Talvez, para entender direito Após a Reconciliação, o espectador tenha de referir-se a Hard and Soft, um filme de Jean-Luc Godard em parceria com Anne-Marie Miéville. Ou talvez a outro filme de Godard, Nous Tous Qui encore Sommes Ici. Ambos veiculam preocupações que são retomadas agora pela mulher de Godard, no filme interpretado por seu marido famoso. A mulher de Godard: que ninguém faça a Anne-Marie o insulto de defini-la assim, ainda mais amanhã, no dia em que se comemora o Dia Internacional da Mulher. Anne-Marie pode ser a companheira, na arte e na vida, de um dos grandes artistas do século 20. Não deve ter sido fácil para ela casar-se com um mito do cinema e vir a ser reconhecida por seu trabalho, ainda mais que quase toda a sua produção é compartilhada por ele. Há três personagens masculinos em Após a Reconciliação. Um deles se chama Robert e é interpretado por Godard. Três homens que se referem constantemente a uma mulher sem nome e que também é interpretada pela própria diretora, Anne-Marie. Fazem uma espécie de teatro e a própria Anne-Marie já disse que o grande filme, para ela, é aquele a que se assiste (e ouve), mas que não se conta, porque o ideal é que a experiência radical proporcionada pelo filme seja vivida, não contada. Filhos - As figuras em cena agridem-se e insultam-se, mas no final, Robert e a dama permanecem juntos. Em Hard and Soft, ambos usavam o vídeo para dialogar com o cinema e Godard se perguntava, lá pelas tantas, se o fato de fazer filmes em vez de filhos o tornava diferente das outras pessoas. Anne-Marie fala na filha (e na neta) em Após a Reconciliação. Discute uma relação. Usa de novo o vídeo para falar de cinema. A palavra mais que o gesto, para celebrar o amor. Pode-se viajar na memória, pode-se lembrar muita coisa, mas não tudo. É uma frase forte de Após a Reconciliação. Refere-se justamente a uma coisa que você sabe, instintivamente, mas sobre a qual Anne-Marie quer refletir. Nossa memória é seletiva. Raramente lembramos tudo. Às vezes lembramos o que é preciso para ter um sentimento positivo das coisas, para reconciliar-nos com os outros e com nós mesmos. Às vezes, o movimento é inverso e retemos o negativo para fortalecer a nossa convicção de que não há reconciliação possível. Personagem - Godard não é um ator, mas sua simples presença confere densidade a Após a Reconciliação. Nada do que diz Robert é irrelevante porque, no fundo, quem fala por meio dele não é o personagem, mas o diretor. Há uma conversa sobre o cinema e o vídeo em Após a Reconciliação, herança de Nous Tous Qui encore Sommes Ici. O cinema é o corpo e o vídeo é a alma? E o que significa ser a alma? Num filme antigo, dos anos 60, o sublime Viver a Vida, Godard já contou a história do ovo e da galinha. A galinha tem o exterior e o interior. Tirando o exterior, fica o interior. E tirando esse o que sobra? Indagações godardianas que se referem à alma das pessoas mas talvez, principalmente à alma do próprio cinema. Anne-Marie como companheira, compartilha dessas preocupações. Tudo o que ela quer dizer em Após a Reconciliação pode ser resumido numa frase retirada do filme: "As palavras podem matar tanto quanto as armas." Tudo, sua reflexão sobre o amor e as pessoas, a arte e a vida, passa por aí. Após a Reconciliação (Aprs la Reconciliation). Drama. Direção de Anne-Marie Miéville. Fr-Suíça/2000. Duração: 74 minutos. 14 anos.