Em Esperando Godot, a mais conhecida peça do dramaturgo irlandês Samuel Beckett, dois personagens aguardam resignados por uma figura que nunca chega. O texto de Beckett, uma das mais emblemáticas ficções do século 20, é considerado o exemplo máximo do surrealismo e do absurdo dentro da literatura universal. Mas, no Brasil, essas tendências são representadas por um discreto escritor mineiro, não afeito a entrevistas ou grandes exibições, tido como o grande mestre do surrealismo nacional: Campos de Carvalho (1916-1998). O título do livro, O Púcaro Búlgaro – de volta às livrarias pela Editora Autêntica, que tem trabalhado na reedição da obra do escritor – parece um jogo de palavras. Na novela, publicada originalmente em 1964, a espera não é por uma pessoa, como no Godot de Beckett, mas por uma viagem.
Décadas antes do José Costa de Chico Buarque se encantar por terras húngaras no romance Budapeste, o narrador-personagem de Carvalho se fascinou pela Bulgária ao colocar os olhos em um púcaro, espécie de cerâmica própria dos etruscos, que supostamente vinha do país europeu. O protagonista de Campos de Carvalho, autorreferido como o Autor, define a si mesmo: “Um escritor que nem sequer conseguiu escrever, um herdeiro que não herdou nada que prestasse, um cidadão que nasceu numa cidadezinha e acabou sendo menor que a sua cidade, um desmemoriado para as coisas sem importância e agora para as mais importantes”.
O Púcaro Búlgaro é todo composto em linguagem experimental. Mais do que as construções nonsense, a forma do livro demonstra a ousadia de Campos de Carvalho. A obra é inclassificável. A novela, uma das possíveis categorias para a narrativa, é usualmente vinculada à tradição literária, com dicção que remete ao clássico. Entretanto, grandes nomes da literatura como Thomas Mann e Franz Kafka subverteram o gênero em direção à literatura moderna. Campos de Carvalho em nada perde para esses mestres estrangeiros. Mas O Púcaro Búlgaro pode ainda ser considerado um romance, vinculado à tradição pós modernista do experimentalismo. Seja como for, estamos diante de uma obra ímpar na literatura brasileira, com traços do surrealismo e do absurdismo.
O radicalismo da língua pode levar até mesmo os leitores mais experientes ao dicionário. Esse respiro ocasional torna o livro de Campos de Carvalho uma peça complexa das letras nacionais. Não estamos acostumados com o humor ácido, marcado por certa ironia afiada, que vem de uma longa tradição da qual fazem parte nomes que vão de Machado de Assis até Victor Heringer. A chegada do homem à Lua, evento que o mundo só acompanharia estupefato em 1969, é sempre referida em O Púcaro Búlgaro, em exemplo da filiação ao espírito da década de 1960. Mas não só isso. A narrativa se localiza em um período de grandes revoluções políticas e culturais, como a Guerra Fria, em especial, com a crise dos mísseis em 1962, quando Estados Unidos e União Soviética estiveram à beira de um conflito nuclear; ou o advento da contracultura, na qual o livro pode mesmo ser inserido, por desafiar o status quo. Em 1964, ano de publicação da obra, a ditadura civil-militar foi instaurada no Brasil. Pouco antes, em 1963, John F. Kennedy, então presidente dos Estados Unidos, foi assassinado. No início da década, o russo Yuri Gagarin imortalizava a frase “A Terra é azul” ao observar o planeta do espaço. Em meio ao turbilhão de agitações mundiais e nacionais, Campos de Carvalho traduziu, em termos estéticos, o absurdo de seu tempo histórico.
O escritor mineiro recorreu à realidade transfigurada, com o surrealismo e a desconstrução da linguagem, presentes desde o seu mais famoso livro, A Lua vem da Ásia (1956) até sua despedida da literatura, com O Púcaro Búlgaro. Carvalho eleva os momentos vazios e aparentemente sem sentido. Em suas obras, este mundo distorcido e estranhado, que só a literatura pode proporcionar, é tão verdadeiro quanto a realidade. “Copacabana é um bairro em que se pode viver tranquilamente, desde que se seja louco”, ironiza o autor. Misto de um Jorge Luís Borges desprovido de lógica e de um Murilo Rubião menos fantasioso, Carvalho usa do nonsense para expor a falta de fundamento das instituições e dos comportamentos do cidadão comum. Para o escritor, desconfiado dos passos da humanidade, o século XXI provavelmente não teria sentido. Na falta de uma expedição à Bulgária, há sempre uma pequena fuga na estranheza da literatura de Campos de Carvalho.