‘A indústria cinematográfica está perdida’, diz presidente do Festival de Cannes


Iris Knobloch, primeira mulher a presidir o maior festival de cinema do mundo, fala sobre presente e futuro, diversidade, #MeToo e mulheres: ‘Vou fazer tudo para destacar o talento feminino’

Por Mariane Morisawa
Atualização:
Foto: Teresa Suarez/EFE
Entrevista comIris Knobloch

CANNES - Os quase dois anos de Iris Knobloch à frente do Festival de Cannes foram de aprendizado. Sobretudo, sobre a importância de ser a primeira mulher presidente do maior festival de cinema do mundo. Vinda da indústria cinematográfica – ela foi executiva da WarnerMedia –, a alemã de 61 anos de idade vê como sua missão ampliar a participação feminina no evento.

Seu trabalho é em parceria com Thiérry Frémaux, o diretor artístico do festival e responsável por escolher os filmes da seleção oficial. No ano passado, a francesa Justine Triet tornou-se a terceira mulher a ganhar a Palma de Ouro com Anatomia de uma Queda, que depois venceria o Oscar de roteiro original. Em 2024, quatro mulheres têm chance de serem a quarta Palma de Ouro feminina: a indiana Payal Kapadia, as francesas Coralie Fargeat e Agathe Riedinger e a inglesa Andrea Arnold.

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Em entrevista a um grupo pequeno de jornalistas internacionais, Iris Knobloch falou de sua defesa da presença feminina em Cannes, da importância internacional do evento e do papel do festival em discussões como o movimento MeToo, contra o abuso e o assédio sexual.

Como vê a importância de ser uma mulher na presidência do festival de cinema mais importante do mundo?

Defender a causa das mulheres é uma grande parte do meu papel. Sinto essa responsabilidade muito mais forte agora do que antes. Percebo o progresso. Há muito mais filmes chegando à seleção de curtas. É bom ver como as mulheres estão ousando mais, ganhando confiança e conseguindo fazer projetos. Mas acabei de ler um estudo publicado em Hollywood dizendo que, apesar de Barbie, a maior parte dos grandes orçamentos é atribuída aos homens. Há um bom caminho a percorrer. Não tenho como não fazer disso uma das minhas prioridades. Vou fazer tudo o que puder para ajudar a destacar o talento feminino jovem. Vejo com muito mais clareza agora do que há um ano que esse é um pilar realmente importante da minha contribuição.

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É justo dizer que seu primeiro ano como presidente foi uma espécie de despertar político para você?

Sim, é justo dizer isso. É muito diferente passar de um emprego na indústria para uma instituição e deparar com um espectro muito mais amplo do cinema.

Sente que ainda existe alguma resistência em ter mais mulheres? Digamos que existam dois filmes igualmente bons: aquele dirigido por um homem ainda é o preferido?

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Para Thiérry Frémaux, é o contrário. Mas no geral no mundo do cinema confia-se mais nos homens. Há uma espécie de sentimento subconsciente de que eles podem garantir algo melhor.

Como é sua cooperação com Thierry Frémaux?

Conheço o Thierry desde meu primeiro Festival de Cannes em 1998, eu acho. Mas conhecer alguém dessa forma é muito diferente de trabalhar com alguém. Percebemos ao longo desse tempo de trabalho que as peças do quebra-cabeça se encaixam muito bem e que nos complementamos. Não interfiro em nada na seleção, e esse é um dos pilares importantes do festival. A seleção deve permanecer independente. Se Thiérry tiver alguma dúvida, pode vir falar comigo. Mas só verei os filmes depois da seleção.

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Thierry Fremaux e Iris Knobloch na abertura do Festival de Cannes 2024 Foto: Stephane Mahe/Reuters

Há um rumor de que novas acusações contra integrantes da indústria cinematográfica francesa podem surgir durante o festival. Quais são as medidas de contingência caso isso aconteça?

Eu pessoalmente acredito que continuarão sendo apenas rumores, mas não sei. A verdade é que é quase impossível ter um plano porque realmente depende da situação específica. Ou seja, se isso acontecer este ano, no ano que vem ou no ano seguinte, depende de quem é o acusado, se a denúncia foi feita à polícia ou se é uma reportagem. A pessoa é acusada de mau comportamento moral ou de ter estuprado alguém? São tantos cenários que é preciso examinar caso a caso. O nosso plano é estar muito vigilante. Thiérry tem prestado enorme atenção para, pelo menos conscientemente, evitar qualquer tipo de situação que possa estimular uma dúvida nesse sentido.

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Thierry Frémaux disse que é importante que um festival exiba filmes e discuta cinema. Mas que a batalha do movimento Me Too é tão importante que, mesmo se ofuscar os filmes, é uma campanha de civilização.

Com certeza. Acho que foi por isso que decidimos exibir o filme de Judith Godrèche, porque queremos dar voz não só às mulheres, mas a todas as pessoas que passaram por diversos tipos de abuso. O curta foi exibido na cerimônia de abertura da mostra Um Certo Olhar e depois no Cinema na Praia para o público em geral. É importante apoiar o movimento e as pessoas que tiveram a coragem de se manifestar.

Judith Godreche, diretora do curta Moi Aussi (Me Too), apresentado no Festival de Cannes, entre mulheres de associação que defende outras mulheres vítimas de abuso Foto: Stephane Mahe/Reuters
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Você vê discussões como o movimento Me Too, o número de diretoras em competição ou exibição no cinema versus streaming como uma distração ou como parte integrante do que Cannes é?

Na minha perspectiva a missão do festival e a única causa que o festival defende é o cinema. Mas também é claro que o festival sempre foi um grande palco de debates e de expressão de opiniões e deve continuar assim. Procuramos o equilíbrio. É verdade que há 15 anos, quando Thiérry fazia as mesmas entrevistas, as pessoas apenas faziam perguntas sobre a seleção. No final das contas é isso que importa. Veja as grandes carreiras de alguns dos filmes do ano passado, como Anatomia de uma Queda e Zona de Interesse. No Oscar, nove filmes do festival tiveram 26 indicações. Esse é o nosso principal objetivo: destacar esses filmes que provavelmente nunca teriam tido a mesma carreira. Para esses filmes, claramente há um antes e um depois de Cannes.

Quais são as suas ambições como presidente do festival?

Abraçar o amanhã. É o maior Festival Internacional de Cinema, ou seja, foco no cinema e no internacional. Não devemos perder essa base. É fantástico que este ano tenhamos filmes da Arábia Saudita, Zâmbia, Somália. Ao mesmo tempo, como permanecemos relevantes para os jovens? Uma das nossas missões é transmitir o amor pelo cinema aos jovens, e esse é um verdadeiro problema para a indústria com tantos entretenimentos diferentes disponíveis. Como podemos mantê-los engajados e interessados em ir ao cinema? Por isso procuramos jovens cineastas para a competição. São eles o futuro do cinema. Outro pilar para mim são as mulheres. E deveríamos estar abertos para falar sobre o futuro do cinema.

Nessa configuração de festival internacional, como fica a presença de regiões como a Ásia e a América Latina? Às vezes elas ficam marginalizadas nos festivais. Neste ano mesmo há apenas um asiático e um latino-americano na competição.

A seleção deveria ser cega às nacionalidades. Sei que o Thiérry sempre selecionará os melhores filmes, mas também acho que a América Latina é um continente que nós, como festival, deveríamos alcançar ainda mais. O Festival de Cannes tem feito o mercado cinematográfico na Argentina. Mas ninguém sabe o que acontecerá com ele neste ano (dada a falta de apoio do governo federal daquele país às atividades cinematográficas). Também podemos ampliar o alcance do festival na Ásia. O bonito é que os filmes não têm fronteiras. Eles viajam. Quando as pessoas gostam, eles enviam sua mensagem para todos os lugares. Idealmente, os filmes carregam o debate.

Existem esforços para ter mais diversidade nas equipes do Festival de Cannes?

Sim. O comitê de seleção tem paridade total em termos de gênero. Claro que a sua percepção de diversidade pode ser diferente daquela dos franceses. Mas a diversidade é extremamente importante para qualquer organização. Sejamos muito claros: o público é diverso, e você tem de ser também.

Arrepende-se de ter colocado ‘Jeanne Du Barry’, um filme cercado de polêmicas, como a presença de Johnny Depp no elenco, para abrir o festival no ano passado?

Em primeiro lugar, acho que você nunca deve se arrepender e nunca deve olhar para trás. Claro, você aprende com as situações. Thiérry prestou atenção em 2024 para que não haver polêmicas desnecessárias. Por outro lado, a controvérsia também é boa. Caso contrário, você se torna muito conformista, não estimula o debate. Existe uma resposta real para isso? Não sei.

A sua visão do setor é diferente agora que está na presidência de uma organização e não de uma empresa?

Não. É claro que a indústria neste momento está numa encruzilhada que eu não enfrentei quando estava inserida nela. O caminho sempre foi bastante claro. Fiz reuniões com estúdios e plataformas em Los Angeles e ficou claro que a indústria está perdida sobre que direção seguir. Estou aliviada que a experiência no cinema parece ter ganhado força novamente. Mas a indústria não sabe onde colocar ênfase no futuro. É algo que nunca vivi em meus 25 anos de indústria.

CANNES - Os quase dois anos de Iris Knobloch à frente do Festival de Cannes foram de aprendizado. Sobretudo, sobre a importância de ser a primeira mulher presidente do maior festival de cinema do mundo. Vinda da indústria cinematográfica – ela foi executiva da WarnerMedia –, a alemã de 61 anos de idade vê como sua missão ampliar a participação feminina no evento.

Seu trabalho é em parceria com Thiérry Frémaux, o diretor artístico do festival e responsável por escolher os filmes da seleção oficial. No ano passado, a francesa Justine Triet tornou-se a terceira mulher a ganhar a Palma de Ouro com Anatomia de uma Queda, que depois venceria o Oscar de roteiro original. Em 2024, quatro mulheres têm chance de serem a quarta Palma de Ouro feminina: a indiana Payal Kapadia, as francesas Coralie Fargeat e Agathe Riedinger e a inglesa Andrea Arnold.

Em entrevista a um grupo pequeno de jornalistas internacionais, Iris Knobloch falou de sua defesa da presença feminina em Cannes, da importância internacional do evento e do papel do festival em discussões como o movimento MeToo, contra o abuso e o assédio sexual.

Como vê a importância de ser uma mulher na presidência do festival de cinema mais importante do mundo?

Defender a causa das mulheres é uma grande parte do meu papel. Sinto essa responsabilidade muito mais forte agora do que antes. Percebo o progresso. Há muito mais filmes chegando à seleção de curtas. É bom ver como as mulheres estão ousando mais, ganhando confiança e conseguindo fazer projetos. Mas acabei de ler um estudo publicado em Hollywood dizendo que, apesar de Barbie, a maior parte dos grandes orçamentos é atribuída aos homens. Há um bom caminho a percorrer. Não tenho como não fazer disso uma das minhas prioridades. Vou fazer tudo o que puder para ajudar a destacar o talento feminino jovem. Vejo com muito mais clareza agora do que há um ano que esse é um pilar realmente importante da minha contribuição.

É justo dizer que seu primeiro ano como presidente foi uma espécie de despertar político para você?

Sim, é justo dizer isso. É muito diferente passar de um emprego na indústria para uma instituição e deparar com um espectro muito mais amplo do cinema.

Sente que ainda existe alguma resistência em ter mais mulheres? Digamos que existam dois filmes igualmente bons: aquele dirigido por um homem ainda é o preferido?

Para Thiérry Frémaux, é o contrário. Mas no geral no mundo do cinema confia-se mais nos homens. Há uma espécie de sentimento subconsciente de que eles podem garantir algo melhor.

Como é sua cooperação com Thierry Frémaux?

Conheço o Thierry desde meu primeiro Festival de Cannes em 1998, eu acho. Mas conhecer alguém dessa forma é muito diferente de trabalhar com alguém. Percebemos ao longo desse tempo de trabalho que as peças do quebra-cabeça se encaixam muito bem e que nos complementamos. Não interfiro em nada na seleção, e esse é um dos pilares importantes do festival. A seleção deve permanecer independente. Se Thiérry tiver alguma dúvida, pode vir falar comigo. Mas só verei os filmes depois da seleção.

Thierry Fremaux e Iris Knobloch na abertura do Festival de Cannes 2024 Foto: Stephane Mahe/Reuters

Há um rumor de que novas acusações contra integrantes da indústria cinematográfica francesa podem surgir durante o festival. Quais são as medidas de contingência caso isso aconteça?

Eu pessoalmente acredito que continuarão sendo apenas rumores, mas não sei. A verdade é que é quase impossível ter um plano porque realmente depende da situação específica. Ou seja, se isso acontecer este ano, no ano que vem ou no ano seguinte, depende de quem é o acusado, se a denúncia foi feita à polícia ou se é uma reportagem. A pessoa é acusada de mau comportamento moral ou de ter estuprado alguém? São tantos cenários que é preciso examinar caso a caso. O nosso plano é estar muito vigilante. Thiérry tem prestado enorme atenção para, pelo menos conscientemente, evitar qualquer tipo de situação que possa estimular uma dúvida nesse sentido.

Thierry Frémaux disse que é importante que um festival exiba filmes e discuta cinema. Mas que a batalha do movimento Me Too é tão importante que, mesmo se ofuscar os filmes, é uma campanha de civilização.

Com certeza. Acho que foi por isso que decidimos exibir o filme de Judith Godrèche, porque queremos dar voz não só às mulheres, mas a todas as pessoas que passaram por diversos tipos de abuso. O curta foi exibido na cerimônia de abertura da mostra Um Certo Olhar e depois no Cinema na Praia para o público em geral. É importante apoiar o movimento e as pessoas que tiveram a coragem de se manifestar.

Judith Godreche, diretora do curta Moi Aussi (Me Too), apresentado no Festival de Cannes, entre mulheres de associação que defende outras mulheres vítimas de abuso Foto: Stephane Mahe/Reuters

Você vê discussões como o movimento Me Too, o número de diretoras em competição ou exibição no cinema versus streaming como uma distração ou como parte integrante do que Cannes é?

Na minha perspectiva a missão do festival e a única causa que o festival defende é o cinema. Mas também é claro que o festival sempre foi um grande palco de debates e de expressão de opiniões e deve continuar assim. Procuramos o equilíbrio. É verdade que há 15 anos, quando Thiérry fazia as mesmas entrevistas, as pessoas apenas faziam perguntas sobre a seleção. No final das contas é isso que importa. Veja as grandes carreiras de alguns dos filmes do ano passado, como Anatomia de uma Queda e Zona de Interesse. No Oscar, nove filmes do festival tiveram 26 indicações. Esse é o nosso principal objetivo: destacar esses filmes que provavelmente nunca teriam tido a mesma carreira. Para esses filmes, claramente há um antes e um depois de Cannes.

Quais são as suas ambições como presidente do festival?

Abraçar o amanhã. É o maior Festival Internacional de Cinema, ou seja, foco no cinema e no internacional. Não devemos perder essa base. É fantástico que este ano tenhamos filmes da Arábia Saudita, Zâmbia, Somália. Ao mesmo tempo, como permanecemos relevantes para os jovens? Uma das nossas missões é transmitir o amor pelo cinema aos jovens, e esse é um verdadeiro problema para a indústria com tantos entretenimentos diferentes disponíveis. Como podemos mantê-los engajados e interessados em ir ao cinema? Por isso procuramos jovens cineastas para a competição. São eles o futuro do cinema. Outro pilar para mim são as mulheres. E deveríamos estar abertos para falar sobre o futuro do cinema.

Nessa configuração de festival internacional, como fica a presença de regiões como a Ásia e a América Latina? Às vezes elas ficam marginalizadas nos festivais. Neste ano mesmo há apenas um asiático e um latino-americano na competição.

A seleção deveria ser cega às nacionalidades. Sei que o Thiérry sempre selecionará os melhores filmes, mas também acho que a América Latina é um continente que nós, como festival, deveríamos alcançar ainda mais. O Festival de Cannes tem feito o mercado cinematográfico na Argentina. Mas ninguém sabe o que acontecerá com ele neste ano (dada a falta de apoio do governo federal daquele país às atividades cinematográficas). Também podemos ampliar o alcance do festival na Ásia. O bonito é que os filmes não têm fronteiras. Eles viajam. Quando as pessoas gostam, eles enviam sua mensagem para todos os lugares. Idealmente, os filmes carregam o debate.

Existem esforços para ter mais diversidade nas equipes do Festival de Cannes?

Sim. O comitê de seleção tem paridade total em termos de gênero. Claro que a sua percepção de diversidade pode ser diferente daquela dos franceses. Mas a diversidade é extremamente importante para qualquer organização. Sejamos muito claros: o público é diverso, e você tem de ser também.

Arrepende-se de ter colocado ‘Jeanne Du Barry’, um filme cercado de polêmicas, como a presença de Johnny Depp no elenco, para abrir o festival no ano passado?

Em primeiro lugar, acho que você nunca deve se arrepender e nunca deve olhar para trás. Claro, você aprende com as situações. Thiérry prestou atenção em 2024 para que não haver polêmicas desnecessárias. Por outro lado, a controvérsia também é boa. Caso contrário, você se torna muito conformista, não estimula o debate. Existe uma resposta real para isso? Não sei.

A sua visão do setor é diferente agora que está na presidência de uma organização e não de uma empresa?

Não. É claro que a indústria neste momento está numa encruzilhada que eu não enfrentei quando estava inserida nela. O caminho sempre foi bastante claro. Fiz reuniões com estúdios e plataformas em Los Angeles e ficou claro que a indústria está perdida sobre que direção seguir. Estou aliviada que a experiência no cinema parece ter ganhado força novamente. Mas a indústria não sabe onde colocar ênfase no futuro. É algo que nunca vivi em meus 25 anos de indústria.

CANNES - Os quase dois anos de Iris Knobloch à frente do Festival de Cannes foram de aprendizado. Sobretudo, sobre a importância de ser a primeira mulher presidente do maior festival de cinema do mundo. Vinda da indústria cinematográfica – ela foi executiva da WarnerMedia –, a alemã de 61 anos de idade vê como sua missão ampliar a participação feminina no evento.

Seu trabalho é em parceria com Thiérry Frémaux, o diretor artístico do festival e responsável por escolher os filmes da seleção oficial. No ano passado, a francesa Justine Triet tornou-se a terceira mulher a ganhar a Palma de Ouro com Anatomia de uma Queda, que depois venceria o Oscar de roteiro original. Em 2024, quatro mulheres têm chance de serem a quarta Palma de Ouro feminina: a indiana Payal Kapadia, as francesas Coralie Fargeat e Agathe Riedinger e a inglesa Andrea Arnold.

Em entrevista a um grupo pequeno de jornalistas internacionais, Iris Knobloch falou de sua defesa da presença feminina em Cannes, da importância internacional do evento e do papel do festival em discussões como o movimento MeToo, contra o abuso e o assédio sexual.

