Borges, Bioy Casares e Silvina Ocampo elencam o melhor da literatura fantástica


Mesclando autores identificados com o gênero e escolhas improváveis, trio argentino repensa o insólito literário

Por Paulo Nogueira

A nova edição da Antologia da Literatura Fantástica, organizada por Jorge Luís Borges, Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo, é um bom pretexto para se tentar entender que diabo (e o capiroto tem tudo a ver com isso, como insinuava Guimarães Rosa) é esse tal de “fantástico”. O mesmo que a modinha “fantasia”? Por vezes, essa definição parece tão precária quanto as paredes da casa de Usher e tão incongruentes quanto as escadarias de Escher. E não nos resta nem mesmo uma tautologia derrisória como o conceito de conto de Mário de Andrade: “É tudo o que o seu autor chama de conto”.

'Relativity' (1953), do artista holandêsMaurits Cornelis Escher Foto: M.C. Escher

Ora, a ficção não é nem quer ser a realidade, mas uma representação customizada desta. Rola um contrato tácito entre ficcionista e leitor, como diz Umberto Eco: “O autor finge que aquilo que está contando é verdade, e o leitor finge que acredita.” Mesmo na ficção mais naturalista, damos de barato que os personagens fazem coisas protocolares quando não estão em cena (banho, refeições, sono, etc). O fantástico, contudo, exacerba aquilo que o satírico latino Luciano batizou (e o poeta inglês Coleridge lacrou) de suspensão da descrença. Ou seja: o leitor aceita como verdadeiras as premissas de uma narrativa, mesmo que elas sejam impossíveis ou contraditórias, em troca de entretenimento. O proverbial “me engana que eu gosto”. Como num número ao vivo de ilusionismo, em que o prestidigitador serra ao meio sua encantadora assistente. 

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Numa acepção elástica, o fantástico pode abarcar o sobrenatural, o horror, a ficção científica, as distopias e... a fantasia (este último explora sobretudo a magia e mitologias alternativas). Claro que, em muitos casos (quem sabe, nos melhores), as coisas não são estanques – até porque a submissão canina aos axiomas do gênero descamba em clichê. Recorrente, sim, repetitivo, nunca. 

Borges e Bioy eram tão parças que até escreveram à quatro mãos (caso raro em escritores com esse pedigree). A primeira “obra” conjunta foi um anúncio para a empresa da família de Bioy: a coalhada La Martona! Já o pseudônimo mais fecundo foi Honório Bustos Domecq, criador do detetive dom Isidro Parodi, que resolve os mistérios desde o xilindró, onde está confinado por um crime que não cometeu. E há até uma foto dos dois: “Biorges”, sobreposição dos rostos de ambos. 

No prólogo desta Antologia, Bioy conta que “numa noite de 1937, conversávamos sobre literatura fantástica, e os contos que nos pareciam melhores, e um de nós disse que se os reuníssemos obteríamos um bom livro”. Muitos anos depois, numa monografia sobre Borges, Bioy exagerou um tiquinho: “É o melhor livro do mundo”. Em tempo: aquele “nós” incluía Silvina Ocampo, que estudou desenho com de Chirico e Fernand Léger em Paris. Pessoalmente, prefiro a irmã mais velha dela, Victoria, fundadora da icônica revista Sur. Bom, eu e Stravinski, Malraux, Camus e Le Corbusier, que arrastaram um bonde pela primogênita Ocampo. 

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Trata-se de um coletânea extravagante, por várias razões, quase todas apetitosas. Uma é a inclusão de autores que não se arvoravam em ficcionistas. Como o filósofo e cabalista Martin Buber, autor do magistral Tu e Eu. Buber era um especialista em hassidismo, um avatar do misticismo judaico. Descuido, o texto dele nesta antologia, é um dos mais curtos e mais arrepiantes. Outra a presença desconcertante é a do antropólogo James Frazer, com um excerto da sua obra-prima da etnografia, O Ramo de Ouro (há uma edição brasileira com um instrutivo prefácio de Darcy Ribeiro).

