É correto dizer que As Linhas da Minha Mão, que chegou aos cinemas de São Paulo recentemente, é um documentário biográfico. Afinal, o novo filme de João Dumans (do premiadíssimo Arábia) é o retrato possível de Viviane de Cássia Ferreira, artista que nunca permite ser descoberta por completo.
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Essa é a graça e a beleza do documentário, que nunca segue o caminho banal de começo, meio e fim, transitando entre temas quase sem que possamos perceber. Não é como aqueles documentários amarrados, em que o entrevistado segue quase que uma linha do tempo para falar de tópicos específicos, provocados pelo diretor. Aqui, Vivi é livre para pensar e sentir o momento, trazendo uma naturalidade potente enquanto a conhecemos.
“A ideia de não seguir o gênero de maneira tradicional esteve presente desde o início do filme”, contextualiza Dumans, em entrevista ao Estadão, sobre essa escolha estética. “Eu tenho a impressão de que o trabalho que venho desenvolvendo nos cinemas procura, de alguma maneira, novas formas de representação para personagens que se encontram em situação de marginalidade ou de vulnerabilidade na sociedade brasileira e que, justamente por isso, expressam certos dilemas e contrariedades da nossa sociedade, do nosso País”.
Dumans conta que buscou encontrar, nesse afastamento do formato tradicional, elementos que somem em documentários como já conhecemos – é o caso da interpretação, atuação e o jogo cênico de Viviane, essa atriz e artista com tanto a dizer e que também passa, no momento, por questões psicológicas que precisam ser discutidas com naturalidade.
“As histórias dela me interessam cada vez mais, mas eu me interessava em vê-la como atriz nos cinemas”, conta o diretor, ao ser questionado sobre os caminhos do filme. “Para isso, precisava estabelecer uma dinâmica diferente do que temos tradicionalmente”.
Intimidade em cena
Obviamente, a partir dessa dinâmica pouco usual, também encontramos algo importante por trás das câmeras: a intimidade entre o documentarista e sua biografada. Para se expressar da forma que se expressa em cena, Viviane precisa confiar em quem está com a câmera apontada para seu rosto, seu corpo, seus hábitos. Como falar da vida, dos medos, das instabilidades e das inseguranças na frente de alguém que não confia? Não tem como.
Para As Linhas da Minha Mão, Dumans e Viviane buscaram um ponto de intimidade entre eles. Segundo o cineasta, isso e a troca entre os dois foi alcançada de forma relativamente rápida – e foi essa amizade, aliás, que fez brotar a ideia de fazer este documentário.
“Trabalhamos juntos durante um ano na preparação e na filmagem de um filme ficcional. No ano seguinte, que já era pandemia, a gente se comunicava muito para continuar desenvolvendo essa personagem que a gente estava fazendo. Só que, naquela situação de isolamento da pandemia, também nos aproximamos como amigos”, diz.
João Dumans
Foi aí que Dumans teve a ideia de fazer um documentário sobre a vida de Viviane, na intimidade. Ela topou prontamente – mesmo com equipe enxuta, pelas restrições da covid-19. “Fomos desenvolvendo nossa amizade durante as gravações”, diz ele.
Viviane como ponto de partida
Em momento algum o documentário traz imposições temáticas ao espectador – tudo é muito fluído, por meio de conversas, leituras e pensamentos do dia a dia, apenas provocando o público a pensar. Assim, pensamos sobre arte, vida, morte e, principalmente, um assunto que vai se tornando mais caro à Viviane com o passar do tempo: saúde mental.
O fato é que, no cinema, questões de saúde mental – sejam de processos depressivos ou de processos maníacos – muitas vezes são representadas de maneira estereotipada. E isso vai desde o cinema americano (Ilha do Medo, O Lado Bom da Vida, Coringa) até chegar no cinema brasileiro que escapa para obviedades (como no simpático Depois a Louca Sou Eu).
João Dumans foge do estereótipo e busca colocar o que há de mais real na tela. O resultado é certeiro e, no final, sentimos que conhecemos Viviane e suas questões como se ela fosse uma pessoa próxima de nós. Deixamos estereótipos de lado e entramos em contato com o que acontece, sente e teme uma pessoa que vive essa questão dia a dia.
“A Vivi viveu surtos, momentos horríveis de depressão, mas na maior parte da vida é uma pessoa extremamente clara, bem articulada e precisa em relação aos seus pensamentos e emoções”, diz o cineasta. “Mostrar alguém que reconhece seu sofrimento, mas que ao mesmo tempo transforma essa loucura e essa diferença em uma maneira de ser, que forja uma ética a partir disso, é algo relevante para pensarmos nas possibilidades de sobrevivência, de vida, de felicidade ou até mesmo de enfrentamento do sofrimento psíquico”.