Em seu recente e soberbo ensaio sobre as pinturas de Philip Guston – com comentários bem contundentes sobre a exposição covarde e desanimada no Museu de Belas Artes de Boston – meu colega Sebastian Smee observou com que frequência os artistas do século 20 foram atraídos por “fragmentos, escombros e ruínas”. Falando mais amplamente, muitas formas incompletas – o rabisco preliminar, o esboço, o rascunho abandonado, o caderno de anotações – parecem oferecer entrada para o verdadeiro eu de um artista, para garantir sinceridade e autenticidade (talvez fictícias).
Essa abertura desprotegida e às vezes chocante explica parte do apelo de Charles Baudelaire: Late Fragments, como o tradutor Richard Sieburth intitula este belo novo livro. O volume não apenas reimprime os rabiscos, observações aleatórias e inventários do segundo maior poeta da França – o maior sendo Victor Hugo, como Andre Gide observou – todo esse material incipiente é contextualizado pela escrita erudita e elegante de Sieburth. Ele é o guia perfeito para esses “estilhaços fraturados e quase cubistas de autorretrato, apresentados em notações que muitas vezes mal chegam ao nível de frases”.
Sieburth, professor emérito de literatura comparada na Universidade de Nova York, restringe seu foco aos últimos seis anos da curta vida de Baudelaire, começando em 1861, quando o dândi e flâneur parisiense abandonou o verso altamente polido e rigidamente controlado de Les Fleurs du Mal em favor de uma anotação mais selvagem e meio louca. Aos 40 anos, Baudelaire era uma sombra de seu antigo eu, esmagado por dívidas impagáveis, sofrendo as sequelas de um derrame e enfrentando o início da debilidade sifilítica. Em 1866, ele tinha dificuldade de ficar de pé. “Vertigens e vômitos repetidos por três dias”, observou ele. “Fui obrigado a deitar de costas (...), pois mesmo agachado no chão, continuava caindo de cabeça”. Ele se mantinha com uma dieta de ópio, remédios, beladona e conhaque.
Ele também fez listas – o recurso do procrastinador – de projetos que jamais viria a começar (entre eles uma tradução de Satíricon, de Petrônio), descreveu noites escuras da alma e registrou momentos grotescos da vida na Bélgica, onde alugara o quarto 39 do Hotel du Grand Miroir. De alguma forma, Baudelaire conseguiu produzir um punhado de poemas em prosa, o mais conhecido dos quais, intitulado “Qualquer lugar fora do mundo”, começa com firmeza: “A vida é um hospital onde cada paciente é movido pelo desejo de trocar de cama”.
Tal pensée se encaixa na tradição moralista francesa de Montaigne, Pascal e La Rochefoucauld, mas Baudelaire sempre considerou Edgar Allan Poe, que ele traduziu, como seu irmão espiritual. Assim, a seção mais famosa de seus diários íntimos é rotulada “Mon coeur mis à nu” [algo como “Meu coração desnudado”]. A frase deriva diretamente de “Marginalia” de Poe:
“Se alguém ambicioso tem a fantasia de revolucionar, de uma só vez, o mundo universal do pensamento humano, da opinião humana e do sentimento humano (...) tudo o que ele precisa fazer é escrever e publicar um livrinho. Seu título deve ser simples – umas poucas palavras simples: “Meu coração desnudado”. Mas este livrinho deve ser fiel ao seu título (...). Mas escrevê-lo é um problema. Ninguém jamais se atreverá a escrevê-lo. Ninguém conseguiria escrevê-lo, mesmo que ousasse. O papel iria queimar a cada toque da pena de fogo”.
Aceitando o desafio de Poe, as anotações de Baudelaire são francamente honestas, geralmente provocativas, muitas vezes feias e misóginas. Autoacusações se alternam com clichês de autoajuda. Ele ostenta sua alma rachada, cindida entre o pecado e a redenção. Aqui está uma amostra de suas observações mais breves:
“O Dândi precisa aspirar incessantemente ao sublime; precisa viver e dormir diante de um espelho”.
“O ato de amor se assemelha muito a uma tortura ou a um procedimento cirúrgico”.
“Quanto a mim, digo que o único fim e o prazer supremo de fazer amor está na certeza de que se está fazendo o mal. E tanto o homem quanto a mulher sabem desde o nascimento que é no mal que reside todo o prazer sensual”.
“Cultivei minha histeria com alegria e terror. Agora, sou continuamente tomado pela vertigem e hoje, 23 de janeiro de 1862, recebi um aviso especial: senti o vento da asa da imbecilidade passar sobre mim”.
Baudelaire encerra “My Heart Laid Bare” com uma visão do fim do mundo, causado pela “degradação do coração humano”, um “ataque de animalidade generalizada” e governos preservando seu poder com “métodos que fariam estremecer os homens de hoje”. Desde os tempos antigos, os poetas também são videntes.
Em “Belgium Disrobed”, a segunda metade de Late Fragments, Baudelaire – autoexilado em Bruxelas – reúne centenas de observações ácidas sobre os habitantes daquele país, que ele compara a macacos e moluscos. Tão selvagens quanto Swift ou Céline, lembrando um pouco o Dicionário das ideias feitas de Flaubert, essas páginas empolgantes denunciam uma cultura burguesa de egoísmo e mediocridade. “Um belga nunca cede o direito de passagem a uma mulher na calçada”. Dado o tom geral de puro desgosto, não é de se admirar que o doente e alienado Baudelaire concluísse: “Devemos dizer que o mundo se tornou inabitável para mim?”.
Em março de 1866 ele sofreu um segundo derrame, que logo causou paralisia parcial e afasia. Depois que sua mãe o transferiu de volta para a França, Baudelaire enfrentou um último ano praticamente incapaz de falar e morreu em 1867 aos 46 anos. Em Bruxelas, freiras exorcizaram seu antigo quarto de hospital.
Uma nota final: se você nunca leu este grande poeta, o primeiro a registrar os choques e horrores da civilização metropolitana, pegue um exemplar de Les Fleurs du Mal. Existem inúmeras traduções, entre elas uma muito recente de Aaron Poochigian, mas continuo gostando mais da versão vencedora do National Book Award de Richard Howard, que morreu em março. Certa vez, abri um ensaio sobre sua tradução com uma frase que também se aplica aos Late Fragments de Sieburth: “No retrato da desolação espiritual ninguém supera Baudelaire”.
Late Fragments: Flares, My Heart Laid Bare, Prose Poems, Belgium Disrobed
Charles Baudelaire
Traduzido por Richard Sieburth
Yale - 440 páginas - US $30
Michael Dirda faz resenhas de livros para o Washington Post. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU