Num tempo cheio de mimimis e nhenhenhéns, talvez o novo filme de Gus Van Sant tenha um valor especial. Chama-se A Pé Ele não Vai Longe e ficcionaliza a vida do cartunista norte-americano John Callahan, famoso por sua verve ácida e politicamente incorreta. Acontece que a frase do título é criada pelo artista referindo-se a si mesmo. Sim, ele ficou tetraplégico num acidente de carro após uma bebedeira daquelas de lascar, em companhia de um amigo estroina que, mais sortudo, sofreu apenas escoriações.
A história é bastante divertida, em especial pelo tom sarcástico impresso ao personagem por Joaquin Phoenix, em excelente desempenho. Mas não é apenas gozada, porque em momento algum Gus Van Sant ignora o drama humano do alcoolismo ou a tragédia que significa ser sadio e, de um dia para outro, perder praticamente todos os movimentos do corpo.
A estrutura da narrativa é em flashback. Assistimos aos dias de farra de Callahan, antes do acidente, e depois o vemos, já tetraplégico, tentando parar de beber com a ajuda de um guru bastante heterodoxo, Donnie (Jonah Hill).
Tem um lado interessante do filme, em termos da narrativa cinematográfica, que é a conhecida fluidez de Van Sant e a maneira como inova, mas sem produzir obras herméticas ou autocentradas. Fala para o público, pelo menos para aquela parte do público disposta a sair do ramerrão e tentar algo mais sofisticado que histórias de super-heróis. Os saltos no tempo turbinam a narrativa, sem confundi-la. E a elegância da câmera, ao construir planos e enquadramentos, ajuda na fruição. É ótimo cinema.
E, sim, há Joaquin Phoenix, que dosa a intensidade sem levar a construção do perfil a uma caricatura. Respeita o personagem que interpreta, mas não demasiadamente a ponto de ser reverente, o que, num tipo meio anarquista, colocaria tudo a perder.
Aliás, o tratamento de Phoenix à personalidade do Callahan da vida real tem tudo a ver com o espírito geral do filme. A ideia, aqui, é tratar de coisas muito sérias porém sem se levar a sério demais. Há sempre um distanciamento irônico que tempera os fatos mais graves e evita que a trama se precipite no abismo da solenidade. Definitivamente, Van Sant não é um Spielberg – e neste caso isto é um elogio.
Todos esses ingredientes – e o tratamento que Gus Van Sant dá a eles – fazem de A Pé Ele Não Vai Longe um filme fora do comum. Pelo menos em nossos tempos. Seria, no entanto, abusivo chamá-lo de “fora de moda”. Pelo contrário. Parece salutar justamente por, digamos assim, escovar os costumes a contrapelo do tempo. Quando diretores (e escritores, músicos, dramaturgos, etc) parecem morrer de medo de desagradar a este ou aquele grupo, Gus Van Sant exuma um personagem que não tinha medo de rir de tudo e de todos – a começar por si mesmo.
John Callahan (1951-2010) nasceu em Portland, Oregon. Sofreu aquele acidente que mudou sua vida aos 21 anos. Quem dirigia o veículo não era ele, e sim um beberrão que conhecera num boteco. De festa em festa, de bar em bar, acabaram esborrachando-se no carro de Callahan e este levou a pior. Após o acidente, seguiu com muita determinação um processo de fisioterapia e reabilitação e conseguiu readquirir, em parte, movimentos da parte superior do corpo. Desenhava com dificuldade, mas isso não aparecia na obra, com traços de grande leveza e também de extrema contundência. Mexia com temas tabus como a sexualidade, o racismo e própria enfermidade. Era um provocador e usava o desenho como forma de prospectar seus próprios demônios internos, como faz todo artista.
Callahan era tão incisivo, nos Estados Unidos, como foi Georges Wolinski na França e Henfil entre nós. Artistas que põem no papel o que poucos têm coragem de expressar e, por isso mesmo, nos fazem pensar e crescer como adultos.