Não se deixem impressionar pelas cerca de duas mil páginas das biografias recém-lançadas no Brasil sobre o primeiro-ministro britânico Winston Churchill e o presidente francês Charles de Gaulle. Suas vidas não cabem nelas. Tanto Churchill – Caminhando com o Destino (Companhia das Letras), de Andrew Roberts, como Charles de Gaulle – Uma Biografia (Zahar), de Julian Jackson, podem ser lidos como manuais para estadistas, tão em falta nos dias que correm. Em ambos os casos, a primeira lição é ver-se como predestinado.
É óbvio que muitos políticos se sentem predestinados e nem por isso são estadistas – alguns são, quando muito, apenas paródias. Ao acompanhar a trajetória de Churchill e De Gaulle, fica claro que o estadista é aquele que, para começar, dedica a vida inteira a tornar realidade a visão de grandeza que se manifesta desde cedo. Dito isso, é preciso resistir à tentação de ver um estadista num adolescente que anuncia a pretensão de governar seu país em nome de sonhos gloriosos, como é o caso dos dois biografados. Sabemos no que eles se tornaram, pois estamos no futuro, mas é importante ter em mente que um garoto sonhador não se transforma em Churchill ou De Gaulle apenas por força de vontade ou paixão. Corre-se o risco de acreditar nisso porque parte considerável da documentação usada nas biografias foi produzida pelos próprios personagens, na forma de correspondência e de memórias pessoais. E tanto Churchill como De Gaulle pareciam escrever tendo a pretensão de controlar a história sobre si mesmos e de como o mundo os veria no futuro. Para Roberts, por exemplo, Churchill escrevia cartas, mesmo as mais triviais, como se estivesse “escrevendo para a posteridade”. Já De Gaulle, como registra Jackson, não fazia por menos: “Não houve um momento sequer em minha vida no qual eu não tivesse certeza de que um dia estaria chefiando a França”. Nesse aspecto, o livro sobre Churchill, embora riquíssimo em fontes e claramente honesto ao interpretá-las, deixa-se levar pela lenda que o premiê criou zelosamente sobre o personagem que encarnou. A todo momento, os muitos defeitos do líder britânico são atribuídos, em alguma medida, ao espírito de sua época, enquanto suas inegáveis virtudes resultam de sua genialidade inata – ou seja, ora é um homem de seu tempo, ora está bem à frente dele. Tão à frente que, segundo frases pinçadas aqui e ali por Roberts, foi capaz de fazer previsões assombrosas, inclusive a respeito das qualidades da rainha Elizabeth II quando esta tinha apenas dois anos de idade. A clarividência de Churchill, no entanto, nada tinha de sobrenatural. Era fruto de sua determinação de lutar como um leão por aquilo em que acreditava. Seu maior valor, que o tornou talvez o maior estadista do século 20, era sua independência, fruto de notável autoconfiança. Pautou sua carreira política pelo firme propósito de defender o Império Britânico e a democracia. Não era fiel senão a si mesmo e a essa ideia de Grã-Bretanha. Não deixa de ser irônico que o grande momento desse imperialista orgulhoso tenha sido a liderança de seu país na Segunda Guerra Mundial, justamente o evento que sepultou o poderoso Império Britânico tal como o século 19 havia conhecido e que forjara Churchill. Quando Churchill morreu, em 1965, De Gaulle declarou: “Agora a Grã-Bretanha não é mais uma grande potência”. Roberts descreve Churchill como um racista benevolente, para quem as “raças superiores” tinham responsabilidade moral de amparar as menos favorecidas. Também era sensível às vicissitudes das classes pobres inglesas. “Pouca glória vejo num império capaz de comandar as ondas e incapaz de limpar seus esgotos”, dizia, numa de suas inúmeras boutades. Era violentamente contrário ao socialismo, mas defendia algo parecido com um Estado de Bem-Estar Social. Ou seja, jamais deixou de ser um aristocrata – o último a ocupar o governo britânico –, mas sabia o valor de um país satisfeito e bem alimentado. Churchill era impulsivo e egocêntrico. “Claro que sou egocêntrico. O que você consegue se não for?