Biografia de Nietzsche corrige distorções nazistas


Irmã do filósofo foi casada com supremacista ariano e promoveu desserviço em sua obra

Por Rodrigo Petronio
Atualização:
Friedrich Nietzsche retratado postumamente por Edvard Munch, em 1906 

A vida e os escritos de Nietzsche (1844-1900) sofreram diversas deturpações ao longo do século 20. Dentre outros fatores, estão as intervenções de sua irmã. Embora criadora do Arquivo Nietzsche, Elisabeth Förster-Nietzsche é considerada uma das principais responsáveis por essas adulterações. Provavelmente agia sob influência do marido, Bernhard Förster, ideólogo do antissemitismo e fundador da Nova Germânia, colônia situada no Paraguai e destinada a uma “raça pura”. 

Desde então, os principais trabalhos editoriais se esforçaram para dirimir esses problemas e oferecer uma visão fidedigna da vida e da obra do filósofo. Nessa chave estão a edição comentada de Karl Schlechta (1956) e a monumental edição crítica de Giorgio Colli e Mazzino Montinari (1967), trabalho concluído apenas nos anos 1980. Em relação à biografia, Richard Blunck concebeu um amplo projeto cujo primeiro volume saiu do prelo em 1953. 

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Antes de sua morte, em 1962, Blunck legou a continuidade do trabalho ao musicólogo suíço Curt Paul Janz, que o concluiu em 1978. O resultado é excepcional: uma caixa em três tomos intitulada Nietzsche: Uma Biografia, publicada pela primeira vez no Brasil pela Editora Vozes. Com prefácio de Oswaldo Giacoia Júnior, um dos maiores especialistas na obra do criador de Zaratustra, é um dos estudos exegéticos mais abrangentes sobre a vida e a obra do filósofo. 

Janz segue a cronologia e a divisão por fases. O primeiro volume se ocupa dos anos de infância e juventude até a década na qual Nietzsche atua como professor de filologia na Basileia (1869-1879). O afastamento da vida acadêmica deu ensejo a uma verdadeira revolução. Adentramos a década na qual foram concebidas e concluídas quase todas as obras decisivas (1879-1888), abordada no volume dois. Por fim, o volume três descreve a doença, a loucura e a morte (1889-1900), além de trazer um farto levantamento de documentos, remissões e iconografias. 

Uma das virtudes de Janz é mostrar passo a passo a formação intelectual desse filho de pastor protestante, que desde os primeiros estudos no liceu de Pforta se interessa por ciências naturais, música e estudos clássicos, e idolatra Shakespeare, Byron e Hölderlin. A descoberta da obra de Schopenhauer em 1865 também teve um efeito poderoso. Efeito semelhante ocorreu com a descoberta das obras de Albert Lange e Kuno Fischer, sobre o materialismo e sobre Kant. Nascia o filósofo dentro de Nietzsche. Um filósofo tímido, ainda hesitante em meio aos estudos dos escombros da Antiguidade, mergulhado em fragmentos de grego e de latim. Entretanto, o impacto tinha sido irreversível.

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Essa oscilação agônica entre a filologia (estudo das línguas), a que Nietzsche vai se dedicar como docente ao longo de dez anos, e a vocação para a filosofia é o primeiro eixo da agonística que iria moldar sua obra. O outro vértice desse triângulo foi seu amor pela música, em especial a paixão pela obra de Wagner, da qual fora um entusiasta e um iniciado. A descrição do período de Basileia é perfeita ao retratar as ambiguidades de sua condição. Nietzsche amava os estudos clássicos. E privava da companhia de alguns dos mais eminentes pensadores da época, como Bachofen e Burckhardt. Também fez alguns amigos que atravessaram quase toda sua vida, como o filólogo Erwin Rohde e o teólogo liberal Franz Overbeck. Mas isso não bastava. 

