Análise|‘A Última Sessão de Freud’ mostra debate sobre fé, ciência e o destino do homem em plena 2ª Guerra


Filme que estreou direto no streaming mostra uma saborosa conversa entre o pai da psicanálise, interpretado por um sarcástico Anthony Hopkins, e o C S Lewis, autor de ‘As Crônicas de Nárnia’ e de livros cristãos; conheça esse e outros filmes sobre Freud

Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Os dois personagens de A Última Ssessão de Freud são reais. Um deles já está no título da obra - Sigmund Freud (1856-1939), o pai da psicanálise, bruxo do inconsciente, aquele que destronou a razão do centro do nosso psiquismo. O outro, que comparece à tal última sessão, é o escritor C S Lewis (1898-1963). Na vida real não se encontraram pessoalmente, ou pelo menos isso é duvidoso. Quem deu um jeito de reuni-los na ficção foi o dramaturgo Mark St. Germain, autor da peça, agora transformada em filme dirigido por Matt Brown que entra diretamente no streaming. A peça é baseada no livro Deus em Questão, de Armand M. Nicholi Jr, psiquiatra da Harvard Medical School. LEIA AQUI SOBRE A MONTAGEM BRASILEIRA

Estamos em Londres, em setembro de 1939. Hitler invadiu a Polônia, a guerra começou, apesar dos esforços de Neville Chamberlain, então primeiro-ministro britânico, em passar pano para o nazismo e tentar uma solução pacífica para o expansionismo alemão. A população de Londres teme que, de uma hora para outra, os aviões da Luftwaffe cheguem para bombardear a cidade. As sirenes tocam com frequência e as pessoas saem à rua sempre com máscaras contra gases.

Anthony Hopkins como Sigmund Freud no filme 'A Última Sessão de Freud', disponível no streaming Foto: Patrick Redmond/Sony Pictures Classics
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Nesse ambiente de paranoia, o encontro entre Freud (Anthony Hopkins) e Lewis (Matthew Goode) ganha contornos dramáticos. A guerra, antes uma hipótese, agora é palpável, prestes a cair sobre a cabeça dos civis, sejam estes pacifistas ou belicistas. Cada um dos personagens tem seus motivos particulares para se sentirem pressionados além da média da população londrina. Freud está muito doente. O câncer no maxilar avança e provoca sofrimento. Sabe que não vai durar muito. Vive à custa de morfina, em doses cada vez maiores.

Lewis é um sobrevivente da Primeira Guerra Mundial, na qual lutou e sofreu o horror das trincheiras. Ante a iminência de nova guerra, seus traumas voltam à tona. Na primeira vez em que desce a um abrigo antiaéreo, começa a tremer de forma incontrolada. Freud tenta ajudá-lo.

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Mas não é uma relação paciente-analista a que se estabelece entre os dois. Pelo menos não no sentido mais convencional. Mais do que relação terapêutica entre Freud e Lewis, há um debate de ideias, já que os dois militam em campos opostos, em particular no domínio da religião.

Freud é um materialista, formado na ciência, ateu e cético, autor de O Futuro de uma Ilusão, denúncia da religião como um sistema de crenças falsas. Perplexo com a agressividade dos homens, Freud também não acreditava muito na espécie e, em Além do Princípio do Prazer, havia formulado a hipótese de uma pulsão de morte, que conviveria às turras com seu oposto, Eros, ou a pulsão de vida. Em 1930, havia escrito seu ensaio lapidar, O Mal-Estar na Civilização (ou na Cultura, segundo a tradução), no qual postula que a sociedade humana se baseia na repressão dos instintos (ou pulsões) destrutivas, como condição mesma de existência. Só que essa repressão - necessária - causa uma inevitável sobrecarga psíquica, traduzida em mal-estar. Para existir, a sociedade paga o preço em repressão de pulsões e neurose. A civilização vive nessa contradição, ou nesse equilíbrio instável e custoso.