E pontifica o indefectível panteão borgiano, autores que Borges amava, embora não fossem canônicos ou olímpicos. Casos de Chesterton, Carlyle (tampouco ficcionista), Leon Bloy, Thomas de Quincey (do panteão, mas ausente nesta antologia), Swedenborg. Este último foi uma das figuras mais estrambólicas de literatura universal. Polímata sueco, tirou de letra todos os campos científicos do século 18. Aos 56 anos, Jesus lhe apareceu e lhe pediu que recauchutasse a mensagem bíblica – ordem que Swedenborg cumpriu à risca. Guardadas as devidas proporções, mais ou menos como se, no fim da vida, Stephen Hawking virasse pai de santo. 

Um dos méritos da antologia é realçar escritores menos conhecidos. Como Max Beerbohm, autor de um dos contos mais pungentes: Enoch Soames. Beerbohm era inglês mas morou boa parte da vida em Rapallo, onde foi tietado por gente da estirpe de Ezra Pound, Somerset Maugham, John Gielgud, Laurence Olivier e Truman Capote. Enoch Soames é a saga de um poeta que vende a alma ao diabo para descobrir o que o futuro dirá dele. “A posteridade – que me importa? Um homem morto ignora se as pessoas estão visitando seu túmulo, seu local de nascimento, inaugurando estátuas suas. Um morto não pode ler os livros que se escrevem sobre ele.” Por falar em morto e em túmulo, talvez o tantas vezes cabotino e ainda mais vezes cachaceiro James Joyce se contorcesse na cova ao saber que consta – e com duas entradas! – da antologia, com passagens breves do Ulisses. Nunca as fronteiras do fantástico foram tão porosas. 

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Claro que a ficção dos organizadores também bate ponto. E ambos com narrativas metaficcionais, isto é, que se referem explicitamente às engrenagens literárias. Bioy Casares com A Lula Opta por Sua Tinta, um delírio sardônico com um esplêndido incipit: “Aconteceu mais coisa nesta cidade nos últimos dias do que em toda a sua história.” Quanto a Borges, um geômetra da imaginação, ele era um fantasista em tudo: nos poemas, contos, bibliotecas, tigres, labirintos. E em Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, o próprio Bioy é citado junto com o autor: “Descobrimos que os espelhos têm algo de monstruoso. Então Bioy Casares lembrou que um dos heresiarcas de Uqbar declarara que os espelhos e a cópula são abomináveis, porque multiplicam o número de homens.” E a frase seguinte poderia servir de comentário geral ao melhor do gênero fantástico: “Os metafísicos de Tlön não buscam a verdade, nem mesmo a verossimilhança: buscam o assombro. Julgam que a metafísica é um ramo da literatura fantástica.” No caso desse delicioso volume, e para recorrer de novo ao título do livro de James Frazer, um ramo de ouro.

*PAULO NOGUEIRA É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (INTERMEIOS)

A nova edição da Antologia da Literatura Fantástica, organizada por Jorge Luís Borges, Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo, é um bom pretexto para se tentar entender que diabo (e o capiroto tem tudo a ver com isso, como insinuava Guimarães Rosa) é esse tal de “fantástico”. O mesmo que a modinha “fantasia”? Por vezes, essa definição parece tão precária quanto as paredes da casa de Usher e tão incongruentes quanto as escadarias de Escher. E não nos resta nem mesmo uma tautologia derrisória como o conceito de conto de Mário de Andrade: “É tudo o que o seu autor chama de conto”.

'Relativity' (1953), do artista holandêsMaurits Cornelis Escher Foto: M.C. Escher

Ora, a ficção não é nem quer ser a realidade, mas uma representação customizada desta. Rola um contrato tácito entre ficcionista e leitor, como diz Umberto Eco: “O autor finge que aquilo que está contando é verdade, e o leitor finge que acredita.” Mesmo na ficção mais naturalista, damos de barato que os personagens fazem coisas protocolares quando não estão em cena (banho, refeições, sono, etc). O fantástico, contudo, exacerba aquilo que o satírico latino Luciano batizou (e o poeta inglês Coleridge lacrou) de suspensão da descrença. Ou seja: o leitor aceita como verdadeiras as premissas de uma narrativa, mesmo que elas sejam impossíveis ou contraditórias, em troca de entretenimento. O proverbial “me engana que eu gosto”. Como num número ao vivo de ilusionismo, em que o prestidigitador serra ao meio sua encantadora assistente. 