A violenta reação do jovem filólogo Willamowitz-Möllendorff à sua primeira obra, O Nascimento da Tragédia (1871), chama a atenção de Nietzsche para dois aspectos: as mesquinharias da vida acadêmica e a urgência de sua vocação de filósofo livre. A encruzilhada entre a filologia e a filosofia se apresenta. Precipitam-se e pioram os problemas de saúde que o acompanhavam desde a infância. Mais adiante, as crises com Wagner e o afastamento do círculo de Bayreuth se consuma. Afastado da universidade e do universo dos espetáculos, surge o andarilho nômade. Acompanhado apenas de sua sombra. Mergulhado em sua solidão. Surge Nietzsche. 

São mais de dez anos de escrita ininterrupta de uma das mais potentes obras do pensamento ocidental. Janz demonstra de modo brilhante a importância de personagens como Paul Rée, decisivos para a formulação interna de alguns conceitos. Descreve o zênite de Assim Falou Zaratustra (1885), um poema cosmológico estruturado como sinfonia, concebido como escritura sagrada e gerador de disputas por todos os lados. E mostra também a triste relação de Nietzsche com as mulheres. A despeito da ajuda de sua amiga Malwida von Meysenbug, todas as tentativas de noivado são fracassadas. A paixão correspondida por Lou Andreas-Salomé é o golpe fatal em sua vida amorosa. 

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Acompanhamos o isolamento cada vez maior desse estranho personagem em que se transformara Nietzsche, a ponto de não ser mais reconhecido por Rohde, um de seus melhores amigos. As viagens de cidade a cidade em busca de climas bons à saúde; os longos períodos de reclusão; o alheamento da vida social, política e intelectual. Tudo isso imprimiu uma marca definitiva em sua personalidade. Catalisou a tinta e o sangue do escritor e do pensador. 

“Aspiro à minha obra”. Quando se trata de Nietzsche, esta máxima pode se referir tanto à obra escrita quanto à sua vida-obra desse andarilho subjugado pelo pensamento e pela liberdade interior. Nesse sentido, a obra de Janz é prima, ou seja, pode ser vista como primeira nota de uma sinfonia que se desdobra e se encadeia, por dentro e por fora dos livros e da vida desse autor e dessa força da natureza a que convencionamos chamar de Nietzsche. 

*Rodrigo Petronio é escritor, doutor em literatura comparada (Uerj) e professor titular da Faap

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Capa de 'Friedrich Nietzsche: Uma Biografia' 

Friedrich Nietzsche: Uma Biografia Autor: Curt Paul JanzTradução: Markus A. Hediger e Luís M. SanderEditora: Vozes 1.648 páginas  R$ 349

Friedrich Nietzsche retratado postumamente por Edvard Munch, em 1906 

A vida e os escritos de Nietzsche (1844-1900) sofreram diversas deturpações ao longo do século 20. Dentre outros fatores, estão as intervenções de sua irmã. Embora criadora do Arquivo Nietzsche, Elisabeth Förster-Nietzsche é considerada uma das principais responsáveis por essas adulterações. Provavelmente agia sob influência do marido, Bernhard Förster, ideólogo do antissemitismo e fundador da Nova Germânia, colônia situada no Paraguai e destinada a uma “raça pura”. 

Desde então, os principais trabalhos editoriais se esforçaram para dirimir esses problemas e oferecer uma visão fidedigna da vida e da obra do filósofo. Nessa chave estão a edição comentada de Karl Schlechta (1956) e a monumental edição crítica de Giorgio Colli e Mazzino Montinari (1967), trabalho concluído apenas nos anos 1980. Em relação à biografia, Richard Blunck concebeu um amplo projeto cujo primeiro volume saiu do prelo em 1953. 

Antes de sua morte, em 1962, Blunck legou a continuidade do trabalho ao musicólogo suíço Curt Paul Janz, que o concluiu em 1978. O resultado é excepcional: uma caixa em três tomos intitulada Nietzsche: Uma Biografia, publicada pela primeira vez no Brasil pela Editora Vozes. Com prefácio de Oswaldo Giacoia Júnior, um dos maiores especialistas na obra do criador de Zaratustra, é um dos estudos exegéticos mais abrangentes sobre a vida e a obra do filósofo. 

Janz segue a cronologia e a divisão por fases. O primeiro volume se ocupa dos anos de infância e juventude até a década na qual Nietzsche atua como professor de filologia na Basileia (1869-1879). O afastamento da vida acadêmica deu ensejo a uma verdadeira revolução. Adentramos a década na qual foram concebidas e concluídas quase todas as obras decisivas (1879-1888), abordada no volume dois. Por fim, o volume três descreve a doença, a loucura e a morte (1889-1900), além de trazer um farto levantamento de documentos, remissões e iconografias. 

Uma das virtudes de Janz é mostrar passo a passo a formação intelectual desse filho de pastor protestante, que desde os primeiros estudos no liceu de Pforta se interessa por ciências naturais, música e estudos clássicos, e idolatra Shakespeare, Byron e Hölderlin. A descoberta da obra de Schopenhauer em 1865 também teve um efeito poderoso. Efeito semelhante ocorreu com a descoberta das obras de Albert Lange e Kuno Fischer, sobre o materialismo e sobre Kant. Nascia o filósofo dentro de Nietzsche. Um filósofo tímido, ainda hesitante em meio aos estudos dos escombros da Antiguidade, mergulhado em fragmentos de grego e de latim. Entretanto, o impacto tinha sido irreversível.

Essa oscilação agônica entre a filologia (estudo das línguas), a que Nietzsche vai se dedicar como docente ao longo de dez anos, e a vocação para a filosofia é o primeiro eixo da agonística que iria moldar sua obra. O outro vértice desse triângulo foi seu amor pela música, em especial a paixão pela obra de Wagner, da qual fora um entusiasta e um iniciado. A descrição do período de Basileia é perfeita ao retratar as ambiguidades de sua condição. Nietzsche amava os estudos clássicos. E privava da companhia de alguns dos mais eminentes pensadores da época, como Bachofen e Burckhardt. Também fez alguns amigos que atravessaram quase toda sua vida, como o filólogo Erwin Rohde e o teólogo liberal Franz Overbeck. Mas isso não bastava. 

A violenta reação do jovem filólogo Willamowitz-Möllendorff à sua primeira obra, O Nascimento da Tragédia (1871), chama a atenção de Nietzsche para dois aspectos: as mesquinharias da vida acadêmica e a urgência de sua vocação de filósofo livre. A encruzilhada entre a filologia e a filosofia se apresenta. Precipitam-se e pioram os problemas de saúde que o acompanhavam desde a infância. Mais adiante, as crises com Wagner e o afastamento do círculo de Bayreuth se consuma. Afastado da universidade e do universo dos espetáculos, surge o andarilho nômade. Acompanhado apenas de sua sombra. Mergulhado em sua solidão. Surge Nietzsche. 

São mais de dez anos de escrita ininterrupta de uma das mais potentes obras do pensamento ocidental. Janz demonstra de modo brilhante a importância de personagens como Paul Rée, decisivos para a formulação interna de alguns conceitos. Descreve o zênite de Assim Falou Zaratustra (1885), um poema cosmológico estruturado como sinfonia, concebido como escritura sagrada e gerador de disputas por todos os lados. E mostra também a triste relação de Nietzsche com as mulheres. A despeito da ajuda de sua amiga Malwida von Meysenbug, todas as tentativas de noivado são fracassadas. A paixão correspondida por Lou Andreas-Salomé é o golpe fatal em sua vida amorosa. 

Acompanhamos o isolamento cada vez maior desse estranho personagem em que se transformara Nietzsche, a ponto de não ser mais reconhecido por Rohde, um de seus melhores amigos. As viagens de cidade a cidade em busca de climas bons à saúde; os longos períodos de reclusão; o alheamento da vida social, política e intelectual. Tudo isso imprimiu uma marca definitiva em sua personalidade. Catalisou a tinta e o sangue do escritor e do pensador. 