Como vê a importância de ser uma mulher na presidência do festival de cinema mais importante do mundo?

Defender a causa das mulheres é uma grande parte do meu papel. Sinto essa responsabilidade muito mais forte agora do que antes. Percebo o progresso. Há muito mais filmes chegando à seleção de curtas. É bom ver como as mulheres estão ousando mais, ganhando confiança e conseguindo fazer projetos. Mas acabei de ler um estudo publicado em Hollywood dizendo que, apesar de Barbie, a maior parte dos grandes orçamentos é atribuída aos homens. Há um bom caminho a percorrer. Não tenho como não fazer disso uma das minhas prioridades. Vou fazer tudo o que puder para ajudar a destacar o talento feminino jovem. Vejo com muito mais clareza agora do que há um ano que esse é um pilar realmente importante da minha contribuição.

É justo dizer que seu primeiro ano como presidente foi uma espécie de despertar político para você?

Sim, é justo dizer isso. É muito diferente passar de um emprego na indústria para uma instituição e deparar com um espectro muito mais amplo do cinema.

Sente que ainda existe alguma resistência em ter mais mulheres? Digamos que existam dois filmes igualmente bons: aquele dirigido por um homem ainda é o preferido?

Para Thiérry Frémaux, é o contrário. Mas no geral no mundo do cinema confia-se mais nos homens. Há uma espécie de sentimento subconsciente de que eles podem garantir algo melhor.

Como é sua cooperação com Thierry Frémaux?

Conheço o Thierry desde meu primeiro Festival de Cannes em 1998, eu acho. Mas conhecer alguém dessa forma é muito diferente de trabalhar com alguém. Percebemos ao longo desse tempo de trabalho que as peças do quebra-cabeça se encaixam muito bem e que nos complementamos. Não interfiro em nada na seleção, e esse é um dos pilares importantes do festival. A seleção deve permanecer independente. Se Thiérry tiver alguma dúvida, pode vir falar comigo. Mas só verei os filmes depois da seleção.

Thierry Fremaux e Iris Knobloch na abertura do Festival de Cannes 2024 Foto: Stephane Mahe/Reuters

Há um rumor de que novas acusações contra integrantes da indústria cinematográfica francesa podem surgir durante o festival. Quais são as medidas de contingência caso isso aconteça?

Eu pessoalmente acredito que continuarão sendo apenas rumores, mas não sei. A verdade é que é quase impossível ter um plano porque realmente depende da situação específica. Ou seja, se isso acontecer este ano, no ano que vem ou no ano seguinte, depende de quem é o acusado, se a denúncia foi feita à polícia ou se é uma reportagem. A pessoa é acusada de mau comportamento moral ou de ter estuprado alguém? São tantos cenários que é preciso examinar caso a caso. O nosso plano é estar muito vigilante. Thiérry tem prestado enorme atenção para, pelo menos conscientemente, evitar qualquer tipo de situação que possa estimular uma dúvida nesse sentido.

Thierry Frémaux disse que é importante que um festival exiba filmes e discuta cinema. Mas que a batalha do movimento Me Too é tão importante que, mesmo se ofuscar os filmes, é uma campanha de civilização.

Com certeza. Acho que foi por isso que decidimos exibir o filme de Judith Godrèche, porque queremos dar voz não só às mulheres, mas a todas as pessoas que passaram por diversos tipos de abuso. O curta foi exibido na cerimônia de abertura da mostra Um Certo Olhar e depois no Cinema na Praia para o público em geral. É importante apoiar o movimento e as pessoas que tiveram a coragem de se manifestar.

Judith Godreche, diretora do curta Moi Aussi (Me Too), apresentado no Festival de Cannes, entre mulheres de associação que defende outras mulheres vítimas de abuso Foto: Stephane Mahe/Reuters

Você vê discussões como o movimento Me Too, o número de diretoras em competição ou exibição no cinema versus streaming como uma distração ou como parte integrante do que Cannes é?

