A Paixão Segundo G.H., de Clarice Lispector, sempre foi considerado um livro “infilmável”. Não para o diretor Luiz Fernando Carvalho e para a atriz Maria Fernanda Candido, que são parceiros de longa data. Os dois lançam o filme homônimo nesta quinta-feira, 11, nos cinemas brasileiros, depois de exibi-lo no Festival de Roterdã, em janeiro. VEJA AQUI AS PRINCIPAIS ESTREIAS DA SEMANA
“Não tive hesitação, mas tinha consciência do tamanho do desafio”, disse a atriz em entrevista ao Estadão, em São Paulo. “Eu admiro demais a coragem do Luiz, porque não trabalhamos com conforto, e isso é de grande fidelidade ao livro. A Paixão Segundo G.H. é isso.”
O trabalho de preparação foi longo, com palestras, trabalho de corpo e voz. Não havia roteiro, e nem a atriz nem a equipe sabiam o que seria feito em determinado dia. Mas o texto de Clarice Lispector está na tela.
Novas leituras para um clássico literário
Faz 60 anos que G.H., moradora de uma cobertura de frente para o mar no Rio de Janeiro, deparou-se com uma barata, no quarto da empregada que despedira na noite anterior. Aquela barata e o desenho da protagonista feito a carvão por Janair, a funcionária, sempre foram uma batalha de G.H. consigo mesma.
“Ela é absolutamente inserida no sistema”, diz Maria Fernanda. “Mora no topo da estrutura, mas vai desmoronar. Ela vai mostrar para a gente o que são essas máscaras. São as terceiras pernas, que nos dão segurança, conforto, mas que também nos impedem de andar. Você fica um tripé estável, porém imóvel.”
Na época do lançamento, em 1964, A Paixão Segundo G.H. foi lido como um livro intimista. Luiz Fernando Carvalho trouxe a obra para 2024, ressaltando aspectos que ficaram em segundo plano então, como a diferença de classes sociais, o racismo, o espaço da mulher na sociedade.
“Para mim Janair (interpretada por Samira Nancassa) é o elemento detonador dessa revolução da personagem G.H., de sua desconstrução, que é a alteridade, não é um espelho”, disse o diretor de Lavoura Arcaica (2001) e de trabalhos para a televisão como a versão original de Renascer (1993) e Hoje É Dia de Maria (2005).
“G.H. se defronta com outra cosmogonia, outro ritual, outros elementos estéticos. Não é uma pintura a óleo, é a carvão. Tem toda uma ancestralidade naquele ebó que Janair deixou para a patroa, fazendo da patroa refém dela mesma: ‘Agora você vai se encontrar consigo mesma, não é a mulher linda, de elite’.”
De certa forma, fazer o filme também levou Luiz Fernando Carvalho a confrontar-se consigo mesmo. “Estou tentando ir além dos meus limites. Já falam por aí que eu consegui filmar GH porque eu usei meu lado feminino. E é pouco. Na verdade, eu sinto como se tivesse ido além do homem, porque a cultura masculina impõe um limite muito forte, então, se você não for além, se você não tiver um mínimo de reflexão sobre esses limites, essas fronteiras, essas leis, esses códigos, você não entra em um texto como esse.”
Para comemorar seus 60 anos, a editora Rocco acaba de lançar uma versão em capa dura da obra, além de Diário de um Filme, da co-roteirista Melina Dalboni, que relata o processo de preparação e filmagem de A Paixão Segundo G.H.
‘Sou fruto desse processo que estamos vivendo como sociedade’, diz Maria Fernanda Cândido
De que forma o filme é contemporâneo, mesmo se passando em 1964?
Eu acho que o filme é de uma absoluta atualidade. Ele poderia ter sido escrito ontem, nessa madrugada, enquanto nós dormíamos. Esse livro foi rotulado de intimista, de introspectivo lá em 1964, e o aspecto sociológico dele não foi abordado. Talvez lá em 1964, nós, como sociedade, não tivéssemos ainda a capacidade para fazer a leitura social desse livro.