“Aspiro à minha obra”. Quando se trata de Nietzsche, esta máxima pode se referir tanto à obra escrita quanto à sua vida-obra desse andarilho subjugado pelo pensamento e pela liberdade interior. Nesse sentido, a obra de Janz é prima, ou seja, pode ser vista como primeira nota de uma sinfonia que se desdobra e se encadeia, por dentro e por fora dos livros e da vida desse autor e dessa força da natureza a que convencionamos chamar de Nietzsche. 

*Rodrigo Petronio é escritor, doutor em literatura comparada (Uerj) e professor titular da Faap

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Friedrich Nietzsche: Uma Biografia Autor: Curt Paul JanzTradução: Markus A. Hediger e Luís M. SanderEditora: Vozes 1.648 páginas  R$ 349

Friedrich Nietzsche retratado postumamente por Edvard Munch, em 1906 

A vida e os escritos de Nietzsche (1844-1900) sofreram diversas deturpações ao longo do século 20. Dentre outros fatores, estão as intervenções de sua irmã. Embora criadora do Arquivo Nietzsche, Elisabeth Förster-Nietzsche é considerada uma das principais responsáveis por essas adulterações. Provavelmente agia sob influência do marido, Bernhard Förster, ideólogo do antissemitismo e fundador da Nova Germânia, colônia situada no Paraguai e destinada a uma “raça pura”. 

Desde então, os principais trabalhos editoriais se esforçaram para dirimir esses problemas e oferecer uma visão fidedigna da vida e da obra do filósofo. Nessa chave estão a edição comentada de Karl Schlechta (1956) e a monumental edição crítica de Giorgio Colli e Mazzino Montinari (1967), trabalho concluído apenas nos anos 1980. Em relação à biografia, Richard Blunck concebeu um amplo projeto cujo primeiro volume saiu do prelo em 1953. 

Antes de sua morte, em 1962, Blunck legou a continuidade do trabalho ao musicólogo suíço Curt Paul Janz, que o concluiu em 1978. O resultado é excepcional: uma caixa em três tomos intitulada Nietzsche: Uma Biografia, publicada pela primeira vez no Brasil pela Editora Vozes. Com prefácio de Oswaldo Giacoia Júnior, um dos maiores especialistas na obra do criador de Zaratustra, é um dos estudos exegéticos mais abrangentes sobre a vida e a obra do filósofo. 

Janz segue a cronologia e a divisão por fases. O primeiro volume se ocupa dos anos de infância e juventude até a década na qual Nietzsche atua como professor de filologia na Basileia (1869-1879). O afastamento da vida acadêmica deu ensejo a uma verdadeira revolução. Adentramos a década na qual foram concebidas e concluídas quase todas as obras decisivas (1879-1888), abordada no volume dois. Por fim, o volume três descreve a doença, a loucura e a morte (1889-1900), além de trazer um farto levantamento de documentos, remissões e iconografias. 

Uma das virtudes de Janz é mostrar passo a passo a formação intelectual desse filho de pastor protestante, que desde os primeiros estudos no liceu de Pforta se interessa por ciências naturais, música e estudos clássicos, e idolatra Shakespeare, Byron e Hölderlin. A descoberta da obra de Schopenhauer em 1865 também teve um efeito poderoso. Efeito semelhante ocorreu com a descoberta das obras de Albert Lange e Kuno Fischer, sobre o materialismo e sobre Kant. Nascia o filósofo dentro de Nietzsche. Um filósofo tímido, ainda hesitante em meio aos estudos dos escombros da Antiguidade, mergulhado em fragmentos de grego e de latim. Entretanto, o impacto tinha sido irreversível.

Essa oscilação agônica entre a filologia (estudo das línguas), a que Nietzsche vai se dedicar como docente ao longo de dez anos, e a vocação para a filosofia é o primeiro eixo da agonística que iria moldar sua obra. O outro vértice desse triângulo foi seu amor pela música, em especial a paixão pela obra de Wagner, da qual fora um entusiasta e um iniciado. A descrição do período de Basileia é perfeita ao retratar as ambiguidades de sua condição. Nietzsche amava os estudos clássicos. E privava da companhia de alguns dos mais eminentes pensadores da época, como Bachofen e Burckhardt. Também fez alguns amigos que atravessaram quase toda sua vida, como o filólogo Erwin Rohde e o teólogo liberal Franz Overbeck. Mas isso não bastava. 

A violenta reação do jovem filólogo Willamowitz-Möllendorff à sua primeira obra, O Nascimento da Tragédia (1871), chama a atenção de Nietzsche para dois aspectos: as mesquinharias da vida acadêmica e a urgência de sua vocação de filósofo livre. A encruzilhada entre a filologia e a filosofia se apresenta. Precipitam-se e pioram os problemas de saúde que o acompanhavam desde a infância. Mais adiante, as crises com Wagner e o afastamento do círculo de Bayreuth se consuma. Afastado da universidade e do universo dos espetáculos, surge o andarilho nômade. Acompanhado apenas de sua sombra. Mergulhado em sua solidão. Surge Nietzsche. 

São mais de dez anos de escrita ininterrupta de uma das mais potentes obras do pensamento ocidental. Janz demonstra de modo brilhante a importância de personagens como Paul Rée, decisivos para a formulação interna de alguns conceitos. Descreve o zênite de Assim Falou Zaratustra (1885), um poema cosmológico estruturado como sinfonia, concebido como escritura sagrada e gerador de disputas por todos os lados. E mostra também a triste relação de Nietzsche com as mulheres. A despeito da ajuda de sua amiga Malwida von Meysenbug, todas as tentativas de noivado são fracassadas. A paixão correspondida por Lou Andreas-Salomé é o golpe fatal em sua vida amorosa. 

Acompanhamos o isolamento cada vez maior desse estranho personagem em que se transformara Nietzsche, a ponto de não ser mais reconhecido por Rohde, um de seus melhores amigos. As viagens de cidade a cidade em busca de climas bons à saúde; os longos períodos de reclusão; o alheamento da vida social, política e intelectual. Tudo isso imprimiu uma marca definitiva em sua personalidade. Catalisou a tinta e o sangue do escritor e do pensador. 

“Aspiro à minha obra”. Quando se trata de Nietzsche, esta máxima pode se referir tanto à obra escrita quanto à sua vida-obra desse andarilho subjugado pelo pensamento e pela liberdade interior. Nesse sentido, a obra de Janz é prima, ou seja, pode ser vista como primeira nota de uma sinfonia que se desdobra e se encadeia, por dentro e por fora dos livros e da vida desse autor e dessa força da natureza a que convencionamos chamar de Nietzsche. 

*Rodrigo Petronio é escritor, doutor em literatura comparada (Uerj) e professor titular da Faap

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Friedrich Nietzsche: Uma Biografia Autor: Curt Paul JanzTradução: Markus A. Hediger e Luís M. SanderEditora: Vozes 1.648 páginas  R$ 349

Friedrich Nietzsche retratado postumamente por Edvard Munch, em 1906 

A vida e os escritos de Nietzsche (1844-1900) sofreram diversas deturpações ao longo do século 20. Dentre outros fatores, estão as intervenções de sua irmã. Embora criadora do Arquivo Nietzsche, Elisabeth Förster-Nietzsche é considerada uma das principais responsáveis por essas adulterações. Provavelmente agia sob influência do marido, Bernhard Förster, ideólogo do antissemitismo e fundador da Nova Germânia, colônia situada no Paraguai e destinada a uma “raça pura”. 

