CANNES - Os quase dois anos de Iris Knobloch à frente do Festival de Cannes foram de aprendizado. Sobretudo, sobre a importância de ser a primeira mulher presidente do maior festival de cinema do mundo. Vinda da indústria cinematográfica – ela foi executiva da WarnerMedia –, a alemã de 61 anos de idade vê como sua missão ampliar a participação feminina no evento.
Seu trabalho é em parceria com Thiérry Frémaux, o diretor artístico do festival e responsável por escolher os filmes da seleção oficial. No ano passado, a francesa Justine Triet tornou-se a terceira mulher a ganhar a Palma de Ouro com Anatomia de uma Queda, que depois venceria o Oscar de roteiro original. Em 2024, quatro mulheres têm chance de serem a quarta Palma de Ouro feminina: a indiana Payal Kapadia, as francesas Coralie Fargeat e Agathe Riedinger e a inglesa Andrea Arnold.
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Em entrevista a um grupo pequeno de jornalistas internacionais, Iris Knobloch falou de sua defesa da presença feminina em Cannes, da importância internacional do evento e do papel do festival em discussões como o movimento MeToo, contra o abuso e o assédio sexual.
Como vê a importância de ser uma mulher na presidência do festival de cinema mais importante do mundo?
Defender a causa das mulheres é uma grande parte do meu papel. Sinto essa responsabilidade muito mais forte agora do que antes. Percebo o progresso. Há muito mais filmes chegando à seleção de curtas. É bom ver como as mulheres estão ousando mais, ganhando confiança e conseguindo fazer projetos. Mas acabei de ler um estudo publicado em Hollywood dizendo que, apesar de Barbie, a maior parte dos grandes orçamentos é atribuída aos homens. Há um bom caminho a percorrer. Não tenho como não fazer disso uma das minhas prioridades. Vou fazer tudo o que puder para ajudar a destacar o talento feminino jovem. Vejo com muito mais clareza agora do que há um ano que esse é um pilar realmente importante da minha contribuição.
É justo dizer que seu primeiro ano como presidente foi uma espécie de despertar político para você?
Sim, é justo dizer isso. É muito diferente passar de um emprego na indústria para uma instituição e deparar com um espectro muito mais amplo do cinema.
Sente que ainda existe alguma resistência em ter mais mulheres? Digamos que existam dois filmes igualmente bons: aquele dirigido por um homem ainda é o preferido?
Para Thiérry Frémaux, é o contrário. Mas no geral no mundo do cinema confia-se mais nos homens. Há uma espécie de sentimento subconsciente de que eles podem garantir algo melhor.
Como é sua cooperação com Thierry Frémaux?
Conheço o Thierry desde meu primeiro Festival de Cannes em 1998, eu acho. Mas conhecer alguém dessa forma é muito diferente de trabalhar com alguém. Percebemos ao longo desse tempo de trabalho que as peças do quebra-cabeça se encaixam muito bem e que nos complementamos. Não interfiro em nada na seleção, e esse é um dos pilares importantes do festival. A seleção deve permanecer independente. Se Thiérry tiver alguma dúvida, pode vir falar comigo. Mas só verei os filmes depois da seleção.
Há um rumor de que novas acusações contra integrantes da indústria cinematográfica francesa podem surgir durante o festival. Quais são as medidas de contingência caso isso aconteça?
Eu pessoalmente acredito que continuarão sendo apenas rumores, mas não sei. A verdade é que é quase impossível ter um plano porque realmente depende da situação específica. Ou seja, se isso acontecer este ano, no ano que vem ou no ano seguinte, depende de quem é o acusado, se a denúncia foi feita à polícia ou se é uma reportagem. A pessoa é acusada de mau comportamento moral ou de ter estuprado alguém? São tantos cenários que é preciso examinar caso a caso. O nosso plano é estar muito vigilante. Thiérry tem prestado enorme atenção para, pelo menos conscientemente, evitar qualquer tipo de situação que possa estimular uma dúvida nesse sentido.
Thierry Frémaux disse que é importante que um festival exiba filmes e discuta cinema. Mas que a batalha do movimento Me Too é tão importante que, mesmo se ofuscar os filmes, é uma campanha de civilização.