Matthew Goode, como C S Lewis, e Anthony Hopkins, como Freud, em diálogo sobre Deus e o futuro da humanidade, em 'A Última Sessão de Freud' Foto: Sabrina Lantos/Sony Pictures Classics
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C S Lewis, professor em Oxford, passa do ateísmo a um cristianismo douto. Acredita em Deus e procura defender a fé com argumentos racionais. Ou que assim parecem. Faz parte de um círculo literário na universidade, no qual se inclui J.R.R. Tolkien, criador de O Senhor dos Aneis. Também Lewis se dedica a uma literatura de corte fantasioso. É autor de As Crônicas de Nárnia, que, como os escritos de seu colega Tolkien, seriam levados ao cinema muito anos depois e se converteriam em blockbusters adolescentes.

Conversa culta à beira do abismo

O debate entre Freud e Lewis é mais filosófico que literário e se desenvolve em torno da existência de Deus. Hopkins faz um Freud sarcástico, que se diverte ao pressionar o amigo com perguntas do tipo: sendo Deus um ser de bondade, como permite a existência do mal no mundo? Questão muito urgente quando o mal, com suas suásticas e armas, ameaçam o planeta. Lewis responde pelo livre-arbítrio, a liberdade concedida por Deus para que a humanidade possa decidir entre o mal e o bem. Freud, que não acredita muito no tal do livre-arbítrio, ri de Lewis. Outros temas são tocados como o humor, em especial o humor judaico de Freud, que escreveu um livro chamado O Chiste e suas Relações com o Inconsciente. Também se fala em sonhos, traumas infantis e sexualidade. É uma conversa muito culta, civilizada, porém travada à beira do abismo.

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Como estética, o filme herda muito da sua origem teatral. Passa-se, em boa parte, no gabinete de consultas de Freud, com sua escrivaninha, seus livros, o divã no qual se deitavam pacientes e a coleção de estátuas antigas. Não faltam nem mesmo os famosos charutos, que Freud continuava a fumar apesar da doença. Consta que, em seus bons tempos, consumia uma média de 20 charutos longos por dia.

O sucesso de uma opção de cinema como esta, em espaço fechado, poucas cenas de rua, poucos personagens e muitos diálogos depende da qualidade do texto e do elenco. O texto é ótimo. Vem da peça e esta tem origem no livro de Nicholi Jr. O elenco não decepciona. Ao contrário. Hopkins, para variar, dá um show à parte na pele de um Freud desiludido, irônico e por vezes sarcástico, de uma inteligência implacável.

Outros personagens giram em torno da dupla. Em especial Anna Freud (Liv Lisa Fries), a dedicada filha de Freud, analisada pelo próprio pai e que se tornou uma pioneira da psicanálise de crianças. Sempre junto a Anna, Dorothy Burlingham (Jodi Balfour), sua companheira e também psicanalista.

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Esta é uma passagem interessante. No filme, Freud sempre evita que Anna leve Dorothy à sua casa, como se não aceitasse que a união das duas mulheres fosse formalizada. A passagem pode ser ficcional, mas é significativa e levanta uma questão lateral: seria o autor polêmico, que admitia a bissexualidade do ser humano, a sexualidade infantil e a atração do filho por sua mãe no chamado Complexo de Édipo, em sua vida privada, um conservador enrustido? Pode ser. Ele próprio compreendia muito bem as contradições do ser humano e as estratégias que este desenvolve para conviver com elas.

Também sobre esse assunto, há uma passagem interessante na correspondência de Freud. Em carta a sua amiga Lou Andreas-Salomé, Freud se dizia preocupado com Anna, por ela fazer amizades apenas com mulheres e não ter vida sexual, apesar de ser intelectualmente independente. Perguntava-se o que seria dela quando ele viesse a morrer.

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Mas Freud não tinha por que se preocupar. Anna e Dorothy viveram e trabalharam juntas até a morte desta, em 1979. Anna morreu três anos depois da companheira.

Onde ver ‘A Última Sessão de Freud’

O filme está disponível para compra ou aluguel na Apple TV, Amazon Prime Video ou Claro Video.

Outros filmes sobre Freud para assistir no streaming

Freud Além da Alma

  • Direção de John Huston. O roteiro original havia sido escrito por Jean-Paul Sartre, mas Huston considerou o calhamaço de mais de mil páginas infilmável. No filme, o jovem Freud é visto recebendo suas primeiras pacientes histéricas e formulando as bases da psicanálise. A angustiosa interpretação de Montgomery Clift é decisiva para a qualidade do filme, que estreou em 1962. Disponível para aluguel na Looke

Freud

  • Direção de Marvin Kren. Série em oito episódios, mostra um Freud pop, decidido a se tornar famoso na Viena do século 19. Para tanto, une-se a uma vidente e a um detetive para solucionar uma série de crimes. Pode ser até divertido, mas não é para ser levado a sério. Na Netflix.

Freud, Um Judeu Sem Deus

  • Ótimo documentário francês sobre a trajetória de Freud, desde a mudança da família para a Viena, onde o futuro psicanalista cresceu e estudou, o estágio na França com Charcot, a aventura da psicanálise, seus impasses, dissidentes e críticos, até o exílio e morte em Londres, no começo da 2ª Guerra Mundial. Rico em material de arquivo, com depoimentos de familiares, amigos e colegas, além filmes domésticos, cartas e trechos do diário do personagem. Interpretado por vozes ilustres: narração de Denis Podalydès, Mathieu Amalric (Freud), Isabelle Huppert (Anna Freud), Catherine Deneuve (Marie Bonaparte) e Jeanne Balibar (Lou Andreas-Salomé). Disponível no Youtube, original em francês com legendas em espanhol.

Os dois personagens de A Última Ssessão de Freud são reais. Um deles já está no título da obra - Sigmund Freud (1856-1939), o pai da psicanálise, bruxo do inconsciente, aquele que destronou a razão do centro do nosso psiquismo. O outro, que comparece à tal última sessão, é o escritor C S Lewis (1898-1963). Na vida real não se encontraram pessoalmente, ou pelo menos isso é duvidoso. Quem deu um jeito de reuni-los na ficção foi o dramaturgo Mark St. Germain, autor da peça, agora transformada em filme dirigido por Matt Brown que entra diretamente no streaming. A peça é baseada no livro Deus em Questão, de Armand M. Nicholi Jr, psiquiatra da Harvard Medical School. LEIA AQUI SOBRE A MONTAGEM BRASILEIRA

Estamos em Londres, em setembro de 1939. Hitler invadiu a Polônia, a guerra começou, apesar dos esforços de Neville Chamberlain, então primeiro-ministro britânico, em passar pano para o nazismo e tentar uma solução pacífica para o expansionismo alemão. A população de Londres teme que, de uma hora para outra, os aviões da Luftwaffe cheguem para bombardear a cidade. As sirenes tocam com frequência e as pessoas saem à rua sempre com máscaras contra gases.

Anthony Hopkins como Sigmund Freud no filme 'A Última Sessão de Freud', disponível no streaming Foto: Patrick Redmond/Sony Pictures Classics

Nesse ambiente de paranoia, o encontro entre Freud (Anthony Hopkins) e Lewis (Matthew Goode) ganha contornos dramáticos. A guerra, antes uma hipótese, agora é palpável, prestes a cair sobre a cabeça dos civis, sejam estes pacifistas ou belicistas. Cada um dos personagens tem seus motivos particulares para se sentirem pressionados além da média da população londrina. Freud está muito doente. O câncer no maxilar avança e provoca sofrimento. Sabe que não vai durar muito. Vive à custa de morfina, em doses cada vez maiores.

Lewis é um sobrevivente da Primeira Guerra Mundial, na qual lutou e sofreu o horror das trincheiras. Ante a iminência de nova guerra, seus traumas voltam à tona. Na primeira vez em que desce a um abrigo antiaéreo, começa a tremer de forma incontrolada. Freud tenta ajudá-lo.

Mas não é uma relação paciente-analista a que se estabelece entre os dois. Pelo menos não no sentido mais convencional. Mais do que relação terapêutica entre Freud e Lewis, há um debate de ideias, já que os dois militam em campos opostos, em particular no domínio da religião.

Freud é um materialista, formado na ciência, ateu e cético, autor de O Futuro de uma Ilusão, denúncia da religião como um sistema de crenças falsas. Perplexo com a agressividade dos homens, Freud também não acreditava muito na espécie e, em Além do Princípio do Prazer, havia formulado a hipótese de uma pulsão de morte, que conviveria às turras com seu oposto, Eros, ou a pulsão de vida. Em 1930, havia escrito seu ensaio lapidar, O Mal-Estar na Civilização (ou na Cultura, segundo a tradução), no qual postula que a sociedade humana se baseia na repressão dos instintos (ou pulsões) destrutivas, como condição mesma de existência. Só que essa repressão - necessária - causa uma inevitável sobrecarga psíquica, traduzida em mal-estar. Para existir, a sociedade paga o preço em repressão de pulsões e neurose. A civilização vive nessa contradição, ou nesse equilíbrio instável e custoso.

Matthew Goode, como C S Lewis, e Anthony Hopkins, como Freud, em diálogo sobre Deus e o futuro da humanidade, em 'A Última Sessão de Freud' Foto: Sabrina Lantos/Sony Pictures Classics

C S Lewis, professor em Oxford, passa do ateísmo a um cristianismo douto. Acredita em Deus e procura defender a fé com argumentos racionais. Ou que assim parecem. Faz parte de um círculo literário na universidade, no qual se inclui J.R.R. Tolkien, criador de O Senhor dos Aneis. Também Lewis se dedica a uma literatura de corte fantasioso. É autor de As Crônicas de Nárnia, que, como os escritos de seu colega Tolkien, seriam levados ao cinema muito anos depois e se converteriam em blockbusters adolescentes.

Conversa culta à beira do abismo

O debate entre Freud e Lewis é mais filosófico que literário e se desenvolve em torno da existência de Deus. Hopkins faz um Freud sarcástico, que se diverte ao pressionar o amigo com perguntas do tipo: sendo Deus um ser de bondade, como permite a existência do mal no mundo? Questão muito urgente quando o mal, com suas suásticas e armas, ameaçam o planeta. Lewis responde pelo livre-arbítrio, a liberdade concedida por Deus para que a humanidade possa decidir entre o mal e o bem. Freud, que não acredita muito no tal do livre-arbítrio, ri de Lewis. Outros temas são tocados como o humor, em especial o humor judaico de Freud, que escreveu um livro chamado O Chiste e suas Relações com o Inconsciente. Também se fala em sonhos, traumas infantis e sexualidade. É uma conversa muito culta, civilizada, porém travada à beira do abismo.

Como estética, o filme herda muito da sua origem teatral. Passa-se, em boa parte, no gabinete de consultas de Freud, com sua escrivaninha, seus livros, o divã no qual se deitavam pacientes e a coleção de estátuas antigas. Não faltam nem mesmo os famosos charutos, que Freud continuava a fumar apesar da doença. Consta que, em seus bons tempos, consumia uma média de 20 charutos longos por dia.

O sucesso de uma opção de cinema como esta, em espaço fechado, poucas cenas de rua, poucos personagens e muitos diálogos depende da qualidade do texto e do elenco. O texto é ótimo. Vem da peça e esta tem origem no livro de Nicholi Jr. O elenco não decepciona. Ao contrário. Hopkins, para variar, dá um show à parte na pele de um Freud desiludido, irônico e por vezes sarcástico, de uma inteligência implacável.

Outros personagens giram em torno da dupla. Em especial Anna Freud (Liv Lisa Fries), a dedicada filha de Freud, analisada pelo próprio pai e que se tornou uma pioneira da psicanálise de crianças. Sempre junto a Anna, Dorothy Burlingham (Jodi Balfour), sua companheira e também psicanalista.

Esta é uma passagem interessante. No filme, Freud sempre evita que Anna leve Dorothy à sua casa, como se não aceitasse que a união das duas mulheres fosse formalizada. A passagem pode ser ficcional, mas é significativa e levanta uma questão lateral: seria o autor polêmico, que admitia a bissexualidade do ser humano, a sexualidade infantil e a atração do filho por sua mãe no chamado Complexo de Édipo, em sua vida privada, um conservador enrustido? Pode ser. Ele próprio compreendia muito bem as contradições do ser humano e as estratégias que este desenvolve para conviver com elas.

Também sobre esse assunto, há uma passagem interessante na correspondência de Freud. Em carta a sua amiga Lou Andreas-Salomé, Freud se dizia preocupado com Anna, por ela fazer amizades apenas com mulheres e não ter vida sexual, apesar de ser intelectualmente independente. Perguntava-se o que seria dela quando ele viesse a morrer.

Mas Freud não tinha por que se preocupar. Anna e Dorothy viveram e trabalharam juntas até a morte desta, em 1979. Anna morreu três anos depois da companheira.

Onde ver ‘A Última Sessão de Freud’

O filme está disponível para compra ou aluguel na Apple TV, Amazon Prime Video ou Claro Video.

Outros filmes sobre Freud para assistir no streaming

Freud Além da Alma

  • Direção de John Huston. O roteiro original havia sido escrito por Jean-Paul Sartre, mas Huston considerou o calhamaço de mais de mil páginas infilmável. No filme, o jovem Freud é visto recebendo suas primeiras pacientes histéricas e formulando as bases da psicanálise. A angustiosa interpretação de Montgomery Clift é decisiva para a qualidade do filme, que estreou em 1962. Disponível para aluguel na Looke

Freud

  • Direção de Marvin Kren. Série em oito episódios, mostra um Freud pop, decidido a se tornar famoso na Viena do século 19. Para tanto, une-se a uma vidente e a um detetive para solucionar uma série de crimes. Pode ser até divertido, mas não é para ser levado a sério. Na Netflix.

Freud, Um Judeu Sem Deus

  • Ótimo documentário francês sobre a trajetória de Freud, desde a mudança da família para a Viena, onde o futuro psicanalista cresceu e estudou, o estágio na França com Charcot, a aventura da psicanálise, seus impasses, dissidentes e críticos, até o exílio e morte em Londres, no começo da 2ª Guerra Mundial. Rico em material de arquivo, com depoimentos de familiares, amigos e colegas, além filmes domésticos, cartas e trechos do diário do personagem. Interpretado por vozes ilustres: narração de Denis Podalydès, Mathieu Amalric (Freud), Isabelle Huppert (Anna Freud), Catherine Deneuve (Marie Bonaparte) e Jeanne Balibar (Lou Andreas-Salomé). Disponível no Youtube, original em francês com legendas em espanhol.

Os dois personagens de A Última Ssessão de Freud são reais. Um deles já está no título da obra - Sigmund Freud (1856-1939), o pai da psicanálise, bruxo do inconsciente, aquele que destronou a razão do centro do nosso psiquismo. O outro, que comparece à tal última sessão, é o escritor C S Lewis (1898-1963). Na vida real não se encontraram pessoalmente, ou pelo menos isso é duvidoso. Quem deu um jeito de reuni-los na ficção foi o dramaturgo Mark St. Germain, autor da peça, agora transformada em filme dirigido por Matt Brown que entra diretamente no streaming. A peça é baseada no livro Deus em Questão, de Armand M. Nicholi Jr, psiquiatra da Harvard Medical School. LEIA AQUI SOBRE A MONTAGEM BRASILEIRA

Estamos em Londres, em setembro de 1939. Hitler invadiu a Polônia, a guerra começou, apesar dos esforços de Neville Chamberlain, então primeiro-ministro britânico, em passar pano para o nazismo e tentar uma solução pacífica para o expansionismo alemão. A população de Londres teme que, de uma hora para outra, os aviões da Luftwaffe cheguem para bombardear a cidade. As sirenes tocam com frequência e as pessoas saem à rua sempre com máscaras contra gases.

