Biografia aborda o lado 'czar' do presidente russo Vladimir Putin


Livro acompanha Putin da infância pobre em São Petersburgo aos quadros da KGB

Por Flávio Ricardo Vassoler

Desde o título da biografia política O Novo Czar: Ascensão e Reinado de Vladimir Putin (Editora Amarilys, tradução de Márcia Men), o jornalista norte-americano Steven Lee Myers procura dissecar as afinidades entre o longevo presidente da Federação Russa e a tradição antidemocrática e autoritária do país. Ao fim de seu quarto mandato presidencial, em 2024, Putin, então aos 72 anos, terá permanecido durante 20 anos no poder, superando o soviético Leonid Brejnev (1906-1982), que governou a União Soviética por 18 anos (de 1964 até sua morte). Entre 2008 e 2012, enquanto o primeiro-ministro/eminência parda Vladimir Putin (não) delegava o poder para o presidente(tampão) Dmítri Medvedev, realizou-se uma emenda constitucional para que o mandato presidencial passasse a durar 6 anos. 

+++Entrevistas de Vladimir Putin com Oliver Stone são compiladas em livro

O presidente da Rússia Vladimir Putin em um helicóptero Foto: Aleksey Nikolsky/Kremlin
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Myers acompanha a trajetória de Putin da infância pobre e rebelde em São Petersburgo até os quadros do onipotente KGB (Comitê de Segurança do Estado), em meio ao qual Putin chegou a atuar como agente secreto na Alemanha Oriental à época do colapso do bloco socialista; da fragmentação da União Soviética, que o acaba levando à burocracia municipal de São Petersburgo (e a uma série de contratos e parcerias público-privados bastante questionáveis), até o alto escalão moscovita encabeçado por Boris Iéltsin (1931-2007), o primeiro presidente democraticamente eleito pela então recém-refundada Federação Russa. 

+++Viagem de Joseph Roth à URSS faz pensar que Lenin é precursor de Trump

Quando chega o momento de Iéltsin deixar a presidência, no fim dos anos 1990, Myers nos explica que “a Rússia, após séculos de governo czarista e depois comunista, nunca tinha transferido democraticamente o poder político de um líder para outro. A personificação de poder era tão arraigada na cultura russa que isso parecia inconcebível. Mesmo em um estágio tão tardio, Iéltsin ainda brincava com a ideia de disputar a eleição. Embora já tivesse sido eleito duas vezes, a Nova Constituição do país, que limitava o presidente a dois mandatos consecutivos, havia entrado em vigor em 1993. Ele podia argumentar que, legalmente, sua reeleição em 1996 começara seu primeiro mandato, o que lhe permitiria disputar novamente em 2000, mas tudo isso era fantasioso. Iéltsin já estava com 68 anos, cada vez mais frágil e politicamente incapacitado. Ele pensou bastante em como assegurar uma transferência de poder que ao mesmo tempo preservasse a transição política do governo soviético e o protegesse dos expurgos vingadores que se seguiram à remoção de todos os líderes desde os Románov”. 

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+++Relação entre Donald Trump e a máfia russa é explorada em livro

Ao ser eleito presidente sob os auspícios de Iéltsin, Putin assume o poder em meados do ano 2000 e blinda o padrinho de quaisquer investigações político-judiciais – na Rússia, o sistema político-econômico historicamente assentado sobre a dinâmica do tráfico de influências, do favorecimento de grupos de interesse e da corrupção tende a lançar mão do Judiciário, casuisticamente, para perseguir adversários/réus que se locupletam tanto quanto seus acusadores. 

São recorrentes e legítimas as críticas ao governo autoritário de Putin, em meio ao qual há pouca transparência nas decisões e gastos públicos; a pantomima de separação dos poderes tende a transformar o Legislativo e o Judiciário em correias de transmissão do Executivo; o Estado controla a mídia televisiva e radiofônica e, cada vez mais, aperta o cerco contra a internet; a Igreja Ortodoxa e sua liturgia, que nunca se separaram, efetivamente, das entranhas do poder – tanto para canonizar czares quanto para abençoar suas guerras – tomam o lugar da antiga fé ateia e comunista, com o consequente recrudescimento das ideias e práticas patriarcais e homofóbicas; opositores políticos e ideológicos são estigmatizados e perseguidos; com aparições midiáticas ubíquas e paternalistas, Putin alimenta o culto à personalidade, infantiliza os cidadãos e como que os reduz a súditos modernos. 

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Ainda que boa parte da atual russofobia ocidental – ou, de forma mais apropriada para o neoczar, a “putinofobia” – esteja associada à arbitrária anexação da Crimeia pela Rússia, no início de 2014, Steven Lee Myers argumenta que é preciso identificar, sob as diatribes norte-americanas e europeias, uma estratégia geopolítica para desestabilizar o gigante eurasiano que, sob Putin, voltou a se tornar um ator global, sobretudo com o envolvimento russo no conflito da Síria. Segundo o raciocínio unilateral de Putin – unilateralidade bem própria à Guerra Fria que os EUA nunca deixaram de reproduzir –, se os Estados Unidos invadiram o Afeganistão e o Iraque, por que a Rússia não poderia amealhar territórios da Ucrânia? Nesse momento histórico, um aforismo espirituoso do filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860) bem pode sintetizar o sentido da nova Guerra Fria: “Uma nação zomba da outra – e ambas têm razão”. *Flávio Ricardo Vassoler é doutro em letras pela USP, com pós-doutorado em literatura russa na Northwestern University (EUA) 

Desde o título da biografia política O Novo Czar: Ascensão e Reinado de Vladimir Putin (Editora Amarilys, tradução de Márcia Men), o jornalista norte-americano Steven Lee Myers procura dissecar as afinidades entre o longevo presidente da Federação Russa e a tradição antidemocrática e autoritária do país. Ao fim de seu quarto mandato presidencial, em 2024, Putin, então aos 72 anos, terá permanecido durante 20 anos no poder, superando o soviético Leonid Brejnev (1906-1982), que governou a União Soviética por 18 anos (de 1964 até sua morte). Entre 2008 e 2012, enquanto o primeiro-ministro/eminência parda Vladimir Putin (não) delegava o poder para o presidente(tampão) Dmítri Medvedev, realizou-se uma emenda constitucional para que o mandato presidencial passasse a durar 6 anos. 

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O presidente da Rússia Vladimir Putin em um helicóptero Foto: Aleksey Nikolsky/Kremlin

Myers acompanha a trajetória de Putin da infância pobre e rebelde em São Petersburgo até os quadros do onipotente KGB (Comitê de Segurança do Estado), em meio ao qual Putin chegou a atuar como agente secreto na Alemanha Oriental à época do colapso do bloco socialista; da fragmentação da União Soviética, que o acaba levando à burocracia municipal de São Petersburgo (e a uma série de contratos e parcerias público-privados bastante questionáveis), até o alto escalão moscovita encabeçado por Boris Iéltsin (1931-2007), o primeiro presidente democraticamente eleito pela então recém-refundada Federação Russa. 

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Quando chega o momento de Iéltsin deixar a presidência, no fim dos anos 1990, Myers nos explica que “a Rússia, após séculos de governo czarista e depois comunista, nunca tinha transferido democraticamente o poder político de um líder para outro. A personificação de poder era tão arraigada na cultura russa que isso parecia inconcebível. Mesmo em um estágio tão tardio, Iéltsin ainda brincava com a ideia de disputar a eleição. Embora já tivesse sido eleito duas vezes, a Nova Constituição do país, que limitava o presidente a dois mandatos consecutivos, havia entrado em vigor em 1993. Ele podia argumentar que, legalmente, sua reeleição em 1996 começara seu primeiro mandato, o que lhe permitiria disputar novamente em 2000, mas tudo isso era fantasioso. Iéltsin já estava com 68 anos, cada vez mais frágil e politicamente incapacitado. Ele pensou bastante em como assegurar uma transferência de poder que ao mesmo tempo preservasse a transição política do governo soviético e o protegesse dos expurgos vingadores que se seguiram à remoção de todos os líderes desde os Románov”. 