“, questionava, irônico como sempre. No manual do estadista, esta parece ser uma qualidade requerida, porque De Gaulle era exatamente assim: desobediente e instintivo. Um líder, acreditava De Gaulle, deve exercer “uma grande dose de egoísmo, de orgulho, de dureza e de manha”. Um integrante de seu estado-maior resumiu: “Ele exercia um comando que era independente, exclusivo, autoritário e egocêntrico, baseado na convicção de que seu julgamento era, em todas as situações,, o melhor de todos”. General, De Gaulle era um militar exótico, pois, ao contrário da maioria de seus pares, demonstrava profunda erudição e era prolífico escritor, mas, assim como Churchill, acreditava que o instinto e a capacidade de ação eram tão ou mais importantes que o intelecto. Foi como homem de ação que De Gaulle impressionou Churchill nos primeiros encontros entre os dois, antes da capitulação francesa ante a Alemanha nazista, em 1940. Ao longo dessa tumultuada relação, os dois gigantes se desentenderam quase ao ponto da ruptura, mas Churchill jamais deixou de ser leal à França Livre, liderada por De Gaulle. No momento em que este desobedeceu o marechal Pétain e não admitiu a capitulação francesa, em nome da luta pela “ideia da França” em meio à 2.ª Guerra, ganhou pronto apoio do governante britânico, que reconheceu imediatamente De Gaulle como “líder de toda a França Livre, onde quer que ela esteja”. Foi com esse espírito que De Gaulle fez seu famoso pronunciamento por rádio, de seu exílio em Londres, em 18 de junho de 1940, quando disse que “a chama da resistência francesa não deve ser extinta e não será extinta”. Foi esse discurso que o tornou o líder natural da França, ainda que a chamada “França Livre” tenha levado três anos para passar do discurso à realidade. Já De Gaulle tudo fazia para espezinhar Churchill e os demais Aliados na guerra. Sabia que era a parte fraca na parceria – era um general sem Exército – e, para se impor, só lhe restava a afronta. “Seu país desistiu de lutar, ele próprio é um refugiado, e se o rechaçarmos ele está acabado. Pois bem, dê uma olhada nele… Até parece Stalin com apoio de 200 divisões”, disse Churchill a seu médico sobre De Gaulle. O francês exigia ser consultado sobre o Dia D – o desembarque na Normandia em 1944 – e ter papel de liderança, o que obviamente foi ignorado por americanos e britânicos. No auge dos atritos, o então presidente dos EUA, Franklin Roosevelt, ameaçou mandar De Gaulle à Argélia. Quando a França foi libertada, De Gaulle, em comovente discurso, disse que a Paris “indignada” e “martirizada” havia sido “libertada por ela mesma, libertada por seu povo, com a ajuda dos Exércitos da França, com ajuda e assistência de toda a França, da França que luta, da única França que existe, da França real, da França eterna!”. Nenhuma menção aos Aliados nem à Resistência. A única França, na cabeça de De Gaulle, era a dele. A essa França imaginária, De Gaulle nunca renunciou. Sob seu comando, a Argélia ganhou sua independência, o Exército foi reconduzido ao controle civil, a França se tornou potência nuclear e estimulou a integração econômica europeia. Ao mesmo tempo, porém, seu governo – que era para ser provisório e durou dez anos – era visto como uma “monarquia republicana” movida a plebiscitos, em meio ao risco constante de guerra civil. Um ano antes da grande revolta de Maio de 68, De Gaulle desabafou a um amigo: “Tento dar à França a aparência de um país sólido, firme, confiante e em expansão, quando se trata de uma nação extremamente cansada, que só pensa no próprio conforto, que não quer saber de problemas, que não quer lutar, que não quer incomodar ninguém, nem os americanos, nem os ingleses. Estou no palco de um teatro, e finjo acreditar nisso; faço as pessoas acreditarem, acho que faço, que a França é um grande país, que a França é determinada e unida, quando não é nada disso”. Assim, o livro de Jackson oferece não uma história de De Gaulle, nem uma história da França, mas uma “certa ideia de França”, não por acaso o subtítulo original dessa fascinante obra, que nesse aspecto é superior à de Andrew Roberts sobre Churchill – que, embora esteja à altura do personagem, é excessivamente centrada na figura do premiê. Seja como for, desses dois livros, ambos extraordinários, emergem homens destinados a serem monumentos de si mesmos, cuja perenidade não depende nem dos humores políticos nem dos modismos iconoclastas. É JORNALISTA E DOUTOR EM HISTÓRIA PELA USP