Anthony Hopkins como Sigmund Freud no filme 'A Última Sessão de Freud', disponível no streaming Foto: Patrick Redmond/Sony Pictures Classics

Nesse ambiente de paranoia, o encontro entre Freud (Anthony Hopkins) e Lewis (Matthew Goode) ganha contornos dramáticos. A guerra, antes uma hipótese, agora é palpável, prestes a cair sobre a cabeça dos civis, sejam estes pacifistas ou belicistas. Cada um dos personagens tem seus motivos particulares para se sentirem pressionados além da média da população londrina. Freud está muito doente. O câncer no maxilar avança e provoca sofrimento. Sabe que não vai durar muito. Vive à custa de morfina, em doses cada vez maiores.

Lewis é um sobrevivente da Primeira Guerra Mundial, na qual lutou e sofreu o horror das trincheiras. Ante a iminência de nova guerra, seus traumas voltam à tona. Na primeira vez em que desce a um abrigo antiaéreo, começa a tremer de forma incontrolada. Freud tenta ajudá-lo.

Mas não é uma relação paciente-analista a que se estabelece entre os dois. Pelo menos não no sentido mais convencional. Mais do que relação terapêutica entre Freud e Lewis, há um debate de ideias, já que os dois militam em campos opostos, em particular no domínio da religião.

Freud é um materialista, formado na ciência, ateu e cético, autor de O Futuro de uma Ilusão, denúncia da religião como um sistema de crenças falsas. Perplexo com a agressividade dos homens, Freud também não acreditava muito na espécie e, em Além do Princípio do Prazer, havia formulado a hipótese de uma pulsão de morte, que conviveria às turras com seu oposto, Eros, ou a pulsão de vida. Em 1930, havia escrito seu ensaio lapidar, O Mal-Estar na Civilização (ou na Cultura, segundo a tradução), no qual postula que a sociedade humana se baseia na repressão dos instintos (ou pulsões) destrutivas, como condição mesma de existência. Só que essa repressão - necessária - causa uma inevitável sobrecarga psíquica, traduzida em mal-estar. Para existir, a sociedade paga o preço em repressão de pulsões e neurose. A civilização vive nessa contradição, ou nesse equilíbrio instável e custoso.

Matthew Goode, como C S Lewis, e Anthony Hopkins, como Freud, em diálogo sobre Deus e o futuro da humanidade, em 'A Última Sessão de Freud' Foto: Sabrina Lantos/Sony Pictures Classics

C S Lewis, professor em Oxford, passa do ateísmo a um cristianismo douto. Acredita em Deus e procura defender a fé com argumentos racionais. Ou que assim parecem. Faz parte de um círculo literário na universidade, no qual se inclui J.R.R. Tolkien, criador de O Senhor dos Aneis. Também Lewis se dedica a uma literatura de corte fantasioso. É autor de As Crônicas de Nárnia, que, como os escritos de seu colega Tolkien, seriam levados ao cinema muito anos depois e se converteriam em blockbusters adolescentes.

Conversa culta à beira do abismo

O debate entre Freud e Lewis é mais filosófico que literário e se desenvolve em torno da existência de Deus. Hopkins faz um Freud sarcástico, que se diverte ao pressionar o amigo com perguntas do tipo: sendo Deus um ser de bondade, como permite a existência do mal no mundo? Questão muito urgente quando o mal, com suas suásticas e armas, ameaçam o planeta. Lewis responde pelo livre-arbítrio, a liberdade concedida por Deus para que a humanidade possa decidir entre o mal e o bem. Freud, que não acredita muito no tal do livre-arbítrio, ri de Lewis. Outros temas são tocados como o humor, em especial o humor judaico de Freud, que escreveu um livro chamado O Chiste e suas Relações com o Inconsciente. Também se fala em sonhos, traumas infantis e sexualidade. É uma conversa muito culta, civilizada, porém travada à beira do abismo.

