Sabático, era essa: o autor lendo seu próprio texto. Era especial. O angolano Pepetela veio (e desenhou um gatinho no meu livro, junto com sua dedicatória). A portuguesa Lídia Jorge também. Caetano Galindo, sensação naquele início de década por causa de sua tradução de Ulysses, leu trecho do texto cult de James Joyce.

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Poeta e ensaísta, Antonio Cicero lê poemas de seu recém-lançado Porventura, que marca sua volta ao gênero depois de 10 anos dedicando-se a ensaios filosóficos e letras de músicas

Mas, sem saber, conheci Antonio Cicero nos anos 1980. Eu gostava de Marina. Lembro até hoje da loja de discos onde comprei Virgem.

Voltei a Porventura ontem, depois da notícia de sua morte - que comoveu amigos e o meio literário, e que me comoveu.

Antonio Cicero em 10 de agosto de 2017, dia em em que foi eleito imortal da Academia Brasileira de Letras Foto: Fábio Motta/Estadão

Transcrevo alguns poemas de Cicero daquele livro. Mas, antes, leia, e ouça, Guardar, um de seus textos mais conhecidos.

Guardar

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. Em cofre não

se guarda coisa alguma. Em cofre perde-se a coisa à vista.

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto

é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é,

velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é, estar por ela

ou ser por ela.

Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro

Do que pássaros sem voos.

Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, por isso se

declara e declama um poema:

Para guardá-lo:

Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:

Guarde o que quer que guarda um poema:

Por isso o lance do poema:

Por guardar-se o que se quer guardar.

Síntese

PAI MÃE

CÉU CHÃO

MÃE CÉU

PAI XÃO

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eis o que consegui:

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juntei tudo em ti

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eu quis correr esse risco antes de virar

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meu corpo minha cabeça meu livro meu disco meu pânico meu tônico

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meu túmulo meu berço

aquela aurora este crepúsculo

o mar o sol a noite a ilha

o meu opúsculo

meu futuro meu passado meu presente

meio aqui

e meio ausente

meu continente meu conteúdo

e além de todo o mundo

também tudo o que é imundo tudo

o medo e a esperança

algo que fica

algo que dança

o que sei o que ignoro

o que rio

e o que choro

toda paixão

todo meu ser

todo meu não

tudo estava perdido e aí

juntei tudo

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O fim da vida

Conheci da humana lida

a sorte:

o único fim da vida

é a morte

e não há, depois da morte,

mais nada.

Eis o que torna esta vida

sagrada:

ela é tudo e o resto, nada.

Longe

A chuva forte, o resfriado

real ou fingido, e eis-me livre

da escola e solto no meu quarto,

nos lençóis, nos mares de Chipre

ou no salão de Ana Pavlovna

ou no de Alcínoo, nas cavernas

de Barabar ou sob a abóbada

de Xanadu; perplexo em Tebas

e pelas veredas ambíguas

do sertão do corpo da língua,

cada vez mais longe de escolas

e de peladas e de bolas

e de promessas de futuros,

é mesmo errático meu rumo.

Balanço

A infância não foi uma manhã de sol:

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em geral, a companhia. Foi melhor,

em parte, a adolescência, pela delícia

do pressentimento da felicidade

na malícia, na molícia, na poesia,

no orgasmo; e pelos livros e amizades.

Um dia, apaixonado, encarei a minha

morte: e eis que ela não sustentou o olhar

e se esvaiu. Desde então é a morte alheia

que me abate. Tarde aprendi a gozar

a juventude, e já me ronda a suspeita

de que jamais serei plenamente adulto:

antes de sê-lo, serei velho. Que ao menos

os deuses façam felizes e maduros

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