Como estátua tornada ainda mais sólida pelo tempo, Gertrude Stein se tornou uma efigie literária Aos olhos do pintor espanhol Pablo Picasso, é confidente e inspiração para retratos. Para o diretor Woody Allen, é uma peça encaixada entre tantos outros artistas da Geração Perdida de 1920 – representada pela atriz Kathy Bates no longa-metragem Meia-noite em Paris. Colecionadora de arte e anfitriã de encontros para figuras emblemáticas, ocupou salões ao lado de Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald e Ezra Pound. Ao se tornar ícone, a obra de Stein é relegada à função de ruído de fundo: embora tenha sido um dos grandes expoentes do movimento modernista e uma escritora extremamente prolífica, a obra de Stein é preterida em benefício de suas relações com outros escritores.
Quando Anne Carson faz referência à Gertrude Stein em Autobiografia do Vermelho, ela ilumina uma questão essencial: “Creia-me pela carne e por mim mesma”, teria dito a modernista. A sentença é o reflexo de uma vontade irreparável de alcançar o que há de mais profundo e legítimo – a essência do indivíduo, presente tanto em espírito quanto em matéria. Barriga ao Alto é um longo poema que, em sua estrutura dialógica e com um tom surpreendentemente erótico, cava até as estranhas do corpo e penetra os ossos. Trata-se de um texto genuinamente humano – que enxerga os cantos escuros do sujeito e atribui novos significados à sua expressão em palavras.
Em Barriga ao Alto, poucos de seus traços recuperam a poesia tradicional – há uma sinuosa curva que desvia o texto das expectativas para um poema convencional. Há vestígios e reminiscências de um esqueleto em versos. No entanto, não há uma métrica calculada ou um esquema de rimas definido. Ainda assim, poucos articularam-se tão bem com os artistas de sua época quanto Gertrude Stein: como modo de representação, escolhe algo que pode ser chamado de autenticamente modernista.
Debruça-se sobre o que há de mais ousado e drástico em termos de forma, evidenciado o seu interesse na plena radicalização do texto e na exploração das inúmeras possibilidades permitidas pela linguagem. As imagens são construídas e posicionadas como quebra-cabeças de encaixe inexato – a percepção de que sempre há algo faltando e impedindo que se alcance o panorama completo. As figuras possuem pontas e arestas afiadas, colidindo e se chocando, com um aspecto tão geométrico que retoma a estética cubista. Apesar do acabamento cortante e aguçado, ainda há estilhaços de uma musicalidade interrompida – tornada truncada graças às repetições constantes de palavras e expressões: barriga ao alto, barriga ao alto, barriga ao alto.
O poema é, antes de mais nada, uma conversa – com vozes misteriosas, imersas em uma névoa de incertezas e jamais nomeadas. Nada impede a tentativa de desvendá-las: as falas são facilmente identificadas como femininas e, encontrando o tom crítico e sagaz de Gertrude Stein entre elas, é possível perseguir o rastro de sua interlocutora até encontrar as sombras de Alice B. Toklas – sua companheira e também escritora. Não se trata de um diálogo sempre pacífico: as duas mulheres travam embates e há bruscas discordâncias, conflitos que equilibram palavras duras e secas com uma sutileza bastante apaixonada e, por vezes, floreada.
O erótico em Barriga ao Alto está, principalmente, na presença inescapável da corporalidade. As partes do corpo, mencionadas e repetidas com frequência, oscilam entre a concretude palpável e qualidades intangíveis e vagas. A barriga é, muitas vezes, só uma barriga: que pode ser observada em todos os seus movimentos e também passível de ser tocada com os dedos. A sua materialidade funciona como uma âncora no texto, prendendo-o ao real através de corpos que existiram em conjunto, interagiram e se misturaram. Neste contexto, Stein coloca luz sobre temas que costumavam ser invisíveis: o corpo feminino, seus contatos e suas respostas.
Em contrapartida, a barriga ao alto também representa uma abstração. O termo, utilizado com função e frequência de vírgulas e outros sinais de pontuação, aparece coberto de brumas e incertezas. Muitas vezes, não aponta para nenhum elemento concreto e existente na realidade partilhada pelas mulheres. Outras, adquire valor metafórico e comparativo: “A barriga ao alto é uma linguagem”, escrevera Stein. Uma ilha, um conjunto de camadas, uma repetição e, finalmente, “barriga ao alto significa eu”. Há muita intensidade, potência e beleza na equivalência entre corpo, linguagem e sujeito.
Barriga ao Alto é um poema essencialmente íntimo e que cede espaço aos desejos mais variados e profundos. Simultaneamente, abraça o universal – olha para o corpo, para as relações entre pessoas, para as línguas e os toques que partilham, além da individualidade que, em si, carrega um mundo próprio. Inconfundivelmente modernista, Gertrude Stein demonstra não só conhecimento e apreciação pelas artes, mas vontade de construí-las a partir de uma sensibilidade às fragilidades e singularidades humanas.
BARRIGA AO ALTO
GERTRUDE STEIN
TRADUÇÃO DE PATRÍCIA LINO
EDITORA: MACONDO
124 PÁGINAS R$ 47,50