O baile foi oferecido por lady Rothermere, mas seria da princesa Margaret que todos se lembrariam depois, de uma forma banal e lamentável. Ela tomou o microfone e começou a cantar Cole Porter a plenos pulmões, apaixonadamente e desafinada, enquanto tentava dançar (“se contorcia”, de acordo com um observador). Os convidados responderam com um entusiasmo obediente - todos, exceto por um homem, que começou a vaiar alto, até que Margaret deixou o palco, quase às lágrimas.
“Foi esse homem horrível: Francis Bacon”, lembrou a escritora Caroline Blackwood, citando a fala de um convidado. “Ele se diz pintor, mas pinta as telas mais assustadoras. Não consigo entender como deixaram uma criatura como ele entrar. É realmente lamentável.”
Bacon se mostrou sereno. “A voz dela era realmente horrenda”, afirmou ele posteriormente. “Alguém tinha de impedi-la. Acho que pessoas incapazes de cantar adequadamente não deveriam se apresentar em público.”
O resumo correto do artista e do homem: destemor e indiferença em relação ao ultraje; um lampejo de crueldade; e, sempre, a invocação sincera de padrões de excelência. Sua exigência em relação a si mesmo o levou rasgar e destruir telas que havia pintado, incinerá-las ou enfileirá-las mirando a parede, como se fossem crianças de castigo. Acima de tudo, suas histórias indicam a eletricidade de sua presença; tudo que ele fazia era memorável - suas frases, suas festas. Onde Bacon ia, uma história surgia.
Ele morreu em 1992. Sua vida abrangeu o século. “O primeiro pintor moderno de projeção internacional que a Grã-Bretanha produziu”, definiu o historiador da arte John Richardson. Ele parecia uma explosão inesperada, de uma bomba esquecida nos escombros do pós-guerra britânico - um artista sem instrução formal, indomável, pintando telas de carnes esfoladas e bocas distorcidas, com aura de cerimônia macabra, cheirando a incenso e matadouro.
Esse é o Bacon que conhecemos - uma criatura de charme obscuro e trajes elegantes, cuja própria face foi esfolada por amantes, que o jogaram pelas janelas em meio às surras que buscava. As influências foram Nietzsche e Ésquilo; seu método, o “desespero exultante”.
“Uma menina profunda”, ele chamava a si mesmo, não alguém “vagueando na calçada da vida”.
Em seu novo livro, “Francis Bacon: Revelations”, Mark Stevens e Annalyn Swan - que ganharam o Prêmio Pulitzer por sua biografia de Willem de Kooning, de 2004 - argumentam que Bacon desencorajou investigações a respeito de sua vida porque manteve “um grande segredo”.
O que resta contar? “Bacon mantinha um segredo, não era somente um mestre radical da cena do século 20 que encontrava regozijo nas artes sombrias”, escreveram Stevens e Swan. “Ele era também um homem inglês inundado por uma ânsia por padrões convencionais de felicidade e conforto que lhe foram negados na infância e na juventude.” É a bondade e a decência de Bacon que os autores se esforçam dolorosamente para evocar - sua etiqueta impecável, sua generosidade. Ele pagava as despesas hospitalasres dos amigos. Era gentil com velhinhas.
Eu perdi a esperança, assim como vocês. O que mais os relacionamentos de Bacon, por extravagantes que fossem, nos mostram, a não ser um anseio selvagem? Ele não pintou essas conexões para os nossos olhos verem? O fato de ele se interessar pelo abjeto, dentro de fora das telas, o proíbe de escrever cartas afetuosas à mãe?
Tão francos a respeito da vida privada de Kooning, os autores se mostraram puritanos e quase antropológicos em relação a Bacon - tratamento que não se limita às bizarrices. Ao ler a obra, escutei a voz de David Attenborough recitando algumas frases. A respeito de um amigo de Bacon: “Ele tinha a grande vantagem, na opinião de alguns homossexuais, de ser extremamente bem dotado”. (Aqueles exigentes “alguns”!) A respeito do atribulado relacionamento de Bacon com seu grande amor, Peter Lacy: “Violência sexual não era algo saudável, é evidente, mas ‘algo saudável’ não era o que buscavam Bacon e Lucy, dois homossexuais que cresceram em lares pobres, escondendo sua sexualidade.”
Felizmente, esse leviatã entre os livros (são quase 900 páginas) contém pelo menos meia dúzia de argumentos mais enriquecedores. Trata-se do mais abrangente e detalhado relato da vida de Bacon, que destrói pilares centrais do mito em torno do artista.
Bacon cultivava a ideia de que havia esbarrado com a pintura após uma juventude gloriosamente dissipada. Na verdade, ele começou no design, algo de que se envergonhou depois. Ele qualificava a arte que passou a desprezar como “decoração”. Ele também não foi tão pouco instruído como afirmava; teve aulas e aprendeu bastante com vários amigos pintores. Ele possuía talento para encontrar mentores e, acima de tudo, reuniu uma rede de proteção formada por poderosas mulheres, frequentemente lésbicas, que lhe abriram portas nos cruciais primeiros anos de carreira (conhecido pela libertinagem, Bacon viveu com a babá de sua infância por vários anos ao se tornar adulto; ela dormia na mesa da cozinha e continuou com ele mesmo depois de ficar cega).
“Revelations” usa de um esplêndido e peculiar artifício. No fim de cada capítulo, há uma análise detalhada de alguma pintura. Em “Cabeça 1”, uma imagem brutal e arrebatadora; minha pulsação dispara só de pensar: “Uma linha tensa se estica puxando a orelha, como um professor de escola que puxa a orelha de um aluno mal comportado, e a forte tensão da linha parece destacar o rosto da cabeça, que então deixa de ter aparência humana.” Em vez de incorporar essas seções à vida, martelando-as de maneira enfadonha para se conectar, a obra é destacada por um pequeno espaço em branco. O espaço é somente de uma ou duas linhas, mas serve como exemplo contra o uso automático da arte para conhecer a vida ou vice-versa.
Em um livro com tamanha ambição e escopo, sua mais emocionante conquista é finalmente - e confortavelmente, para um artista tão reservado a respeito de sua obra - a modéstia de sua proposta, quanto ao que pode ser conhecido. / Tradução de Augusto Calil
- Informações do livro: 'Francis Bacon: Revelations' De Mark Stevens e Annalyn Swan Ilustrado, 861 páginas. Editora Alfred A. Knopf, US$ 60