AP - “Coração e alma do filme” é uma expressão bastante desgastada, mas é praticamente inevitável quando se trata de Anthony Hopkins em Armageddon Time, de James Gray, longa que será exibido na Mostra de Cinema de São Paulo na próxima terça, 1º, às 21h10, e quarta, 2, às 16h.
O filme autobiográfico de Gray, concebido a partir de detalhes requintados de sua infância no Queens, Nova York, nos anos 80, acompanha um garoto de 11 anos chamado Paul (Banks Repeta) que sonha se tornar artista. Feito com nostalgia e autorreflexão, Armageddon Time toca em correntes sociais mais amplas – um amigo negro (Jaylin Webb) enfrenta desafios bem diferentes na escola, a família Trump faz uma aparição – ao mesmo tempo em que elabora um retrato vívido da família judaico-americana de Gray.
Os pais (Jeremy Strong, Anne Hathaway) têm uma relação tensa e disciplinadora com o filho, mas o bondoso avô de Paul (Hopkins) é uma fonte inesgotável de apoio. Em cenas intimistas e afetuosas, Aaron Rabinowitz, o avô interpretado por Hopkins, orienta Paul mesmo enquanto sua saúde vai se deteriorando. Para Hopkins, hoje com 84 anos, que ganhou o Oscar de melhor ator no ano passado por seu patriarca entrando em processo de demência senil em ‘Meu pai’, é mais uma brilhante atuação crepuscular e um ponto culminante magistral para uma das mais ilustres carreiras da atuação.
Assim como os pequenos momentos do filme reverberam com um significado maior, o filme de Gray – sobre o amadurecimento de um jovem artista e as pessoas que o formaram – tem conexões profundas para Hopkins. É um papel muito comovente para o ator, pois ressoa ecos de seu próprio avô. Criado na cidade operária galesa de Port Talbot, Hopkins diz que era mais próximo do avô que dos pais.
“Passávamos muito tempo caminhando juntos. Foi ele quem me deu a liberdade de me livrar de mim mesmo”, diz Hopkins. “Eu era meio lento na escola. Meu pai sempre se preocupava com isso, claro, minha mãe também. E meu avô dizia: ‘Não se preocupe. Você vai se sair bem’. Ele tinha uma velha filosofia interiorana. Costumava me chamar de George, soava muito interiorano, muito inglês. Ele nasceu em Wilshire. ‘Não se preocupe, George. Vai ficar tudo bem’. E eu ainda confio nisso”.
Hopkins raramente dá entrevistas nesta fase da vida. Mas semanas atrás falou por telefone durante uma curta estadia nos Hamptons, enquanto viajava do País de Gales para Los Angeles. Gray, que se juntou à conversa direto de Nova York, ficou encantado ao saber do paradeiro de Hopkins. “Você é muito chique”, disse ele.
Armageddon Time, que estreou no Festival de Cinema de Cannes e a Focus Features está lançando em alguns cinemas na sexta-feira, é a exumação de um passado pessoal que Gray fez sob medida para os atores. De início, Robert De Niro é que interpretaria o avô, mas a pandemia alterou os planos de produção do filme e a concepção de Gray sobre o personagem. Rabinowitz, que não abandonou completamente o sotaque galês de Hopkins, é filho de judeus ucranianos que emigraram para Londres.
“Eu precisava de alguém de grande estatura para interpretar meu avô, porque ele era a pessoa que me amava e me fazia me sentir amado”, diz Gray. “A lista de lendas sagradas e grandes atores hoje em dia está bem pequena. Tony Hopkins é o número um”.
Hopkins gostou do roteiro logo de cara. “O que eu gosto é: menos é mais”, diz Hopkins. “Se o roteiro é muito cheio de enrolação e direcionamentos e essas coisas todas, acabo perdendo o interesse. Quando o roteiro é claro e conciso, funciona como um mapa”.
Hopkins logo começou a enviar longos e-mails para Gray com reflexões sobre seu próprio avô, enquanto ator e diretor trocavam memórias um com o outro. As lembranças de Hopkins, em muitos aspectos, espelhavam as de Gray.
