Há não muito tempo quem quisesse assistir a um filme de Bergman teria de se conformar com uma daquelas cópias esfarrapadas e jurássicas, que apareciam de vez em quando por aqui e eram projetadas em cineclubes cujas poltronas eram disputadas a tapa. Enfim, alguma coisa melhorou neste País. Hoje é possível desfrutar confortavelmente de uma bela amostra da obra do mestre, em boas cópias e projeção de primeira. Isso no Centro Cultural Banco do Brasil, que promove de amanhã a dia 14 a retrospectiva Revendo Bergman, com 12 títulos fundamentais no programa: Cenas de um Casamento , Da Vida das Marionetes, Face a Face, Fanny e Alexander, A Flauta Mágica, A Fonte da Donzela, Gritos e Sussurros, Morangos Silvestres, O Ovo da Serpente, O Rosto, O Sétimo Selo e Sonata de Outono. Na terça-feira, às 20 horas, o crítico de cinema do Estado, Luiz Carlos Merten, faz a palestra Bergman - um Mestre em Foco. Ok, nem todos os filmes programados estão na mesma altura. Bergman, como qualquer mortal, tinha seus altos e baixos. Acontece que seus baixos dificilmente seriam alcançados pelos melhores cineastas em atividade hoje em dia. E mesmo um filme detratado, como O Ovo da Serpente, precisa ser revisto sob uma luz diferente. É muito provável que este, que é considerado o trabalho mais político de Bergman, tenha sofrido desgaste artificial por excesso de expectativa. De Bergman se espera sempre o máximo. Quando vem apenas o bom, fica-se decepcionado e o filme parece pior do que realmente é. Nele, David Carradine faz o trapezista judeu que perambula por uma Berlim fantasmagórica e assustadora, sobre a qual o nazismo paira como um mau presságio. No elenco também Liv Ullmann, em um dos nove filmes que faria com Bergman. Se você esquecer que é Bergman quem assina O Ovo da Serpente verá um trabalho dos mais interessantes. Se lembrar, sentirá falta de um certo aprofundamento dramático dos personagens, uma das características mais visíveis do cineasta sueco. Aprofundamento mais que notório, por exemplo, em Morangos Silvestres, uma das obras-primas do ciclo. O personagem principal é Isak Borg (Victor Sjostrom), médico idoso egoísta e amargo, que recebe uma distinção acadêmica e precisa cruzar o país para receber o prêmio. A viagem terá caráter iniciático, com Borg se confrontando com suas culpas e remorsos, e reencontrando enfim um fiapo de humanidade dentro de si. A história termina com um aceno de Borg à reconciliação consigo mesmo e com seus semelhantes. É uma das mais comoventes obras de Bergman. Tão comovente quanto Gritos e Sussurros, sendo que esta é mais complexa e de interpretação mais aberta. Se em Morangos Silvestres Bergman queria se perguntar pelo sentido possível de uma vida em particular, agora seu tema é nada menos que o mistério da morte. Em suas memórias, ele lembra que a inspiração para essa obra veio de uma idéia recorrente: algumas mulheres, vestidas de branco, num quarto de paredes vermelhas. Ele pensou muito em como dar sentido a essa imagem obsessiva, até chegar a uma solução. As mulheres eram da mesma família, irmãs. Estavam no quarto, velando e esperando que uma delas, que estava doente, morresse. Bergman é extraordinariamente perspicaz em sua maneira de mostrar como a família se reorganiza em torno daquela que se vai. Tudo vem à tona, os conflitos e as rivalidades, o amor e o desprezo. E tudo isso permanece, mesmo depois do desenlace. Os mortos continuam a freqüentar os vivos, como lembrança, signo de culpa e valor simbólico de pertença a uma mesma linhagem. Esse Bergman quase metafísico está presente também em O Sétimo Selo, filme que toma uma fábula medieval para falar do presente. No caso, 1956, com o mundo ainda curtindo a ressaca de uma guerra que se encerrara havia pouco mais de dez anos e talvez já se preparando para outra, que, dada a existência de armas nucleares, seria provavelmente a última. Essa leitura, digamos assim, política, é autorizada pelo próprio diretor, que ressalta, no início do filme, o paralelismo entre as duas épocas - a atual, com suas inquietações, e o passado, corroído por uma epidemia que se imaginava ser castigo divino. O medo seria a forma de existência comum às duas. Max von Sydow faz o cavaleiro triste que joga xadrez com a Morte, tentando em vão adiar um fim que ele sabe inevitável. Com essa história, Bergman comenta a pouca capacidade humana de enfrentar a realidade em épocas de desespero e também a insuficiência da religião em manter um nível razoável de esperança. Em meio a tanto desalento, apenas os artistas parecem merecer a confiança de Bergman. Mesmo quando são humildes artistas de um cirquinho mambembe, tentando dar e receber alguma forma de felicidade simples. O universo mítico está também presente em A Fonte da Donzela, baseado em uma lenda medieval sueca. Na história, uma virgem é violentada e assassinada, e no lugar do crime surge uma nascente de águas milagrosas. O que há de aparentemente singelo nessa história encobre um fundo mais obscuro, onde se debatem a sexualidade reprimida e a violência. São temas bergmanianos por excelência, mesmo porque se constituem em inquietações permanentes do ser humano. E é nessa busca incessante de clareza na região confusa dos relacionamentos que encontramos o Bergman mais característico. O Bergman mais conhecido e popular, se o termo cabe em se tratando de um cineasta difícil. Ele investiga a crise do casal em Cenas de um Casamento, feito para a TV sueca; o conflituoso reencontro entre mãe e filha em Sonata de Outono; a delicada ciranda sexual de quatro personagens em Da Vida das Marionetes; o colapso mental de uma psiquiatra, casada com um colega, em Face a Face. Cenas de um Casamento talvez seja o mais naturalista deles. Acompanha a desintegração do par vivido por Liv Ullmann e Erland Josephson sem poupar nenhum detalhe ao espectador. A crueza com que se retratam as sutilezas e as feridas de um relacionamento terminal espantavam o espectador da época, 1973, que se perguntava que tipo de TV seria essa da Suécia para encomendar, e levar ao ar, uma minissérie com tal temática e tratamento. Na verdade o espanto seria válido até hoje, talvez sobretudo hoje. Bergman nunca foi de adoçar nem de temperar. Sempre, ou pelo menos desde que se firmou como artista, esmerou-se em apresentar as coisas ao seu modo, tratando de maneira complexa aquilo que não merece ser simplificado e falando da dor e do desespero com todas a cores e nuances. Não abrandou o tom quando foi convidado a dirigir para a TV. Por coincidência, Liv Ullmann e Erland Josephson estão na principal estréia de cinema de amanhã, Infiel. Ela, por trás das câmeras. Ele, vivendo o personagem de Bergman, num roteiro escrito pelo velho mestre retirado na ilha de Farö. Sonata de Outono traz Ingrid Bergman, um protótipo da beleza dos anos 40, em seu último grande papel. Como a pianista de personalidade esmagadora, Ingrid brilha contracenando com a filha, interpretada por Liv Ullmann. Ingrid é dominadora. Nunca deixou que a família, marido e filha, atrapalhassem uma movimentada carreira internacional. Bem mais velha, volta, procurando uma reconciliação que se mostra bastante difícil, porque Liv guarda bem vivas as marcas do abandono e da indiferença. O egoísmo nos relacionamentos é um tema bem próximo a Bergman. Ele o sentia na pele. Tinha de lutar contra a frieza e o distanciamento, ambos inscritos num temperamento, no entanto, hipersensível. Da tensão entre esses sentimentos contraditórios, sua arte tira toda a sua força e ele aqui a coloca a serviço desse tema tão difícil que é o amor latente entre pais e filhos distanciados, um amor fragmentado, que não ousa se expressar. Faltaria comentar esse filme intrigante que é O Rosto, a ópera A Flauta Mágica, e a despedida de Bergman das telas do cinema com seu trabalho mais simpático, e um dos mais inspirados de sua carreira, Fanny e Alexander. No primeiro, um hipnotizador e sua trupe são detidos num posto de fronteira. Depois de denunciado como charlatão, ele trama sua vingança, parábola que permite a Bergman meditar sobre o papel ambíguo do artista no interior da sociedade. No segundo, há a ópera de Mozart, encenada e filmada com um frescor que a torna agradável mesmo para quem não suporta ópera no cinema. Em Fanny e Alexander assistimos a um artista aparentemente mais apaziguado, sereno, que busca ver o mundo depurado por meio de um olhar infantil. Quer dizer, despido dos preconceitos que se acumulam e solidificam pela acumulação dos anos e da cultura. Há um encantamento, uma magia que atravessa esse filme tão amado, do primeiro ao último fotograma. Já vai longe o tempo em que era considerado um Bergman menor. Revisto, Fanny e Alexander mostra a grandeza que pode assumir o anseio por pureza quando formulado por alguém interiormente dilacerado. Bergman era o máximo, mesmo quando queria fingir que afinal de contas seus demônios internos não tinham existência real. Ou não eram tão importantes assim, o que acaba dando no mesmo. Revendo Bergman. Amanhã, às 13 horas, sábado, às 15h30, O Sétimo Selo; amanhã, às 15h30, Morangos Silvestres; sábado, às 13 horas e 18h30, domingo, às 15h30, A Flauta Mágica; amanhã, às 18h30, O Rosto; domingo, às 13 horas e 18h30, Sonata de Outono. R$ 4,00. Centro Cultural Banco do Brasil. Rua Álvares Penteado, 112, tel. 3113-3600. Até 14/6