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Ao ser eleito presidente sob os auspícios de Iéltsin, Putin assume o poder em meados do ano 2000 e blinda o padrinho de quaisquer investigações político-judiciais – na Rússia, o sistema político-econômico historicamente assentado sobre a dinâmica do tráfico de influências, do favorecimento de grupos de interesse e da corrupção tende a lançar mão do Judiciário, casuisticamente, para perseguir adversários/réus que se locupletam tanto quanto seus acusadores. 

São recorrentes e legítimas as críticas ao governo autoritário de Putin, em meio ao qual há pouca transparência nas decisões e gastos públicos; a pantomima de separação dos poderes tende a transformar o Legislativo e o Judiciário em correias de transmissão do Executivo; o Estado controla a mídia televisiva e radiofônica e, cada vez mais, aperta o cerco contra a internet; a Igreja Ortodoxa e sua liturgia, que nunca se separaram, efetivamente, das entranhas do poder – tanto para canonizar czares quanto para abençoar suas guerras – tomam o lugar da antiga fé ateia e comunista, com o consequente recrudescimento das ideias e práticas patriarcais e homofóbicas; opositores políticos e ideológicos são estigmatizados e perseguidos; com aparições midiáticas ubíquas e paternalistas, Putin alimenta o culto à personalidade, infantiliza os cidadãos e como que os reduz a súditos modernos. 

Ainda que boa parte da atual russofobia ocidental – ou, de forma mais apropriada para o neoczar, a “putinofobia” – esteja associada à arbitrária anexação da Crimeia pela Rússia, no início de 2014, Steven Lee Myers argumenta que é preciso identificar, sob as diatribes norte-americanas e europeias, uma estratégia geopolítica para desestabilizar o gigante eurasiano que, sob Putin, voltou a se tornar um ator global, sobretudo com o envolvimento russo no conflito da Síria. Segundo o raciocínio unilateral de Putin – unilateralidade bem própria à Guerra Fria que os EUA nunca deixaram de reproduzir –, se os Estados Unidos invadiram o Afeganistão e o Iraque, por que a Rússia não poderia amealhar territórios da Ucrânia? Nesse momento histórico, um aforismo espirituoso do filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860) bem pode sintetizar o sentido da nova Guerra Fria: “Uma nação zomba da outra – e ambas têm razão”. *Flávio Ricardo Vassoler é doutro em letras pela USP, com pós-doutorado em literatura russa na Northwestern University (EUA) 

Desde o título da biografia política O Novo Czar: Ascensão e Reinado de Vladimir Putin (Editora Amarilys, tradução de Márcia Men), o jornalista norte-americano Steven Lee Myers procura dissecar as afinidades entre o longevo presidente da Federação Russa e a tradição antidemocrática e autoritária do país. Ao fim de seu quarto mandato presidencial, em 2024, Putin, então aos 72 anos, terá permanecido durante 20 anos no poder, superando o soviético Leonid Brejnev (1906-1982), que governou a União Soviética por 18 anos (de 1964 até sua morte). Entre 2008 e 2012, enquanto o primeiro-ministro/eminência parda Vladimir Putin (não) delegava o poder para o presidente(tampão) Dmítri Medvedev, realizou-se uma emenda constitucional para que o mandato presidencial passasse a durar 6 anos. 

+++Entrevistas de Vladimir Putin com Oliver Stone são compiladas em livro

O presidente da Rússia Vladimir Putin em um helicóptero Foto: Aleksey Nikolsky/Kremlin

Myers acompanha a trajetória de Putin da infância pobre e rebelde em São Petersburgo até os quadros do onipotente KGB (Comitê de Segurança do Estado), em meio ao qual Putin chegou a atuar como agente secreto na Alemanha Oriental à época do colapso do bloco socialista; da fragmentação da União Soviética, que o acaba levando à burocracia municipal de São Petersburgo (e a uma série de contratos e parcerias público-privados bastante questionáveis), até o alto escalão moscovita encabeçado por Boris Iéltsin (1931-2007), o primeiro presidente democraticamente eleito pela então recém-refundada Federação Russa. 