Desde então, os principais trabalhos editoriais se esforçaram para dirimir esses problemas e oferecer uma visão fidedigna da vida e da obra do filósofo. Nessa chave estão a edição comentada de Karl Schlechta (1956) e a monumental edição crítica de Giorgio Colli e Mazzino Montinari (1967), trabalho concluído apenas nos anos 1980. Em relação à biografia, Richard Blunck concebeu um amplo projeto cujo primeiro volume saiu do prelo em 1953. 

Antes de sua morte, em 1962, Blunck legou a continuidade do trabalho ao musicólogo suíço Curt Paul Janz, que o concluiu em 1978. O resultado é excepcional: uma caixa em três tomos intitulada Nietzsche: Uma Biografia, publicada pela primeira vez no Brasil pela Editora Vozes. Com prefácio de Oswaldo Giacoia Júnior, um dos maiores especialistas na obra do criador de Zaratustra, é um dos estudos exegéticos mais abrangentes sobre a vida e a obra do filósofo. 

Janz segue a cronologia e a divisão por fases. O primeiro volume se ocupa dos anos de infância e juventude até a década na qual Nietzsche atua como professor de filologia na Basileia (1869-1879). O afastamento da vida acadêmica deu ensejo a uma verdadeira revolução. Adentramos a década na qual foram concebidas e concluídas quase todas as obras decisivas (1879-1888), abordada no volume dois. Por fim, o volume três descreve a doença, a loucura e a morte (1889-1900), além de trazer um farto levantamento de documentos, remissões e iconografias. 

Uma das virtudes de Janz é mostrar passo a passo a formação intelectual desse filho de pastor protestante, que desde os primeiros estudos no liceu de Pforta se interessa por ciências naturais, música e estudos clássicos, e idolatra Shakespeare, Byron e Hölderlin. A descoberta da obra de Schopenhauer em 1865 também teve um efeito poderoso. Efeito semelhante ocorreu com a descoberta das obras de Albert Lange e Kuno Fischer, sobre o materialismo e sobre Kant. Nascia o filósofo dentro de Nietzsche. Um filósofo tímido, ainda hesitante em meio aos estudos dos escombros da Antiguidade, mergulhado em fragmentos de grego e de latim. Entretanto, o impacto tinha sido irreversível.

Essa oscilação agônica entre a filologia (estudo das línguas), a que Nietzsche vai se dedicar como docente ao longo de dez anos, e a vocação para a filosofia é o primeiro eixo da agonística que iria moldar sua obra. O outro vértice desse triângulo foi seu amor pela música, em especial a paixão pela obra de Wagner, da qual fora um entusiasta e um iniciado. A descrição do período de Basileia é perfeita ao retratar as ambiguidades de sua condição. Nietzsche amava os estudos clássicos. E privava da companhia de alguns dos mais eminentes pensadores da época, como Bachofen e Burckhardt. Também fez alguns amigos que atravessaram quase toda sua vida, como o filólogo Erwin Rohde e o teólogo liberal Franz Overbeck. Mas isso não bastava. 

A violenta reação do jovem filólogo Willamowitz-Möllendorff à sua primeira obra, O Nascimento da Tragédia (1871), chama a atenção de Nietzsche para dois aspectos: as mesquinharias da vida acadêmica e a urgência de sua vocação de filósofo livre. A encruzilhada entre a filologia e a filosofia se apresenta. Precipitam-se e pioram os problemas de saúde que o acompanhavam desde a infância. Mais adiante, as crises com Wagner e o afastamento do círculo de Bayreuth se consuma. Afastado da universidade e do universo dos espetáculos, surge o andarilho nômade. Acompanhado apenas de sua sombra. Mergulhado em sua solidão. Surge Nietzsche. 

