Cannes homenageou-o duas vezes. O pôster do festival de 2016 ostenta uma imagem de O Desprezo, de 1963. O de 2018, a imagem de outro clássico de Jean-Luc Godard, Pierrot le Fou/O Demônio das Onze Horas, de 1965. É estranho falar em ‘clássico’ de Jean-Luc Godard. Ele foi, talvez, o maior revolucionário da linguagem - e da política - no cinema. No Dicionário de Cinema, Jean Tulard inicia seu verbete sobre ele com duas interrogações: “Pergunta-se se Godard não foi o coveiro do cinema? Ou um gênio inovador?” A polêmica sempre acompanhou Godard. Resumidamente, o jovem de origem suíça que foi estudar em Paris, nas Sorbonne, frequentou mais a Cinemateca que a universidade, ligou-se a André Bazin e François Truffaut, com o pseudônimo de Hans Luca fez a crítica em Arts e, depois, na Cahiers du Cinéma, que foi o grande celeiro do movimento de renovação da cinematografia francesa conhecido como nouvelle vague.
A nova onda veio, na segunda metade dos anos 1950, para sacudir as estruturas de um cinema que se fossilizara. Truffaut, num célebre artigo - Uma Certa Tendência do Cinema Francês -, investiu contra o que chamava de “cinema de papai”. Godard iniciou-se no curta. Opération Béton, Une Femme Coquette, Tous les Garçons s’Appellent Patrick, Charlotte et Son Jules, Une Histopire d’Eau, esse último em parceria com Truffaut. Foi ainda Truffaut quem lhe deu a história para seu primeiro longa, À Bout de Souffle/Acossado, de 1960. Unidos no começo, seguiram caminhos diversos. Compartilharam o mesmo ator - Jean-Pierre Léaud. Truffaut morreu cedo, em 1984, aos 52 anos. Godard ultrapassou-o em quase 40 anos. Morreu nessa terça, 13, aos 91 anos. Faria 92 em 3 de dezembro.
Justamente a morte. Com exceção de Truffaut e Jacques Démy, que partiu aos 59 anos, os grandes da nouvelle vague foram quase todos longevos. Agnès Varda morreu a poucos meses de completar 91 anos, Eric Rohmer morreu faltando dois meses para fazer 90 anos, Jacques Rivette, aos 88 anos, Claude Chabrol, aos 80 - em 12 de setembro de 2010. Por volta de 1960, os jovens futuros autores da nova onda reclamavam que a França era um país de velhos. Há controvérsia. Alguns mantiveram a juventude na autoralidade, fazendo até o fim obras inovadoras, cheias de vigor. Justamente Truffaut virou o nó górdio. Fez filmes sobre o amor, baseados na observação cotidiana - uma tradição francesa, segundo Jean Tulard -, foi, ele sim, um clássico, para não dizer acadêmico.
Godard, não. Desde o começo questionou a linguagem. Acossado não deixa de ser um faroeste urbano, Um Homem, Uma Mulher é um musical sem canto nem dança. Mesmo quando parecia que ia fazer cinema de gênero, Godard, na verdade, desconstruía as formas. Sua obra foi se radicalizando aos longo dos anos 1960. A radicalidade não estava só na forma. Masculino-Feminino, de 1965, é sobre a sua geração, que Jean-Luc definia como “filhos de Marx e da Coca-Cola”. A Chinesa, de 1967, antecipa o célebre Maio ao colocar seus personagens dentro de um apartamento, dizendo palavras de ordem revolucionária, Week-End à Francesa, de 1968, utiliza um engarrafamento de trânsito para filmar a derrocada do sistema.
Seguiu-se uma fase de militância, na qual o único filme comercial - comercial, nos termos de Godard - foi Tout Va Bien, com dois ícones da esquerda, Yves Montand e Jane Fonda. Longe de obter a unanimidade, Godard foi espinafrado pelos sindicatos, considerado irresponsável. Em 2017, ele seria biografado por Michel Hazanavicius em O Formidável. Um recorte, apenas - Godard, interpretado por Louis Garrel, tenta ser aceito nos círculos mais radicais de Maio, mas é rechaçado. O filme baseia-se no relato da mulher de Godard na época, Anne Wiazemsky, que ele conheceu ao visitar o set de Au Hazard Balthazar/A Grande Testemunha, de Robert Bresson, de 1966.
As mulheres de Godard - depois de transformar Jean Seberg em musa, em Acossado, e de subverter o mito de Brigitte Bardot em O Desprezo, Godard teve a sua fase Anna Karina, a fase Wiazemsky, até chegar a Anne-Marie Miéville. No Google, você encontra a definição: “Importante videomaker suíça”. Por influência dela, ou não, Godard volta-se para o vídeo e a TV, realiza Histoire(s) du Cinéma. O livro com esse título, História(s) do Cinema, foi editado no Brasil pela Círculo de Poemas. Em matéria de colaborações, não se pode esquecer os grandes papeis que ofertou a Jean-Paul Belmondo, que morreu no ano passado, e até Alain Delon. E se inicia a fase final. Prénom Carmen, Je Vous Salue Marie, Nouvelle Vague, Alemanha Novo Zero, Hélas pour Moi, L’Éloge de l’Amour/O Elogio do Amor, Le Livre de l’Image.
Pelo último, Godard recebeu a Palma de Ouro honorária em Cannes, 2018 - mais uma homenagem do festival. Ele venceu o Urso de Ouro, o Leão de Ouro, um César especial pelo conjunto da obra, outro prêmio honorário da Academia de Hollywood. A par de todas as recompensas, e à maioria ele nem se dignou a comparecer para receber, Godard foi extremamente importante. Marcou a segunda metade do centenário do cinema. Desde o fim dos anos 1950, é inimaginável a evolução do cinema sem as provocações desse gênio.