GRAMADO | Foram dez longos anos para que a dupla de roteiristas – um casal, na verdade – visse nascer o seu rebento. Mariana Bardan e Eduardo Melo conheceram-se no primeiro dia de faculdade e casaram-se no último. Ele já havia cursado matemática, vinha do mundo corporativo. Lá no fundo sabia que sua vocação era artística. Foi estudar cinema.
Estamos falando da dupla que criou Cangaço Novo, a série da Amazon Prime VIdeo que estreia mundialmente nesta sexta, 18. Não é exato dizer ‘estreia’. A série será disponibilizada em 240 territórios – 240! Dependendo da aceitação, Mariana e Eduardo já têm ideias prontas para incrementar os conflitos numa eventual segunda temporada, mas, calma, antes a série precisa passar pelo crivo do público.
Ele queria ser diretor, ela queria ser fotógrafa. O casamento perfeito. Sem padrinhos para ingressar no mundo do audiovisual, resolveram escrever. Era 2009, o ano em que O Profeta recebeu o Grand Prix no Festival de Cannes. Lembram-se do longa de Jacques Audiard? Na cadeia, Tahar Rahim aproxima-se de um chefão do crime, Niels Arestrup.
Assaltos a banco e drama familiar no Nordeste
Mariana e Eduardo ficaram siderados pelo filme. Começaram a pensar como seria se Rahim, o Profeta, vivesse no Brasil. No Nordeste, mais exatamente no Ceará, proliferavam os assaltos a bancos. Foram centenas em um só ano. Uma história começou a tomar forma.
“Sou nordestino. Meus pais migraram para São Paulo em condições precárias”, conta Eduardo. “Era uma coisa assim de Vidas Secas. Chegaram na cara e na coragem, sem dinheiro, sem perspectiva e com os filhos para sustentar.” A história, desde o começo, misturava assaltos a bancos com um pesado drama familiar.
Um irmão – o filho pródigo – que volta para casa, mas não para ficar. Vem em busca de dinheiro porque seu pai adotivo, o que o criou, está num hospital em São Paulo, e o tratamento custa caro. Ubaldo é seu nome e ele não é bem recebido pela irmã, que comanda uma quadrilha de assaltantes. O embate dos dois é imediato.
Na apresentação de Cangaço Novo, os representantes da Amazon destacaram a importância da série. Conteúdo brasileiro para o mundo. Exageraram um pouco ao vender o produto. Usaram muito a palavra ‘inovação’. Nem as motos usadas pelos assaltantes – os novos cangaceiros – são uma novidade.
Estavam na série da Globo, Onde Nascem os Fortes, e a combinação motos + belas imagens elaboradas é tudo em Reza a Lenda, de Homero Olivetto, com Cauã Reymond. O repórter destaca a estetização e até glamourização da violência, o que provoca indignação num dos diretores. São oito episódios no total. Em Gramado, passou apenas o primeiro. De 1 a 4, o diretor é Fábio Mendonça, de 5 a 8, Aly Muritiba.
Fábio, o que não aceita a ideia da estetização, esteve desde o início com os roteiristas. Foi a primeira pessoa a quem levaram seu conteúdo. Muritiba reconhece que arte e estética têm tudo a ver. Houve, sim, preocupação em criar belas imagens. “O problema é que o audiovisual brasileiro, o cinema, criou uma representação do sertão que não é a nossa.”
O sertão de Glauber, de Nelson Pereira dos Santos e Ruy Guerra instituiu a estética da fome. No começo dos anos 2000, com filmes como Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, e Eu Tu Eles, de Andrucha Waddington, surgiu outro conceito – a cosmética da fome. Estética vs. cosmética. A polêmica, hoje esquecida, pode ser reativada.
Batendo e arrebentando
A série começa na pauleira – pura adrenalina. Uma perseguição, e de repente há uma mulher no comando, Dinorah (Alice Carvalho). Ela arranca de uma camionete um homem que saberemos depois ser seu irmão, o filho pródigo. Enche-o de porradas. Esse início, não há como negar, subverte narrativas tradicionais, mas mulheres empoderadas também não são exatamente novidades em narrativas sobre o Nordeste, mesmo que outras poderosas não saiam tiroteando – basta lembrar da Parahyba Mulher Macho de Tisuka Yamazaki, nos anos 1980.
Essas mulheres ainda são raras. Alice adentra a série batendo e arrebentando. Allan Souza Lima faz Ubaldo, o homem que apanha repetidas vezes nesse primeiro episódio e é lançado ao solo. É só um começo. Essa situação vai mudar – inverter-se? – e Ubaldo assumirá o poder no Cangaço Novo. Diretores e elenco foram avaros nas informações. Não apenas a Netflix, a Amazon também exerce rigoroso controle sobre seus conteúdos. É quem decide quais, e quando, detalhes da trama podem ser revelados. O objetivo, claro, é evitar o spoiler.
Vai rolar um romance, talvez mais de um. Hermila Guedes não aparece nesse primeiro episódio, mas faz a filha de um político oposicionista que chega para fazer frente ao prefeito mancomunado com a família de Dinorah e Ubaldo, comandada, com mão de ferro, pela matriarca Marcélia Cartaxo. Está sendo a primeira vez que Gramado, a exemplo de outros festivais – Cannes, Veneza – abre-se para o streaming. Cangaço Novo inscreve-se nas narrativas sobre diversidade feminina que dão o tom no evento deste ano.
Hermila só anunciou que haverá um romance, mas não disse que será com o personagem de Allan. Nem precisava. As imagens intensas dos dois estão no trailer. Ele brinca com sua passividade no primeiro episódio – “Surgi como macho alfa – foi o michê que Clara (Sonia Braga) contrata para fazer sexo em Aquarius, de Kleber Mendonça Filho –, “Aqui sou macho beta”. E Alice, sobre a curva dramática de sua personagem, que começa lá no alto, diz: “Vai mudar, nem eu aguentaria se fosse assim o tempo todo.”
Violência? Sim, e muita
No debate sobre Cangaço Novo estavam na mesa os dois diretores e o quarteto principal. Alice, Allan, mais Thainá Duarte, um assombro de tanta lindeza, e Hermila. Os autores – os roteiristas – não foram chamados a participar da mesa. Estavam na plateia, sem lugar de fala – falaram com o Estadão.
Mariana e Eduardo sempre foram cinéfilos de carteirinha. Trabalharam – ambos – na produção da Mostra Internacional de Cinema. Estão ansiosos para saber qual será a relação do público e da crítica. Ao longo desses dez anos, ouviram muitos ‘Não!’, e algumas palavras de estímulo: “É legal, mas...”. Começaram a escrever em 2013. Em 2015, com Fábio, levaram o projeto para a O2, mas só em 2018, três anos depois, a Amazon entrou em cena.
Quando a produção de Cangaço Novo estourou, houve a pandemia. O Brasil e o mundo pararam. Não foi fácil gravar com as restrições impostas pela covid-19. Foram oito meses de set para produzir as oito horas de conteúdo dessa primeira temporada. Houve preparação de elenco, um especialista em cenas de ação.
Violência? Sim, e muita. A questão da inovação – quão inovadora é a série? – foi resolvida num comentário de Alice. Ele contou como foi se preparar para fazer essa mulher rude e violenta. A fisicalidade de Dinorah domina o primeiro episódio. Os conflitos internos virão a partir do segundo. “Foi um trabalho incrível, mas ninguém, aqui, está inventando a roda”, disse a atriz.