Na zona limítrofe entre a infância perdida e a juventude recém alcançada, o jovem Mauricio contempla os próprios anseios. Aparentemente banal e já conhecida dentro da literatura, a premissa é lapidada com árduo empenho em Limite Branco, romance de estreia de Caio Fernando Abreu. Antes de se consagrar um dos maiores contistas da literatura brasileira, o escritor gaúcho foi um romancista de primeira viagem. Isso já seria mérito suficiente para a reedição de Limite Branco, que retorna às livrarias pela Companhia das Letras. Mas, o livro nos oferece ainda um retrato do escritor quando jovem. Embora o próprio Caio considerasse a narrativa antiquada e inocente em excesso, as páginas do romance revelam aspectos de uma geração que se apresenta longínqua e inacessível.
Escrito por Caio em 1967 e publicado em 1971, o romance recupera um estilo de vida perdido com a ascensão das grandes metrópoles, na passagem para os centros urbanos, como a Porto Alegre em expansão retratada em Limite Branco. O ambiente familiar de Maurício, o jovem em conflito com o próprio lugar no mundo, reflete a decadência da burguesia rural, outrora elite agrária do país. A transfiguração da experiência da juventude com a passagem para a vida adulta é um grande mote da literatura universal, presente desde Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe, com a tradição do romance de formação. A experiência de Maurício ressoa nos anseios do Stephen Dedalus de James Joyce, em O Retrato do Artista Quando Jovem. O conflito entre a sexualidade em despertar e a culpabilidade pelos desejos se dá pela sinestesia da narração, o que aproxima o livro das percepções do jovem Dedalus.
Caio Fernando Abreu traz para o cenário brasileiro anterior à contracultura uma tendência que ganhou fertilidade no terreno norte-americano das décadas de 1940 e 1950: o retrato da juventude problemática. Este pendor ganhou suas melhores formas, por exemplo, nas mãos de J. D. Salinger e seu Holden Caulfield, protagonista de O Apanhador no Campo de Centeio, e com os adolescentes desajustados da sulista Carson McCullers – cujos principais contos Caio Fernando Abreu traduziu para o português. O romance de estreia de Abreu não se limita a esses diálogos e demonstra a extensa bagagem literária do autor em seus dezenove anos, enquanto era aluno do curso de Letras da UFRGS, ao lado dos amigos: o escritor João Gilberto Noll e a pintora Maria Lídia Magliani. Desde as referências a clássicos da literatura até as ressonâncias, como a aproximação com o estilo intimista de Clarice Lispector em seu Perto do Coração Selvagem, tudo parece apontar para o domínio que Caio para narrativa. Encontramos em Maurício um mergulho profundo na interioridade da personagem em conflito, o que pressupõe uma individualização da experiência. Contudo, há certo teor universal nos anseios da juventude, que desaguam no sentimento de desajuste e na incessante busca por pertencimento.
referencePara o protagonista de Caio, as vivências relacionadas ao mundo adulto, como a sexualidade, estão inexoravelmente ligadas à perda, principalmente do conforto da infância. A morte, grande tema da literatura do autor, que se estruturaria com mais firmeza na década de 1980 em livros como Morangos Mofados e Os Dragões Não Conhecem O Paraíso, ronda Limite Branco de forma latente. Em certa medida, podemos ver o jovem Caio se debatendo com o grande dilema da escrita do século XX: a conciliação entre o teor social e a estética do romance. O maior trunfo de Limite Branco é nos revelar como o escritor viria se tornar. Daí o interesse no título original do romance: Tempo de Fazer. Encontramos no livro um belo paralelo entre o protagonista Maurício em seus anos de formação e o escritor nas primeiras elaborações de sua literatura. É neste tempo que Maurício se vê confrontado pela própria vida, o encontro marcado que muitos tentam adiar.