Numa acepção elástica, o fantástico pode abarcar o sobrenatural, o horror, a ficção científica, as distopias e... a fantasia (este último explora sobretudo a magia e mitologias alternativas). Claro que, em muitos casos (quem sabe, nos melhores), as coisas não são estanques – até porque a submissão canina aos axiomas do gênero descamba em clichê. Recorrente, sim, repetitivo, nunca. 

Borges e Bioy eram tão parças que até escreveram à quatro mãos (caso raro em escritores com esse pedigree). A primeira “obra” conjunta foi um anúncio para a empresa da família de Bioy: a coalhada La Martona! Já o pseudônimo mais fecundo foi Honório Bustos Domecq, criador do detetive dom Isidro Parodi, que resolve os mistérios desde o xilindró, onde está confinado por um crime que não cometeu. E há até uma foto dos dois: “Biorges”, sobreposição dos rostos de ambos. 

No prólogo desta Antologia, Bioy conta que “numa noite de 1937, conversávamos sobre literatura fantástica, e os contos que nos pareciam melhores, e um de nós disse que se os reuníssemos obteríamos um bom livro”. Muitos anos depois, numa monografia sobre Borges, Bioy exagerou um tiquinho: “É o melhor livro do mundo”. Em tempo: aquele “nós” incluía Silvina Ocampo, que estudou desenho com de Chirico e Fernand Léger em Paris. Pessoalmente, prefiro a irmã mais velha dela, Victoria, fundadora da icônica revista Sur. Bom, eu e Stravinski, Malraux, Camus e Le Corbusier, que arrastaram um bonde pela primogênita Ocampo. 

Trata-se de um coletânea extravagante, por várias razões, quase todas apetitosas. Uma é a inclusão de autores que não se arvoravam em ficcionistas. Como o filósofo e cabalista Martin Buber, autor do magistral Tu e Eu. Buber era um especialista em hassidismo, um avatar do misticismo judaico. Descuido, o texto dele nesta antologia, é um dos mais curtos e mais arrepiantes. Outra a presença desconcertante é a do antropólogo James Frazer, com um excerto da sua obra-prima da etnografia, O Ramo de Ouro (há uma edição brasileira com um instrutivo prefácio de Darcy Ribeiro).

E pontifica o indefectível panteão borgiano, autores que Borges amava, embora não fossem canônicos ou olímpicos. Casos de Chesterton, Carlyle (tampouco ficcionista), Leon Bloy, Thomas de Quincey (do panteão, mas ausente nesta antologia), Swedenborg. Este último foi uma das figuras mais estrambólicas de literatura universal. Polímata sueco, tirou de letra todos os campos científicos do século 18. Aos 56 anos, Jesus lhe apareceu e lhe pediu que recauchutasse a mensagem bíblica – ordem que Swedenborg cumpriu à risca. Guardadas as devidas proporções, mais ou menos como se, no fim da vida, Stephen Hawking virasse pai de santo. 

Um dos méritos da antologia é realçar escritores menos conhecidos. Como Max Beerbohm, autor de um dos contos mais pungentes: Enoch Soames. Beerbohm era inglês mas morou boa parte da vida em Rapallo, onde foi tietado por gente da estirpe de Ezra Pound, Somerset Maugham, John Gielgud, Laurence Olivier e Truman Capote. Enoch Soames é a saga de um poeta que vende a alma ao diabo para descobrir o que o futuro dirá dele. “A posteridade – que me importa? Um homem morto ignora se as pessoas estão visitando seu túmulo, seu local de nascimento, inaugurando estátuas suas. Um morto não pode ler os livros que se escrevem sobre ele.” Por falar em morto e em túmulo, talvez o tantas vezes cabotino e ainda mais vezes cachaceiro James Joyce se contorcesse na cova ao saber que consta – e com duas entradas! – da antologia, com passagens breves do Ulisses. Nunca as fronteiras do fantástico foram tão porosas. 

Claro que a ficção dos organizadores também bate ponto. E ambos com narrativas metaficcionais, isto é, que se referem explicitamente às engrenagens literárias. Bioy Casares com A Lula Opta por Sua Tinta, um delírio sardônico com um esplêndido incipit: “Aconteceu mais coisa nesta cidade nos últimos dias do que em toda a sua história.” Quanto a Borges, um geômetra da imaginação, ele era um fantasista em tudo: nos poemas, contos, bibliotecas, tigres, labirintos. E em Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, o próprio Bioy é citado junto com o autor: “Descobrimos que os espelhos têm algo de monstruoso. Então Bioy Casares lembrou que um dos heresiarcas de Uqbar declarara que os espelhos e a cópula são abomináveis, porque multiplicam o número de homens.” E a frase seguinte poderia servir de comentário geral ao melhor do gênero fantástico: “Os metafísicos de Tlön não buscam a verdade, nem mesmo a verossimilhança: buscam o assombro. Julgam que a metafísica é um ramo da literatura fantástica.” No caso desse delicioso volume, e para recorrer de novo ao título do livro de James Frazer, um ramo de ouro.

*PAULO NOGUEIRA É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (INTERMEIOS)

A nova edição da Antologia da Literatura Fantástica, organizada por Jorge Luís Borges, Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo, é um bom pretexto para se tentar entender que diabo (e o capiroto tem tudo a ver com isso, como insinuava Guimarães Rosa) é esse tal de “fantástico”. O mesmo que a modinha “fantasia”? Por vezes, essa definição parece tão precária quanto as paredes da casa de Usher e tão incongruentes quanto as escadarias de Escher. E não nos resta nem mesmo uma tautologia derrisória como o conceito de conto de Mário de Andrade: “É tudo o que o seu autor chama de conto”.

'Relativity' (1953), do artista holandêsMaurits Cornelis Escher Foto: M.C. Escher

Ora, a ficção não é nem quer ser a realidade, mas uma representação customizada desta. Rola um contrato tácito entre ficcionista e leitor, como diz Umberto Eco: “O autor finge que aquilo que está contando é verdade, e o leitor finge que acredita.” Mesmo na ficção mais naturalista, damos de barato que os personagens fazem coisas protocolares quando não estão em cena (banho, refeições, sono, etc). O fantástico, contudo, exacerba aquilo que o satírico latino Luciano batizou (e o poeta inglês Coleridge lacrou) de suspensão da descrença. Ou seja: o leitor aceita como verdadeiras as premissas de uma narrativa, mesmo que elas sejam impossíveis ou contraditórias, em troca de entretenimento. O proverbial “me engana que eu gosto”. Como num número ao vivo de ilusionismo, em que o prestidigitador serra ao meio sua encantadora assistente. 

Numa acepção elástica, o fantástico pode abarcar o sobrenatural, o horror, a ficção científica, as distopias e... a fantasia (este último explora sobretudo a magia e mitologias alternativas). Claro que, em muitos casos (quem sabe, nos melhores), as coisas não são estanques – até porque a submissão canina aos axiomas do gênero descamba em clichê. Recorrente, sim, repetitivo, nunca. 

Borges e Bioy eram tão parças que até escreveram à quatro mãos (caso raro em escritores com esse pedigree). A primeira “obra” conjunta foi um anúncio para a empresa da família de Bioy: a coalhada La Martona! Já o pseudônimo mais fecundo foi Honório Bustos Domecq, criador do detetive dom Isidro Parodi, que resolve os mistérios desde o xilindró, onde está confinado por um crime que não cometeu. E há até uma foto dos dois: “Biorges”, sobreposição dos rostos de ambos. 