Com certeza. Acho que foi por isso que decidimos exibir o filme de Judith Godrèche, porque queremos dar voz não só às mulheres, mas a todas as pessoas que passaram por diversos tipos de abuso. O curta foi exibido na cerimônia de abertura da mostra Um Certo Olhar e depois no Cinema na Praia para o público em geral. É importante apoiar o movimento e as pessoas que tiveram a coragem de se manifestar.
Você vê discussões como o movimento Me Too, o número de diretoras em competição ou exibição no cinema versus streaming como uma distração ou como parte integrante do que Cannes é?
Na minha perspectiva a missão do festival e a única causa que o festival defende é o cinema. Mas também é claro que o festival sempre foi um grande palco de debates e de expressão de opiniões e deve continuar assim. Procuramos o equilíbrio. É verdade que há 15 anos, quando Thiérry fazia as mesmas entrevistas, as pessoas apenas faziam perguntas sobre a seleção. No final das contas é isso que importa. Veja as grandes carreiras de alguns dos filmes do ano passado, como Anatomia de uma Queda e Zona de Interesse. No Oscar, nove filmes do festival tiveram 26 indicações. Esse é o nosso principal objetivo: destacar esses filmes que provavelmente nunca teriam tido a mesma carreira. Para esses filmes, claramente há um antes e um depois de Cannes.
Quais são as suas ambições como presidente do festival?
Abraçar o amanhã. É o maior Festival Internacional de Cinema, ou seja, foco no cinema e no internacional. Não devemos perder essa base. É fantástico que este ano tenhamos filmes da Arábia Saudita, Zâmbia, Somália. Ao mesmo tempo, como permanecemos relevantes para os jovens? Uma das nossas missões é transmitir o amor pelo cinema aos jovens, e esse é um verdadeiro problema para a indústria com tantos entretenimentos diferentes disponíveis. Como podemos mantê-los engajados e interessados em ir ao cinema? Por isso procuramos jovens cineastas para a competição. São eles o futuro do cinema. Outro pilar para mim são as mulheres. E deveríamos estar abertos para falar sobre o futuro do cinema.
Nessa configuração de festival internacional, como fica a presença de regiões como a Ásia e a América Latina? Às vezes elas ficam marginalizadas nos festivais. Neste ano mesmo há apenas um asiático e um latino-americano na competição.
A seleção deveria ser cega às nacionalidades. Sei que o Thiérry sempre selecionará os melhores filmes, mas também acho que a América Latina é um continente que nós, como festival, deveríamos alcançar ainda mais. O Festival de Cannes tem feito o mercado cinematográfico na Argentina. Mas ninguém sabe o que acontecerá com ele neste ano (dada a falta de apoio do governo federal daquele país às atividades cinematográficas). Também podemos ampliar o alcance do festival na Ásia. O bonito é que os filmes não têm fronteiras. Eles viajam. Quando as pessoas gostam, eles enviam sua mensagem para todos os lugares. Idealmente, os filmes carregam o debate.
Existem esforços para ter mais diversidade nas equipes do Festival de Cannes?
Sim. O comitê de seleção tem paridade total em termos de gênero. Claro que a sua percepção de diversidade pode ser diferente daquela dos franceses. Mas a diversidade é extremamente importante para qualquer organização. Sejamos muito claros: o público é diverso, e você tem de ser também.
Arrepende-se de ter colocado ‘Jeanne Du Barry’, um filme cercado de polêmicas, como a presença de Johnny Depp no elenco, para abrir o festival no ano passado?
Em primeiro lugar, acho que você nunca deve se arrepender e nunca deve olhar para trás. Claro, você aprende com as situações. Thiérry prestou atenção em 2024 para que não haver polêmicas desnecessárias. Por outro lado, a controvérsia também é boa. Caso contrário, você se torna muito conformista, não estimula o debate. Existe uma resposta real para isso? Não sei.
A sua visão do setor é diferente agora que está na presidência de uma organização e não de uma empresa?
Não. É claro que a indústria neste momento está numa encruzilhada que eu não enfrentei quando estava inserida nela. O caminho sempre foi bastante claro. Fiz reuniões com estúdios e plataformas em Los Angeles e ficou claro que a indústria está perdida sobre que direção seguir. Estou aliviada que a experiência no cinema parece ter ganhado força novamente. Mas a indústria não sabe onde colocar ênfase no futuro. É algo que nunca vivi em meus 25 anos de indústria.