Na minha perspectiva a missão do festival e a única causa que o festival defende é o cinema. Mas também é claro que o festival sempre foi um grande palco de debates e de expressão de opiniões e deve continuar assim. Procuramos o equilíbrio. É verdade que há 15 anos, quando Thiérry fazia as mesmas entrevistas, as pessoas apenas faziam perguntas sobre a seleção. No final das contas é isso que importa. Veja as grandes carreiras de alguns dos filmes do ano passado, como Anatomia de uma Queda e Zona de Interesse. No Oscar, nove filmes do festival tiveram 26 indicações. Esse é o nosso principal objetivo: destacar esses filmes que provavelmente nunca teriam tido a mesma carreira. Para esses filmes, claramente há um antes e um depois de Cannes.

Quais são as suas ambições como presidente do festival?

Abraçar o amanhã. É o maior Festival Internacional de Cinema, ou seja, foco no cinema e no internacional. Não devemos perder essa base. É fantástico que este ano tenhamos filmes da Arábia Saudita, Zâmbia, Somália. Ao mesmo tempo, como permanecemos relevantes para os jovens? Uma das nossas missões é transmitir o amor pelo cinema aos jovens, e esse é um verdadeiro problema para a indústria com tantos entretenimentos diferentes disponíveis. Como podemos mantê-los engajados e interessados em ir ao cinema? Por isso procuramos jovens cineastas para a competição. São eles o futuro do cinema. Outro pilar para mim são as mulheres. E deveríamos estar abertos para falar sobre o futuro do cinema.

Nessa configuração de festival internacional, como fica a presença de regiões como a Ásia e a América Latina? Às vezes elas ficam marginalizadas nos festivais. Neste ano mesmo há apenas um asiático e um latino-americano na competição.

A seleção deveria ser cega às nacionalidades. Sei que o Thiérry sempre selecionará os melhores filmes, mas também acho que a América Latina é um continente que nós, como festival, deveríamos alcançar ainda mais. O Festival de Cannes tem feito o mercado cinematográfico na Argentina. Mas ninguém sabe o que acontecerá com ele neste ano (dada a falta de apoio do governo federal daquele país às atividades cinematográficas). Também podemos ampliar o alcance do festival na Ásia. O bonito é que os filmes não têm fronteiras. Eles viajam. Quando as pessoas gostam, eles enviam sua mensagem para todos os lugares. Idealmente, os filmes carregam o debate.

Existem esforços para ter mais diversidade nas equipes do Festival de Cannes?

Sim. O comitê de seleção tem paridade total em termos de gênero. Claro que a sua percepção de diversidade pode ser diferente daquela dos franceses. Mas a diversidade é extremamente importante para qualquer organização. Sejamos muito claros: o público é diverso, e você tem de ser também.

Arrepende-se de ter colocado ‘Jeanne Du Barry’, um filme cercado de polêmicas, como a presença de Johnny Depp no elenco, para abrir o festival no ano passado?

Em primeiro lugar, acho que você nunca deve se arrepender e nunca deve olhar para trás. Claro, você aprende com as situações. Thiérry prestou atenção em 2024 para que não haver polêmicas desnecessárias. Por outro lado, a controvérsia também é boa. Caso contrário, você se torna muito conformista, não estimula o debate. Existe uma resposta real para isso? Não sei.

A sua visão do setor é diferente agora que está na presidência de uma organização e não de uma empresa?

Não. É claro que a indústria neste momento está numa encruzilhada que eu não enfrentei quando estava inserida nela. O caminho sempre foi bastante claro. Fiz reuniões com estúdios e plataformas em Los Angeles e ficou claro que a indústria está perdida sobre que direção seguir. Estou aliviada que a experiência no cinema parece ter ganhado força novamente. Mas a indústria não sabe onde colocar ênfase no futuro. É algo que nunca vivi em meus 25 anos de indústria.

Entrevista por Mariane Morisawa

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