Filmando este livro em 2018 e lançando o filme em 2024, nós devemos jogar uma luz sobre esses aspectos. E foi isso que que o diretor optou por fazer. E, além da luta de classes, da racialidade, temos uma grande discussão que é a mulher como sujeito de um filme. Só por isso o filme é absolutamente político. A gente não tem tantas obras aí que falam de fato sobre o existir de uma mulher dentro de um mundo feito por homens para os homens.
Falando da raridade de papéis para mulheres, você pensa em trabalhar com mais mulheres?
Sim. É muito interessante porque, quando a gente se une a outras mulheres, tem uma voz feminina, uma narrativa ali do ponto de vista feminino. Mas no trabalho com os homens o exercício acaba acontecendo da mesma maneira, porque a riqueza também se encontra nessa fricção de pontos de vista. É tão importante quanto buscar se unir às mulheres ter uma postura que de fato faça diferença quando você está trabalhando com homens. Que você não permita que essa lógica patriarcal tão arraigada na nossa sociedade prevaleça.
Você é mulher, é mãe, é atriz. Como tenta contribuir para que a sociedade caminhe adiante?
Eu tento pensar muito nas escolhas dos meus projetos, porque esse é o meu ofício. Obviamente os trabalhos em que me envolver vão fazer parte do meu cotidiano e daquilo que eu estou narrando e contando para o mundo.
E sou mãe de dois filhos. Também no microcosmos ali da vida cotidiana, dessa rotina, isso também pode e deve ser feito porque é uma maneira que a gente encontra de semear esse tipo de semente, de uma outra lógica de pensamento, de uma outra dinâmica de relação entre as pessoas, uma outra possibilidade de conexão que seria muito mais baseada em uma somatória de forças, em uma união, uma parceria em que a gente pudesse empregar mais o “e” e não tanto o “ou”. Ou eu ou você. Não. Eu e você. Eu acho que essa lógica do “e” é algo que a gente pode tentar construir na nossa vida diária, com a sua família, os seus amigos, seus círculos de vida e profissionais.
Muitos acham que abrir espaço é perder espaço, não é?
Essa lógica está na base da nossa cultura e do próprio capitalismo, porque ele parte do pressuposto de que eu tenho, você não tem. Eu sou, portanto, melhor que você. Essa lógica do ter e de que alguém é melhor que alguém está muito enraizado na nossa vida, no cotidiano, do mundo. E isso não é real. Porque somos iguais. Melhor em que sentido? Em relação a quê? Quem definiu o melhor? Quem definiu que uma cultura é proprietária da cultura hegemônica, que esta representa a civilização, e a outra é selvagem?
Como tem sido seu processo de aprendizado em relação às mudanças da sociedade?
Eu gostaria de usar uma expressão que é alargamento de consciência. Uma ampliação da fronteira do pensamento. Porque esse arcabouço conceitual que você vive está até no vocabulário que você emprega no seu dia a dia, nas suas ideias, no seu pensamento, na forma que enxerga a realidade. A partir do momento em que você vai fazendo esse exercício, vai ampliando essa fronteira de pensamento e vai modificando o seu vocabulário, as suas ideias e a sua maneira de enxergar o mundo.
Eu, sem dúvida, assim como tanta gente, sou fruto desse processo que a gente está vivendo como sociedade. E, sim, é um exercício, e é um exercício libertador porque a gente vai conseguindo extrapolar essas convenções. Esse para mim é o caminho. Devemos estar atentos e fortes mais do que nunca porque esses processos de exploração e colonização se atualizam com muita rapidez, assumindo novas roupagens. Mas a essência continua ainda vigorando. E acho que o cinema, as artes, a literatura, a filosofia podem colaborar com esse movimento, com esse processo nosso, como sociedade, como País.
‘A potência e os espinhos do texto de Clarice me interessam’, dia Luiz Fernando Carvalho
A Paixão Segundo G.H. é considerado ‘infilmável’. Como você decidiu que queria filmar este livro?