São mais de dez anos de escrita ininterrupta de uma das mais potentes obras do pensamento ocidental. Janz demonstra de modo brilhante a importância de personagens como Paul Rée, decisivos para a formulação interna de alguns conceitos. Descreve o zênite de Assim Falou Zaratustra (1885), um poema cosmológico estruturado como sinfonia, concebido como escritura sagrada e gerador de disputas por todos os lados. E mostra também a triste relação de Nietzsche com as mulheres. A despeito da ajuda de sua amiga Malwida von Meysenbug, todas as tentativas de noivado são fracassadas. A paixão correspondida por Lou Andreas-Salomé é o golpe fatal em sua vida amorosa. 

Acompanhamos o isolamento cada vez maior desse estranho personagem em que se transformara Nietzsche, a ponto de não ser mais reconhecido por Rohde, um de seus melhores amigos. As viagens de cidade a cidade em busca de climas bons à saúde; os longos períodos de reclusão; o alheamento da vida social, política e intelectual. Tudo isso imprimiu uma marca definitiva em sua personalidade. Catalisou a tinta e o sangue do escritor e do pensador. 

“Aspiro à minha obra”. Quando se trata de Nietzsche, esta máxima pode se referir tanto à obra escrita quanto à sua vida-obra desse andarilho subjugado pelo pensamento e pela liberdade interior. Nesse sentido, a obra de Janz é prima, ou seja, pode ser vista como primeira nota de uma sinfonia que se desdobra e se encadeia, por dentro e por fora dos livros e da vida desse autor e dessa força da natureza a que convencionamos chamar de Nietzsche. 

*Rodrigo Petronio é escritor, doutor em literatura comparada (Uerj) e professor titular da Faap

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Friedrich Nietzsche: Uma Biografia Autor: Curt Paul JanzTradução: Markus A. Hediger e Luís M. SanderEditora: Vozes 1.648 páginas  R$ 349

Friedrich Nietzsche retratado postumamente por Edvard Munch, em 1906 

A vida e os escritos de Nietzsche (1844-1900) sofreram diversas deturpações ao longo do século 20. Dentre outros fatores, estão as intervenções de sua irmã. Embora criadora do Arquivo Nietzsche, Elisabeth Förster-Nietzsche é considerada uma das principais responsáveis por essas adulterações. Provavelmente agia sob influência do marido, Bernhard Förster, ideólogo do antissemitismo e fundador da Nova Germânia, colônia situada no Paraguai e destinada a uma “raça pura”. 

Desde então, os principais trabalhos editoriais se esforçaram para dirimir esses problemas e oferecer uma visão fidedigna da vida e da obra do filósofo. Nessa chave estão a edição comentada de Karl Schlechta (1956) e a monumental edição crítica de Giorgio Colli e Mazzino Montinari (1967), trabalho concluído apenas nos anos 1980. Em relação à biografia, Richard Blunck concebeu um amplo projeto cujo primeiro volume saiu do prelo em 1953. 

Antes de sua morte, em 1962, Blunck legou a continuidade do trabalho ao musicólogo suíço Curt Paul Janz, que o concluiu em 1978. O resultado é excepcional: uma caixa em três tomos intitulada Nietzsche: Uma Biografia, publicada pela primeira vez no Brasil pela Editora Vozes. Com prefácio de Oswaldo Giacoia Júnior, um dos maiores especialistas na obra do criador de Zaratustra, é um dos estudos exegéticos mais abrangentes sobre a vida e a obra do filósofo. 

Janz segue a cronologia e a divisão por fases. O primeiro volume se ocupa dos anos de infância e juventude até a década na qual Nietzsche atua como professor de filologia na Basileia (1869-1879). O afastamento da vida acadêmica deu ensejo a uma verdadeira revolução. Adentramos a década na qual foram concebidas e concluídas quase todas as obras decisivas (1879-1888), abordada no volume dois. Por fim, o volume três descreve a doença, a loucura e a morte (1889-1900), além de trazer um farto levantamento de documentos, remissões e iconografias. 