“Minha lembrança mais triste é de um dia de 1961: tomamos alguma coisa no hotel da estrada em Port Albert”, diz Hopkins sobre seu avô. “Ele queria que eu fosse almoçar na sua casa. Eu estava muito ocupado, era muito jovem. Então disse: ‘Tenho que ir agora, até breve’. Ele se virou e acenou, dois meses depois estava morto. Nunca me esqueço disso. É uma pedra no meu peito, essa memória”.
“Tenho uma memória semelhante”, acrescenta Gray. “Eu me lembro de dizer adeus ao meu avô de uma forma muito pouco sentimental. Não contemplei sua mortalidade. Só me lembro de acenar e dizer ‘Adeus, vovô’. E nunca mais o vi”.
“É isso”, diz Hopkins. “Essas memórias ficam com você para o resto da vida”.
Inúmeros detalhes de Armageddon Time vêm diretamente da infância de Gray. O interior de sua casa foi meticulosamente recriado. Hopkins usou as roupas e o chapéu de seu avô. Mas o diretor também insistiu, na primeira vez que se encontrou com Hopkins, que não queria uma imitação. “Eu disse, ‘Você sempre vai ganhar qualquer disputa criativa comigo’”, diz Gray.
Hopkins não tem experiência pessoal como avô. Há muito tempo ele se afastou de sua única filha, Abigail, de seu primeiro casamento, com Petronella Barker.
“Nunca penso em mim como avô”, diz Hopkins. “Tenho 84 anos, mas estou muito forte fisicamente. Algumas dores. Mas me sinto com cinquenta anos, cheio de vida e energia. Tento não pensar muito no futuro, nem no passado”.
Em Armageddon Time, o avô transmite algumas palavras memoráveis de sabedoria e, mais notavelmente, seu conselho para Paul “ser um mensch” [do iídiche, pessoa boa, digna, íntegra] para seu amigo injustiçado. A fala veio diretamente da infância de Gray. “Eu era muito desagradável quando criança. Conforme fui crescendo, fui ficando cada vez mais indisciplinado”, diz Gray. “Meu avô dizia: ‘Vamos lá. Seja um mensh. E dizia isso para me reorientar. Não entendo muito bem por quê, mas ele tinha mais autoridade sobre mim do que meu pai, embora meu pai, com seu jeito inepto, estivesse sempre tentando impor disciplina. Meu avô, ele comandava tudo com luvas de veludo”.
Hopkins também compôs o personagem a partir de momentos cristalizados de sua memória. Assim como seu avô o chamava de George, Hopkins chama Paul de “Jujuba” no filme. Outra frase improvisada – “Nunca desista” – veio de algo que sua avó dizia quando ele, autoproclamado solitário quando criança, era importunado na escola.
“A maior parte da minha vida veio da minha avó: ‘Nunca desista. Nunca desista’, ela dizia”, lembra Hopkins. “O que aprendi com isso? Ter coragem dentro de mim mesmo e parar de sentir pena de mim mesmo. É o que pus em prática minha vida toda”.
O momento mais comovente de Armageddon Time vem na cena em que o avô encontra Paul para disparar foguetes de artifício perto do antigo espaço da Feira Mundial, em Flushing. É uma cena adorável e nada sentimental sob uma luz suave e cinzenta de outono, com Hopkins sentado em um banco de parque. Ele sabe que vai morrer em breve, embora Paul ainda não saiba. Tanto para Hopkins quanto para Gray, a cena se destaca como uma rara fusão de ficção e realidade – memória real e imaginada.
“Eu sempre ia lá com meu avô para soltar foguetes de artifício, como no filme”, diz Gray. “É quase como uma ruína moderna, aquele prédio da Feira Mundial que agora está decadente e caindo aos pedaços. Só de botar Tony naquele banco com o garoto, parecia um estranho flashback da minha vida. É muito incomum no cinema fazer algo que parece ter sido tirado da sua memória. Foi um grande presente”.
“Não sou americano, venho do País de Gales. Mas aquele parque, aquela área, era muito americano para mim”, diz Hopkins. “Era como os anos crepusculares do mundo. Aquele espaço aberto e o menino brincando na grama. Trouxe de volta a memória da minha infância. Não sei dizer exatamente o quê. Todos os sonhos e memórias são falhos, de todo jeito. Mas me lembrou meu avô. Essa luz eterna. Essa luz e a consciência de que vou morrer”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU