Na Sala dos Tratados do Palácio do Itamaraty, a mais nobre da sede do Ministério das Relações Exteriores em Brasília, há três bustos em pedra-sabão esculpidos por Bruno Giorgi. Representam três personalidades da diplomacia que atuaram na consolidação das fronteiras nacionais e contribuíram para que o Brasil seja hoje o quinto país em extensão territorial do mundo. Um dos bustos é do barão do Rio Branco, chefe do Itamaraty no começo da República. O segundo é do barão de Ponte Ribeiro, diplomata do Império. O terceiro é de Alexandre de Gusmão, o único que foi servidor público de Portugal, sob o reinado de D. João V, a quem prestou serviços durante o Brasil Colônia.
É a figura de Alexandre de Gusmão que um livro publicado este ano tenta resgatar do desconhecimento em que caiu, apesar de ele ter sido considerado por historiadores do passado o maior brasileiro dos tempos coloniais. Alexandre de Gusmão (1695-1753), O Estadista que Desenhou o Mapa do Brasil (Editora Record, R$ 59,90, 224 páginas), de Synesio Sampaio Goes Filho, ex-embaixador do Brasil em Bogotá, Lisboa e Bruxelas, recupera a trajetória de Gusmão, poderoso secretário pessoal de D. João V no período de maior fausto da Coroa portuguesa, graças ao ouro extraído em Minas Gerais. Historiador de fronteiras, Synesio é autor também de "Navegantes, bandeirantes, diplomatas", de 1991, clássico da história da diplomacia brasileira, obra de referência para compreender a formação do País. O grande feito de Gusmão, nascido em Santos (SP), foi ter articulado o Tratado de Madri, celebrado em 1750 entre Portugal e Espanha. O acordo legalizou a enorme ampliação do território brasileiro feita por bandeirantes e navegantes, ultrapassando largamente os limites do Tratado de Tordesilhas que pretendera em 1494 fixar a divisão dos domínios de portugueses e espanhóis no mundo. O Tratado de Madri aumentou em dois terços o território do Brasil, de forma pacífica, num período em que a maior parte dos acordos sobre fronteiras eram firmados depois de guerras. "Na formação territorial do Brasil não há nada mais importante do que o Tratado de Madri; na concepção e na redação deste, o papel central é de Gusmão", escreve Synesio. "Um acordo dessa dimensão é sem paralelo na história universal. Poucos fizeram tanto pela grandeza do Brasil". Um dado reforça o argumento sobre a originalidade do tratado. Os Estados Unidos se expandiram e conquistaram 90% do seu território após a independência - à custa de ressentimentos alimentados até hoje por seus vizinhos. No caso do Brasil, os contornos territoriais atuais, que basicamente seguem as linhas do tratado de Madri, foram praticamente todos definidos antes da independência - um fator de peso para que a América do Sul seja, em termos históricos, a região do planeta menos infestada por guerras. O Tratado de Madri foi uma obra de grande engenho político. Foi celebrado num momento em que laços matrimoniais uniam as coroas de Portugal e Espanha - no trono espanhol, estava Fernando VI, genro de D. João V. O momento era mais do que propício para tentar acertar diferenças entre os países ibéricos. O principal contencioso era a disputa por Colônia de Sacramento, uma fortificação fundada pelos portugueses às bordas do Rio da Prata, hoje uma pequena cidade turística do Uruguai. Alexandre de Gusmão era o encarregado de D. João V para lidar com os dois principais assuntos do reino português: as relações com a Igreja Católica e o Brasil, a principal fonte de rendas da Metrópole. Ele sabia que o problema do Brasil era a falta de fronteiras definidas. Por isso, era preciso anular Tordesilhas e acertar um novo tratado de limites. O objetivo dos portugueses era preservar os territórios conquistados na Amazônia e no Centro-Oeste (onde minas de ouro em Mato Grosso haviam sido recém-descobertas) e estabelecer fronteiras seguras no Sul, onde Portugal controlava apenas uma faixa litorânea estreita entre o Paraná e o Rio Grande do Sul.
Como os espanhóis tinham grande interesse no controle de Colônia do Sacramento, um entreposto de intenso contrabando da prata extraída nas minas de Potosí, na Bolívia, Alexandre de Gusmão partiu para uma negociação em que Portugal concedia a fortaleza em frente a Buenos Aires em troca de territórios das missões jesuíticas junto aos índios guarani no oeste do Rio Grande do Sul e o reconhecimento pela Espanha dos novos limites no Centro-Oeste e no Norte. Para as tratativas, mandou confeccionar o Mapa das Cortes, armando-se dos melhores conhecimentos cartográficos da época e de dois argumentos: as fronteiras deveriam seguir o curso de rios e montanhas e ratificar os direitos de posse de quem se estabelecera nos territórios ( o princípio do uti possidetis). Melhor conhecedor dos territórios em questão do que os espanhóis, Gusmão embutiu também no Mapa das Cortes um ardil. "Pelo tratado de Madri, o Brasil ampliou seu território em dois terços, no Mapa das Cortes parece que apenas duplicou", descreve Synésio. Firmado na capital espanhola em 13 de janeiro de 1750, o tratado foi uma imensa vitória de Portugal. Apesar de ter prevalecido na prática, pois, por força da realidade, os limites estabelecidos para o Brasil foram reconhecidos posteriormente por outros acordos, do ponto de vista formal, teve, porém, vida curta. Durou pouco mais de dez anos. Num caso considerado mal explicado até hoje, foi revogado por iniciativa dos próprios portugueses, na ocasião governados com mãos-de-ferro pelo Marquês de Pombal, um antigo rival político de Alexandre de Gusmão. Após a morte de D. João V, pouco após a assinatura do tratado, Gusmão caiu no ostracismo. Apesar dos diligentes trabalhos para o reino português , ele não era apreciado pela aristocracia local. Era considerado "estrangeirado"; não tinha origem fidalga; escrevera, como secretário do rei, cartas com admoestações aos nobres da terra, consideradas atrevidas e insolentes. Quando morreu, os bens que legara para mulher e filhos não pagavam as dívidas do seu espólio. A par do seu trabalho como diplomata negociador do Tratado de Madri, Gusmão foi uma figura fascinante. Ele partiu do Brasil (e para cá, nunca mais voltou) com 13 anos, depois de ter estudado num colégio jesuíta de Salvador criado por seu padrinho, de quem tomou emprestado o nome. Foi para Portugal na companhia do irmão mais velho, Bartolomeu, o "padre voador", célebre como criador do primeiro balão operacional da história, personagem de "O Memorial do Convento", um dos grandes romances de José Saramago. A fama do irmão ajudou Gusmão a entrar na corte portuguesa. Ele estudou na Universidade de Coimbra e foi designado para trabalhar nas representações diplomáticas de Portugal na França, onde teve contato com as ideias iluministas, e no Vaticano, onde fez amizade com o cardeal Lambertini, o futuro papa Bento XVI, um dos mais eruditos a comandar a Santa Sé. Gusmão escreveu libretos de óperas. Suas cartas como secretário do rei, pelo seu valor estilístico, são consideradas as mais originais da literatura portuguesa do século XVIII. Foi um homem com ideias avançadas numa das cortes mais atrasadas da Europa. No Brasil, o papel de estadista de Alexandre de Gusmão só ganhou destaque com o trabalho do historiador português Jaime Cortesão. Nos anos 50, Cortesão publicou nove volumes, com milhares de páginas, entre documentos e mapas, que demonstravam o protagonismo do santista no Tratado de Madri. Um dos grandes méritos do livro do embaixador Synésio é tornar acessível para um público médio, com estilo direto e fluente, o que antes só era conhecido pelos especialistas dispostos a se enfronhar no cartapácio de Cortesão. O livro foi encomendado pela Fundação Alexandre de Gusmão, órgão acadêmico do Itamaraty, mas o prefácio, escrito pelo embaixador Rubens Ricupero, um crítico da política externa bolsonarista, foi vetado pelo então ministro Ernesto Araújo. A obra acabou saindo pela editora Record, onde já chegou à segunda edição. “Devo muito ao Ernesto, que ajudou a dar muita repercussão ao livro”, ironiza Synésio. O veto do ex-chanceler de Bolsonaro expõe o outro grande mérito do ensaio. Em tempos obscurantistas, em que tribalismos dividem o País, o livro reforça a importância de se recuperar a ideia de nação e a história dos brasileiros que ajudaram a moldar, para usar a expressão cunhada por Demétrio Magnoli, “o corpo da pátria”.