Uma das virtudes de Janz é mostrar passo a passo a formação intelectual desse filho de pastor protestante, que desde os primeiros estudos no liceu de Pforta se interessa por ciências naturais, música e estudos clássicos, e idolatra Shakespeare, Byron e Hölderlin. A descoberta da obra de Schopenhauer em 1865 também teve um efeito poderoso. Efeito semelhante ocorreu com a descoberta das obras de Albert Lange e Kuno Fischer, sobre o materialismo e sobre Kant. Nascia o filósofo dentro de Nietzsche. Um filósofo tímido, ainda hesitante em meio aos estudos dos escombros da Antiguidade, mergulhado em fragmentos de grego e de latim. Entretanto, o impacto tinha sido irreversível.

Essa oscilação agônica entre a filologia (estudo das línguas), a que Nietzsche vai se dedicar como docente ao longo de dez anos, e a vocação para a filosofia é o primeiro eixo da agonística que iria moldar sua obra. O outro vértice desse triângulo foi seu amor pela música, em especial a paixão pela obra de Wagner, da qual fora um entusiasta e um iniciado. A descrição do período de Basileia é perfeita ao retratar as ambiguidades de sua condição. Nietzsche amava os estudos clássicos. E privava da companhia de alguns dos mais eminentes pensadores da época, como Bachofen e Burckhardt. Também fez alguns amigos que atravessaram quase toda sua vida, como o filólogo Erwin Rohde e o teólogo liberal Franz Overbeck. Mas isso não bastava. 

A violenta reação do jovem filólogo Willamowitz-Möllendorff à sua primeira obra, O Nascimento da Tragédia (1871), chama a atenção de Nietzsche para dois aspectos: as mesquinharias da vida acadêmica e a urgência de sua vocação de filósofo livre. A encruzilhada entre a filologia e a filosofia se apresenta. Precipitam-se e pioram os problemas de saúde que o acompanhavam desde a infância. Mais adiante, as crises com Wagner e o afastamento do círculo de Bayreuth se consuma. Afastado da universidade e do universo dos espetáculos, surge o andarilho nômade. Acompanhado apenas de sua sombra. Mergulhado em sua solidão. Surge Nietzsche. 

São mais de dez anos de escrita ininterrupta de uma das mais potentes obras do pensamento ocidental. Janz demonstra de modo brilhante a importância de personagens como Paul Rée, decisivos para a formulação interna de alguns conceitos. Descreve o zênite de Assim Falou Zaratustra (1885), um poema cosmológico estruturado como sinfonia, concebido como escritura sagrada e gerador de disputas por todos os lados. E mostra também a triste relação de Nietzsche com as mulheres. A despeito da ajuda de sua amiga Malwida von Meysenbug, todas as tentativas de noivado são fracassadas. A paixão correspondida por Lou Andreas-Salomé é o golpe fatal em sua vida amorosa. 

Acompanhamos o isolamento cada vez maior desse estranho personagem em que se transformara Nietzsche, a ponto de não ser mais reconhecido por Rohde, um de seus melhores amigos. As viagens de cidade a cidade em busca de climas bons à saúde; os longos períodos de reclusão; o alheamento da vida social, política e intelectual. Tudo isso imprimiu uma marca definitiva em sua personalidade. Catalisou a tinta e o sangue do escritor e do pensador. 

“Aspiro à minha obra”. Quando se trata de Nietzsche, esta máxima pode se referir tanto à obra escrita quanto à sua vida-obra desse andarilho subjugado pelo pensamento e pela liberdade interior. Nesse sentido, a obra de Janz é prima, ou seja, pode ser vista como primeira nota de uma sinfonia que se desdobra e se encadeia, por dentro e por fora dos livros e da vida desse autor e dessa força da natureza a que convencionamos chamar de Nietzsche. 

*Rodrigo Petronio é escritor, doutor em literatura comparada (Uerj) e professor titular da Faap

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Friedrich Nietzsche: Uma Biografia Autor: Curt Paul JanzTradução: Markus A. Hediger e Luís M. SanderEditora: Vozes 1.648 páginas  R$ 349

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