Como estética, o filme herda muito da sua origem teatral. Passa-se, em boa parte, no gabinete de consultas de Freud, com sua escrivaninha, seus livros, o divã no qual se deitavam pacientes e a coleção de estátuas antigas. Não faltam nem mesmo os famosos charutos, que Freud continuava a fumar apesar da doença. Consta que, em seus bons tempos, consumia uma média de 20 charutos longos por dia.

O sucesso de uma opção de cinema como esta, em espaço fechado, poucas cenas de rua, poucos personagens e muitos diálogos depende da qualidade do texto e do elenco. O texto é ótimo. Vem da peça e esta tem origem no livro de Nicholi Jr. O elenco não decepciona. Ao contrário. Hopkins, para variar, dá um show à parte na pele de um Freud desiludido, irônico e por vezes sarcástico, de uma inteligência implacável.

Outros personagens giram em torno da dupla. Em especial Anna Freud (Liv Lisa Fries), a dedicada filha de Freud, analisada pelo próprio pai e que se tornou uma pioneira da psicanálise de crianças. Sempre junto a Anna, Dorothy Burlingham (Jodi Balfour), sua companheira e também psicanalista.

Esta é uma passagem interessante. No filme, Freud sempre evita que Anna leve Dorothy à sua casa, como se não aceitasse que a união das duas mulheres fosse formalizada. A passagem pode ser ficcional, mas é significativa e levanta uma questão lateral: seria o autor polêmico, que admitia a bissexualidade do ser humano, a sexualidade infantil e a atração do filho por sua mãe no chamado Complexo de Édipo, em sua vida privada, um conservador enrustido? Pode ser. Ele próprio compreendia muito bem as contradições do ser humano e as estratégias que este desenvolve para conviver com elas.

Também sobre esse assunto, há uma passagem interessante na correspondência de Freud. Em carta a sua amiga Lou Andreas-Salomé, Freud se dizia preocupado com Anna, por ela fazer amizades apenas com mulheres e não ter vida sexual, apesar de ser intelectualmente independente. Perguntava-se o que seria dela quando ele viesse a morrer.

Mas Freud não tinha por que se preocupar. Anna e Dorothy viveram e trabalharam juntas até a morte desta, em 1979. Anna morreu três anos depois da companheira.

Onde ver ‘A Última Sessão de Freud’

O filme está disponível para compra ou aluguel na Apple TV, Amazon Prime Video ou Claro Video.

Outros filmes sobre Freud para assistir no streaming

Freud Além da Alma

  • Direção de John Huston. O roteiro original havia sido escrito por Jean-Paul Sartre, mas Huston considerou o calhamaço de mais de mil páginas infilmável. No filme, o jovem Freud é visto recebendo suas primeiras pacientes histéricas e formulando as bases da psicanálise. A angustiosa interpretação de Montgomery Clift é decisiva para a qualidade do filme, que estreou em 1962. Disponível para aluguel na Looke

Freud

  • Direção de Marvin Kren. Série em oito episódios, mostra um Freud pop, decidido a se tornar famoso na Viena do século 19. Para tanto, une-se a uma vidente e a um detetive para solucionar uma série de crimes. Pode ser até divertido, mas não é para ser levado a sério. Na Netflix.

Freud, Um Judeu Sem Deus

  • Ótimo documentário francês sobre a trajetória de Freud, desde a mudança da família para a Viena, onde o futuro psicanalista cresceu e estudou, o estágio na França com Charcot, a aventura da psicanálise, seus impasses, dissidentes e críticos, até o exílio e morte em Londres, no começo da 2ª Guerra Mundial. Rico em material de arquivo, com depoimentos de familiares, amigos e colegas, além filmes domésticos, cartas e trechos do diário do personagem. Interpretado por vozes ilustres: narração de Denis Podalydès, Mathieu Amalric (Freud), Isabelle Huppert (Anna Freud), Catherine Deneuve (Marie Bonaparte) e Jeanne Balibar (Lou Andreas-Salomé). Disponível no Youtube, original em francês com legendas em espanhol.
Análise por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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