O mundo do entretenimento, da cultura, está colonizado por aquilo que se pode fazer e aquilo que não se pode. Um texto como esse da Clarice é infilmável porque ele não se encaixa em nenhuma das regras da cartilha. Mas, do ponto de vista artístico, ele me afeta. Se ele me move profundamente, eu imediatamente consigo visualizá-lo. Ele já me chama para dentro dele. Tem a ver com a forma como a Clarice escreve. O eu de G.H. não é ditatorial, egocêntrico. É aberto, democrático, feminino. E nessas frestas qualquer pessoa pode entrar e se encaixar. Foi assim que eu entrei. Não é que eu me coloque no lugar de G.H. Mas eu posso sentir suas dores, sua crise.
Vê uma relação entre o democrático e o feminino?
A democracia como foi pensada não se aplica a país nenhum do mundo hoje. Nós não vivemos em um período democrático. Vivemos em um mundo bélico, com muitas injustiças, tensões. Mas eu faço essa relação no sentido de ser um livro poderoso, de uma mulher poderosa, com uma literatura poderosa que está quebrando as pernas desse sistema autoritário, patriarcal, machista, masculino, consequentemente também capitalista, racista. E a barata é esse receptáculo aberto para receber todas essas leituras. Ela não é uma metáfora exatamente, porque a barata simbolizando os excluídos é apenas a primeira camada. Mas recebe essa reflexão sobre a luta de classes, algo sobre que ainda precisamos pensar nesse país.
O livro está completando 60 anos. Foi lançado em 1964, no ano do golpe militar. Como foi atualizá-lo para hoje?
Fui colocando nos entreplanos do filme algumas pitadas do que acontecia na época. Sons de helicóptero, uma revista com notícias sobre os militares nas ruas, sobre golpe. Eu estou filmando com a mão da história do meu lado. A história me autoriza a abrir certas entrelinhas que talvez Clarice naquele período não pudesse falar melhor, ou não tivesse encontrado uma linguagem. A parte sociológica, por exemplo, a casa grande e a senzala. E agora eu tinha essa responsabilidade. Como diz o Oscar Wilde, a história precisa ser sempre reescrita. Ali eu tinha total consciência de que eu estava reescrevendo a história cinematograficamente, sem precisar botar nenhuma palavra nova, uma vírgula, um artigo, nada.
Como você chegou à linguagem visual, preservando o texto de Clarice Lispector?
Eu reivindico a palavra como um elemento central dentro da narrativa cinematográfica, ao lado das imagens. Se eu criasse uma hierarquia, eu estaria tolhendo a potência literária desse texto, e é exatamente ela e os espinhos desse texto que me interessam. Na prática, eu dou volume a essa estranheza literária e dou volume à linguagem cinematográfica, à libertação desses paradigmas, desses dogmas. Eu quero que elas se revelem na sua potência máxima, e desse encontro produza-se uma terceira coisa que para mim é inominável. Não sei o que é, de que gênero é, mas que seria o filme. E me interessa problematizar a palavra. Vivemos em um mundo não só de diluição das imagens, mas da palavra também. A palavra poética me interessa. Me interessa o poema.
Por que a Maria Fernanda Candido era a atriz ideal?
Talvez pela trajetória. A gente foi constituindo como que ensaios para esse projeto, construindo laços de cumplicidade. Não sou amigo da Maria Fernanda, eu não tenho contatos com a Maria Fernanda a não ser quando estamos trabalhando. Há uma cumplicidade no quanto a gente quer verticalizar a pesquisa. Essa disponibilidade, ela tem. Foi o conjunto desses trabalhos que escalaram a Maria Fernanda. E era importante que G.H. tivesse uma beleza clássica para ser desconstruída. No mais, é mistério.
Você sempre faz um trabalho de preparação longo. Por que ele é necessário?
É um desejo de trabalhar o intérprete para que ele saia debaixo da tutela do diretor. E que ele seja um mensageiro da invenção, da criação. Ele não é uma pessoa que decora texto. Não concordo com essa relação de hierarquia. No meu modo de entender, a Maria Fernanda é coautora do filme.