A Felicidade das Coisas, estreia de Thais Fujinaga no longa-metragem, pode ser visto como uma crônica familiar. Avó, mãe e dois filhos vão de carro à casa de praia passar um fim de semana. A família é de classe média, nem pobre nem rica. Pode ter uma casa de veraneio, mas luta para mantê-la. O dinheiro sempre falta. Em especial agora que a mãe, Paula (Patrícia Saravy), colocou em prática seu desejo de construir uma piscina no jardim da casa. Na verdade, a piscina já está quase pronta. Sua estrutura jaz ao lado de um buraco em que duas pessoas trabalham. Quando Paula chega com o resto da família, um dos trabalhadores se queixa de falta de material, e que assim a obra não vai adiante. Não é o único problema. O pagamento da estrutura da piscina está atrasado e o dono da loja pressiona por telefone. Paula tenta convencer o marido a realizar o depósito. E… eis que o desconforto familiar se instala por conta desses contratempos financeiros.
O acerto de Thais Fujinaga é transformar essa crônica banal do cotidiano em um retrato carinhoso, porém agudo, das contradições de uma classe social um tanto esquecida pelo nosso cinema – outra exceção é o excelente Benzinho, de Gustavo Pizzi, filme com o qual A Felicidade das Coisas mantém parentesco temático, mas não estético. Por entrevistas, ficamos sabendo que a crônica se mostra tão próxima da diretora porque, com algumas liberdades de ficção, esta é um pouco a história real da sua própria família. Como esses personagens inventados, também a família da diretora teve uma casa de praia em Caraguatatuba (litoral norte de São Paulo), na qual passavam as férias e frequentavam um clube da região. Mas nem precisaríamos saber disso para sentir a naturalidade com que os personagens entram em cena. Parecem de fato pessoas reais, íntimas da diretora, próximas de cada um de nós. O polo conflitivo desse núcleo fica com Paula, excelente trabalho de Patrícia Saravy. Além dos dois filhos, ela está grávida de um terceiro. Dirige o carro, paga as contas, assume o controle da casa, briga com empreiteiros e credores. Acumula funções e responsabilidades, sente-se sobrecarregada, sozinha e estressada. O marido não aparece, a não ser em breves e acaloradas conversas pelo celular. A família desceu para o litoral, ele ficou em São Paulo. Não se sabe se vai aparecer ou não. O elemento masculino prima pela ausência.
No outro polo há a avó, magnificamente interpretada por Magali Biff. Em certo sentido, ela é o oposto da filha. A idade lhe ensinou que não se pode controlar tudo. O melhor é deixar-se levar pela vida porque, no fim, tudo acabará dando certo. Os filhos também são contrastantes. A garota pequena (Lavínia Castelari) tem a inconsequência da idade. O garoto (Messias Barros Góis), pré-adolescente, sente inquietude diante de um mundo maior que sua esfera familiar. Há gente no outro lado do rio, os meninos do clube, desconhecidos que vêm pescar no terreno da casa. Enfim, um mundo a ser descoberto, tanto fascinante quanto ameaçador. Esses poucos personagens são responsáveis por uma estrutura surpreendentemente dinâmica numa história em que, na aparência, pouca coisa acontece. Claro, é uma falsa impressão. Dentro desse esquema em que pequenos acontecimentos são os protagonistas, linhas maiores de tensão se insinuam – a conquista de um bem material torna-se fundamental para Paula. Não é por ambição ou ostentação. Digamos que ela só quer oferecer um conforto adicional à família, e nesse algo a mais dá um passo maior que as pernas. Sente-se no ar uma tensão maior. Adivinha-se a crise econômica, a consequente falta de dinheiro, o medo de queda na escala social – tudo isso que nos é cada vez mais próximo nos últimos anos. Porém, nada aparece de forma explícita, apenas insinuada. Essa recusa de didatismo expressa confiança em que o espectador possa observar os personagens, eventualmente identificar-se com eles e, sobretudo, tirar suas próprias conclusões.
Põe-se em prática aqui uma estética despojada do realismo da cena cotidiana, coloquial, sem nenhum enfeite, tom épico ou panfletário. Tudo é diminuto, modesto, comum, como a vida da imensa maioria das pessoas. Pode-se deduzir que a família de Paula passou por um período de maior folga econômica e agora se sente encalacrada. A piscina é tanto uma “coisa”, como indica o título do filme, como a concretização hipotética de um sonho de “chegar lá”, quase ao alcance das mãos e, de súbito, tão distante. O senso prático da avó indicará um meio de usufruir desse bem, mesmo que de forma pouco convencional e temporária. É um sucedâneo, um jeitinho, mas não deixará de sinalizar que a felicidade, das coisas e das gentes, pode estar diante dos olhos sem que seja percebida.
No ambiente quase estático do cotidiano, será o garoto Gustavo a apresentar uma curva dramática, mesmo assim muito sutil. Como pré-adolescente, terá de se colocar à prova diante dos amigos, mas, em especial, diante de si mesmo. E, pode-se deduzir, volta mais amadurecido de uma noite em que se expõe a um perigo real. Essa transformação parece ter sido reconhecida por Paula, como indica a bela troca de olhares entre mãe e filho. Nesse filme em que pouca coisa parece ocorrer, de fato muito acontece. Se a opção da diretora é pela simplicidade, esta apenas realça a complexidade da trama e dos personagens. Menos é mais.