O tempo de Caymmi. Encontrá-lo era fundamental para a diretora Daniela Broitman. Depois de mergulhar em arquivos de televisão em busca de reportagens e entrevistas de Dorival Caymmi (1914-2008), ela percebeu que os fragmentos que encontrava aqui e alí não davam conta de explicar o artista que parou para ouvir o barulho do vento na vela de uma embarcação e o som das ondas; na maré baixa. Nada a ver com aquela chiste preconceituosa da tal “velocidade Caymmi”, em referência à sua baianidade.
A solução pensada pela diretora para costurar o documentário Dorival Caymmi - Um Homem de Afetos, que chegou aos cinemas em 25 de abril, no mês em que o compositor completaria 110 anos - ele nasceu em 30 de abril de 1914 -, foi buscar algo totalmente inédito e íntimo. Encontrou. Uma espécie de entrevista esquecida no arquivo de uma produtora falida há anos. Um encontro bastante informal ocorrido em 1998, na casa de Marcelo Machado, grande amigo do compositor.
“Era fundamental que o filme tivesse esse silêncio, a escuta dele e que o representa. Ter a personalidade, a alma de Caymmi. Não queria apenas dar o meu ponto de vista, por mais que uma obra tenha sempre muito de seu autor. Caymmi me guiou muito. Me sentia conectado a ele”, diz Daniela, que não conheceu o compositor.
É nesse material que Caymmi diz algo talvez muito maior do que seu sábio conselho a quem nunca foi à Bahia. “Aprendi a gostar de mim, gostando dos outros”. Em outro momento, confessa que compunha como se falasse “por sua gente”. Está posto, assim, o homem de afetos.
Outro trecho inédito é o que mostra cenas de um ensaio na casa de Tom Jobim. Os dois cantam juntos. “Não são imagens tecnicamente perfeitas, mas têm um significado muito grande”, diz Daniela.
Daniela optou, ao contrário do que ocorre em muitos documentários, restringir bastante o número de depoentes. Os filhos Nana, Dori e Danilo, Gilberto Gil, Caetano Veloso, o neto Gabriel, a ex-nora e compositora Ana Terra, o produtor musical Guto Burgos e a ex-cozinheira da família Cristiane Oliveira. Todos muito perto de Caymmi. “Não queria experts em músicas, análises etc”, pontua a diretora.
Gilberto Gil
O longo, afirma Daniela, também tem a missão de colocar a música de Caymmi para a nova geração. Caetano analisa que a Tropicália tem ecos do compositor baiano. Gil diz: “Sou fluxo dele”.
Dori, seu filho do meio, declara no documentário que exímios violonistas brasileiros, como Jobim, Baden Powell e Luiz Bonfá, tentaram reproduzir o “sabor” do violão de Caymmi. “Nunca conseguiram”, diz.
“Um dos meus intuitos era fazer com que o legado de Caymmi se torne conhecido pelas novas gerações. Todo mundo canta Caymmi e não sabe”, diz Daniela. O filme teve sua premiére no festival É Tudo Verdade, em 2019. Depois, passou por países como França, Portugal, Itália e Polônia.
Dora, Marina, Rosa Morena...e Stella
O documentário Dorival Caymmi - Um Homem de Afetos também olha para o Caymmi “da porta de casa para dentro”, como costumava ser referir Stella, sua mulher por mais de 60 anos e com quem ele teve seus três filhos. São momentos que lançam dúvidas sobre as inspirações do compositor para as canções que levam nome ou falam de mulheres.
Marina, aquela do samba canção em que ele pede que não pinte o rosto, existiu ou a inspiração veio de uma frase inocente que o filho Dori, quando menino, dizia sempre que se via enfezado com algo: “tô de mal com você!”. A Vizinha do Lado, a que “mexe com as cadeiras” para cá e para lá metida em um vestido grená, era apenas imaginação de Caymmi?
Nana, afastada dos palcos desde 2015, em um dos momentos sublimes do documentário, canta à capela Não Tem Solução. A letra de Caymmi começa com os versos “aconteceu um novo amor/ que não podia acontecer/não era hora de amar/agora, o que é que vou fazer?”. Para ela, não há prova maior do que o pai fez da porta para fora.
A cantora foi quem mais se sentiu o peso das contradições do ser humano Caymmi. Ao terminar seu primeiro casamento, ouviu do pai: “Filha minha não larga o marido”. As pazes foram feitas sete anos depois, com uma convocação para que Nana o acompanhasse em um programa de televisão. Nada de explicações. Apenas o aceno de que o exílio sentimental havia terminado.
Dorival Caymmi
Todas essas colocações podem parecer algo banal diante da obra de Caymmi e da própria intenção do documentário de Daniela Broitman. Não é. Jornalista, documentarista e terapeuta - ela também assina a direção de Marcelo Yuka no Caminho das Setas -, Daniela afirma que prefere justamente ir mais a fundo. “Gosto de mostrar o artista não celebridade. Olhar para ele fora dos palcos No caso de Caymmi, o marido, o pai, o amigo. Toda sua complexidade”, diz.
Essas histórias extra música desenham outra personagem tão importante quanto Caymmi. Uma presença onipresente nos rumos do compositor - e do próprio documentário: sua mulher Stella. A ex-cantora, além de superar os deslizes do marido, enquadrou Vinicius de Moraes quando ele queria desistir da temporada de sucesso que fazia ao lado de Caymmi em uma boate no Rio de Janeiro, incentivou João Gilberto a perder o medo de andar de avião, exigia silêncio dos filhos quando o pai se punha a criar e deu a palavra final se Caymmi, já debilitado pela idade, deveria ir à Bahia para receber um prêmio.
“Muita gente me diz: ‘mas a Stella não fala nada, só aparece no final’. Eu acho até mais forte [essa opção]. E ela é mencionada o tempo todo. Gil fala dela. O papel de Stella na vida do Caymmi fica muito claro”, analisa Daniela.
Foi Stella, ainda, que já hospitalizada, designou à confidente Cristiane Oliveira a tarefa de estar ao lado do Caymmi até sua morte, em um apartamento em Copacabana, a poucos metros da praia. Stella e Caymmi morreram com onze dias de diferença, sem que um soubesse da partida do outro. Com a permissão da matriarca, Caymmi morreu segurando a mão de Cristiane.
Um spoiler: o documentário Dorival Caymmi - Um Homem de Afetos termina com imagens inéditas do aniversário de 88 anos do homenageado. Maracangalha é a música que conduz o espectador para o desfecho da narrativa de 90 minutos do longa.
É também a canção que leva Caymmi à sua Pasárgada. Onde o tempo e o afeto se encontram livres de qualquer julgamento.