No prólogo desta Antologia, Bioy conta que “numa noite de 1937, conversávamos sobre literatura fantástica, e os contos que nos pareciam melhores, e um de nós disse que se os reuníssemos obteríamos um bom livro”. Muitos anos depois, numa monografia sobre Borges, Bioy exagerou um tiquinho: “É o melhor livro do mundo”. Em tempo: aquele “nós” incluía Silvina Ocampo, que estudou desenho com de Chirico e Fernand Léger em Paris. Pessoalmente, prefiro a irmã mais velha dela, Victoria, fundadora da icônica revista Sur. Bom, eu e Stravinski, Malraux, Camus e Le Corbusier, que arrastaram um bonde pela primogênita Ocampo. 

Trata-se de um coletânea extravagante, por várias razões, quase todas apetitosas. Uma é a inclusão de autores que não se arvoravam em ficcionistas. Como o filósofo e cabalista Martin Buber, autor do magistral Tu e Eu. Buber era um especialista em hassidismo, um avatar do misticismo judaico. Descuido, o texto dele nesta antologia, é um dos mais curtos e mais arrepiantes. Outra a presença desconcertante é a do antropólogo James Frazer, com um excerto da sua obra-prima da etnografia, O Ramo de Ouro (há uma edição brasileira com um instrutivo prefácio de Darcy Ribeiro).

E pontifica o indefectível panteão borgiano, autores que Borges amava, embora não fossem canônicos ou olímpicos. Casos de Chesterton, Carlyle (tampouco ficcionista), Leon Bloy, Thomas de Quincey (do panteão, mas ausente nesta antologia), Swedenborg. Este último foi uma das figuras mais estrambólicas de literatura universal. Polímata sueco, tirou de letra todos os campos científicos do século 18. Aos 56 anos, Jesus lhe apareceu e lhe pediu que recauchutasse a mensagem bíblica – ordem que Swedenborg cumpriu à risca. Guardadas as devidas proporções, mais ou menos como se, no fim da vida, Stephen Hawking virasse pai de santo. 

Um dos méritos da antologia é realçar escritores menos conhecidos. Como Max Beerbohm, autor de um dos contos mais pungentes: Enoch Soames. Beerbohm era inglês mas morou boa parte da vida em Rapallo, onde foi tietado por gente da estirpe de Ezra Pound, Somerset Maugham, John Gielgud, Laurence Olivier e Truman Capote. Enoch Soames é a saga de um poeta que vende a alma ao diabo para descobrir o que o futuro dirá dele. “A posteridade – que me importa? Um homem morto ignora se as pessoas estão visitando seu túmulo, seu local de nascimento, inaugurando estátuas suas. Um morto não pode ler os livros que se escrevem sobre ele.” Por falar em morto e em túmulo, talvez o tantas vezes cabotino e ainda mais vezes cachaceiro James Joyce se contorcesse na cova ao saber que consta – e com duas entradas! – da antologia, com passagens breves do Ulisses. Nunca as fronteiras do fantástico foram tão porosas. 

Claro que a ficção dos organizadores também bate ponto. E ambos com narrativas metaficcionais, isto é, que se referem explicitamente às engrenagens literárias. Bioy Casares com A Lula Opta por Sua Tinta, um delírio sardônico com um esplêndido incipit: “Aconteceu mais coisa nesta cidade nos últimos dias do que em toda a sua história.” Quanto a Borges, um geômetra da imaginação, ele era um fantasista em tudo: nos poemas, contos, bibliotecas, tigres, labirintos. E em Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, o próprio Bioy é citado junto com o autor: “Descobrimos que os espelhos têm algo de monstruoso. Então Bioy Casares lembrou que um dos heresiarcas de Uqbar declarara que os espelhos e a cópula são abomináveis, porque multiplicam o número de homens.” E a frase seguinte poderia servir de comentário geral ao melhor do gênero fantástico: “Os metafísicos de Tlön não buscam a verdade, nem mesmo a verossimilhança: buscam o assombro. Julgam que a metafísica é um ramo da literatura fantástica.” No caso desse delicioso volume, e para recorrer de novo ao título do livro de James Frazer, um ramo de ouro.

*PAULO NOGUEIRA É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (INTERMEIOS)

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