+++Viagem de Joseph Roth à URSS faz pensar que Lenin é precursor de Trump

Quando chega o momento de Iéltsin deixar a presidência, no fim dos anos 1990, Myers nos explica que “a Rússia, após séculos de governo czarista e depois comunista, nunca tinha transferido democraticamente o poder político de um líder para outro. A personificação de poder era tão arraigada na cultura russa que isso parecia inconcebível. Mesmo em um estágio tão tardio, Iéltsin ainda brincava com a ideia de disputar a eleição. Embora já tivesse sido eleito duas vezes, a Nova Constituição do país, que limitava o presidente a dois mandatos consecutivos, havia entrado em vigor em 1993. Ele podia argumentar que, legalmente, sua reeleição em 1996 começara seu primeiro mandato, o que lhe permitiria disputar novamente em 2000, mas tudo isso era fantasioso. Iéltsin já estava com 68 anos, cada vez mais frágil e politicamente incapacitado. Ele pensou bastante em como assegurar uma transferência de poder que ao mesmo tempo preservasse a transição política do governo soviético e o protegesse dos expurgos vingadores que se seguiram à remoção de todos os líderes desde os Románov”. 

+++Relação entre Donald Trump e a máfia russa é explorada em livro

Ao ser eleito presidente sob os auspícios de Iéltsin, Putin assume o poder em meados do ano 2000 e blinda o padrinho de quaisquer investigações político-judiciais – na Rússia, o sistema político-econômico historicamente assentado sobre a dinâmica do tráfico de influências, do favorecimento de grupos de interesse e da corrupção tende a lançar mão do Judiciário, casuisticamente, para perseguir adversários/réus que se locupletam tanto quanto seus acusadores. 

São recorrentes e legítimas as críticas ao governo autoritário de Putin, em meio ao qual há pouca transparência nas decisões e gastos públicos; a pantomima de separação dos poderes tende a transformar o Legislativo e o Judiciário em correias de transmissão do Executivo; o Estado controla a mídia televisiva e radiofônica e, cada vez mais, aperta o cerco contra a internet; a Igreja Ortodoxa e sua liturgia, que nunca se separaram, efetivamente, das entranhas do poder – tanto para canonizar czares quanto para abençoar suas guerras – tomam o lugar da antiga fé ateia e comunista, com o consequente recrudescimento das ideias e práticas patriarcais e homofóbicas; opositores políticos e ideológicos são estigmatizados e perseguidos; com aparições midiáticas ubíquas e paternalistas, Putin alimenta o culto à personalidade, infantiliza os cidadãos e como que os reduz a súditos modernos. 

Ainda que boa parte da atual russofobia ocidental – ou, de forma mais apropriada para o neoczar, a “putinofobia” – esteja associada à arbitrária anexação da Crimeia pela Rússia, no início de 2014, Steven Lee Myers argumenta que é preciso identificar, sob as diatribes norte-americanas e europeias, uma estratégia geopolítica para desestabilizar o gigante eurasiano que, sob Putin, voltou a se tornar um ator global, sobretudo com o envolvimento russo no conflito da Síria. Segundo o raciocínio unilateral de Putin – unilateralidade bem própria à Guerra Fria que os EUA nunca deixaram de reproduzir –, se os Estados Unidos invadiram o Afeganistão e o Iraque, por que a Rússia não poderia amealhar territórios da Ucrânia? Nesse momento histórico, um aforismo espirituoso do filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860) bem pode sintetizar o sentido da nova Guerra Fria: “Uma nação zomba da outra – e ambas têm razão”. *Flávio Ricardo Vassoler é doutro em letras pela USP, com pós-doutorado em literatura russa na Northwestern University (EUA) 

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