Na entrevista que deu para o Estado, Renata de Almeida, a diretora da Mostra, espantou-se com o número de inscrições deste ano: “Mais de 1.400 filmes!” É verdade: desde a explosão das novas tecnologias, vivemos afogados num oceano audiovisual. Ficou muito barato filmar, montar e finalizar um filme, documental ou de ficção. Depois, basta criar um link e enviá-lo por e-mail a mostras e festivais. Pobres curadores. Matam-se de ver filmes dia e noite, são obrigados a descartar a maioria por questões de espaço e depois se atormentam pelo resto da vida com a possibilidade de terem desprezado a obra-prima de algum desconhecido... por tédio, ignorância ou mero cansaço. Temos tantos cineastas emergentes quanto o século 19 tinha poetas inéditos. Como chegar à qualidade em meio a tamanha quantidade?
Este tem sido o desafio dos festivais, que precisaram redesenhar curadorias e comissões de seleção. Estas, a duras penas, filtram os candidatos; e, da forma que for, buscam separar o joio do trigo, por subjetiva que seja essa fronteira. Por outro lado, há os “autores” que são buscados pelos festivais. Diretores famosos, consagrados, ou novatos promissores que já mostraram serviço em trabalhos anteriores têm passe valorizado e são caçados a laço. Do coquetel bem balanceado entre desconhecidos e badalados é que pode sair um festival interessante.
O fato é que a Mostra de São Paulo, desde suas origens, buscou equilíbrio entre o já consagrado e a absoluta novidade de qualidade, aquele tipo de filme que passaria despercebido, ou nem chegaria ao Brasil, caso a Mostra não colocasse seus generosos holofotes sobre ele.
No início dos anos 1990, fomos apresentados aos cineastas iranianos, os quais nem de ouvido conhecíamos. Mais tarde, já no topo do circuito de arte, eles andaram por aqui, celebridades cinéfilas como Mohsen Makhmalbaf e Abbas Kiarostami, o maior de todos, que se transformou num “amigo da Mostra” e habitué. Tarantino era um desconhecido quando trouxe para cá um filme estranho chamado Cães de Aluguel. Os exemplos pululam.
Mas, em meio às novidades, sempre circularam mestres já reconhecidos, que iluminavam as mostras com seus filmes faróis. Foi o caso de Manoel de Oliveira, nas várias vezes em que aqui esteve. Ou o mestre da fotografia Gabriel Figueroa, escultor da luz de filmes de Índio Fernandez, Luis Buñuel e John Ford. Yoshida circulou muito por aqui, sempre em companhia de sua atriz e musa Mariko Okada. O armênio Artavazd Peleshian encantou a todos com seu mau humor cômico e seu cinema alucinante. Almodóvar desembarcou numa mostra, zangado pela viagem e em companhia de suas “chicas”, inclusive a esfuziante Rossy de Palma. A lista é imensa.
Neste ano tão agitado, o homenageado não poderia ser mais adequado – Marco Bellocchio, emblema do cinema político italiano, mestre consagrado de filmes provocativos como De Punhos Fechados, O Diabo no Corpo e Bom Dia, Noite. Também pintor e desenhista, ele assina o cartaz da mostra e inspira a linda vinheta a ser apresentada antes de cada uma das sessões. Nela, mesclam-se os punhos no ar dos indignados, as mãos em prece dos que têm fé, os desacertos do mundo, a revolta, a esperança. Tudo isso que andamos sentindo nós, brasileiros, diante de uma realidade que teima em nos causar pasmo. Poderia o cinema mais uma vez aclarar a cena, abrir nossos olhos e nos confortar em nossa perplexidade? Ou será pedir demais a essa arte?