A busca continua. Agora com o próprio idealizador da caçada (ou captura ou resgate, o que seja) à frente da expedição. Há coisa de três meses anunciei aqui a vinda ao Brasil do premiado documentarista Joshua Grossberg, para confirmar ou não a permanência entre nós das latas com a versão original de Soberba (The Magnificent Ambersons), enviadas para Orson Welles, então no Rio filmando É Tudo Verdade. Pois bem, Grossberg já chegou.
Planejava encontrá-lo, para saber mais do projeto, mas ele, com a ajuda de Josafá Veloso, cinéfilo brasileiro incorporado à sua equipe, me achou primeiro. Resultado: acabei entrevistado para The Lost Print (A Cópia Perdida), o documentário sobre o sumiço de Soberba que lhe encomendou o canal de TV por assinatura Turner Classic Movies. Tão obstinado quanto aqueles que, há pouco mais de um século, embrenharam-se pela selva amazônica atrás, sem êxito, do coronel Fawcett, Grossberg não perdeu um milímetro de sua esperança de encontrar por estas bandas o segundo Rosebud de Welles. O primeiro Rosebud – o trenó de Charles Foster Kane – acabou incinerado. Igual destino a RKO, produtora de Soberba, reservara para a cópia com 132 minutos que o montador Robert Wise enviou para Welles apreciar, sugerir cortes e chancelar, em março de 1942. Não há prova documental de que ela tenha sido destruída, apenas documentos que confirmam sua permanência, até dezembro de 1944, no escritório carioca da RKO, para onde teria sido devolvida por Adhemar Gonzaga, dono dos estúdios da Cinédia, em que cenas de interiores de É Tudo Verdade haviam sido rodadas, e a quem Welles confiara a guarda de sua versão de Soberba. À exceção de Cidadão Kane, todos os filmes de Welles sofreram algum tipo de interferência do andar de cima. As vicissitudes que enfrentou durante e depois das filmagens de Soberba e É Tudo Verdade superam até as de A Marca da Maldade (Touch of Evil), que durante 40 anos só pôde ser visto com os cortes impostos pelo produtor, até ser todo reconstruído pelo cineasta. Produções contíguas e subordinadas ao mesmo estúdio, as sagas de Soberba e É Tudo Verdade imbricam-se no projeto de Grossberg. Não há como falar de uma sem se reportar à outra. Welles concluiu as filmagens de Soberba, delegou a Wise a tarefa de editá-lo de acordo com suas instruções, e foi (ou melhor, veio) cuidar de sua tumultuada aventura latino- americana. Que deu no que deu. Enquanto Welles enfrentava os percalços inerentes a uma empreitada da envergadura de É Tudo Verdade, as pressões do Departamento de Estado norte-americano, patrocinador do projeto, alarmado com as “extravagâncias” do cineasta, e os boicotes da ditadura Vargas, irritada com o “excesso de atenção” dado no filme a sambistas negros e favelados, os chefões da RKO, decepcionados com a primeira reação do público a Soberba, meteram-lhe a tesoura e acrescentaram-lhe um final feliz, providenciado por Wise e Fred Fleck. Soberba estreou nos EUA em julho de 1942 com Welles ainda no Brasil – e menos 44 minutos de projeção. Teria sido o primeiro Santo Graal do cineasta se a busca pelos fragmentos de É Tudo Verdade parcialmente recuperados, não tivesse ocorrido antes. O maior obstáculo dos envolvidos no mutirão de The Lost Print é a ausência de potenciais informantes sobre o que aconteceu com a cópia perdida. Todos os contemporâneos da passagem de Welles pelo Brasil, a começar por Vinicius de Moraes, já morreram, e com os ‘burrocratas’ da cultura bolsonarizada a equipe de Grossberg nunca pôde contar para superar as limitações impostas pela pandemia, que fechou o acesso a arquivos públicos, à Biblioteca Nacional e às cinematecas daqui. Não obstante, há meses que ela segue o rastro de antigos funcionários da RKO do Rio nos anos 1940, atrás de uma pista. Até um investigador particular já entrou na jogada. Só falta agora rezar para São Longuinho.