AP - Quando Cate Blanchett saiu de sua primeira exibição de Tár, ela queria voltar imediatamente e assistir ao filme de novo. Claro, ela pode ser um pouco tendenciosa, pois é a estrela do filme (e aprendeu a falar alemão, reger uma orquestra e tocar piano para o papel), mas esse também não é um sentimento incomum.
O drama denso e culto do roteirista e diretor Todd Field sobre a queda de um gênio artístico em um escândalo no estilo #MeToo implora por discussões e por uma segunda exibição. Como Field disse, ele vê um novo filme toda vez que o assiste.
Tár, que certamente será um dos principais candidatos nesta temporada de premiações, está estreando em diversos países – no Brasil, o filme está programado para chegar em janeiro de 2023. Field e Blanchett falaram com a Associated Press sobre a inescrutável Lydia Tár, suas inspirações e sobre NÃO mostrar suas mãos tocando piano.
O filme apresenta Lydia em um evento como o New Yorker Festival, com Adam Gopnik fazendo sua apresentação para um grande auditório. Isso foi apenas uma maneira de trazer a biografia dela ou isso trata da indústria de conferências e de sua cumplicidade?
Field: O importante é como a conhecemos? Você sabe, se você a conhecer em seu auge, de uma maneira bastante pública, há uma oportunidade de ver isso da mesma maneira que estamos nesta entrevista agora, como se estivéssemos tentando ter uma conversa honesta, mas estamos fazendo uma performance para você.
Blanchett: Ei! Essa sou eu. Essa é quem eu sou.
Field: É um aspecto dela. Então a vemos sentada com seu parceiro de negócios, esse banqueiro de investimentos e futuro maestro (Mark Strong), e você pode dizer que ela não quer estar lá. Então você a vê arregaçar as mangas e ela está ensinando, que é a coisa que ela realmente ama fazer. Mas é só depois de 40 minutos de filme que a vemos escovando os dentes. Então você pensa, “Ah, ela é como eu.” Aprendemos muitas histórias sobre ela, mas o importante é como e quando conhecemos a personagem. Existem todos os tipos de regras narrativas sobre quando devemos conhecer a personagem. Syd Field lhe diria que temos que conhecer na página dez. Mas não é assim que essa coisa funciona. Foi importante conhecer a personagem como ela é percebida de outras maneiras antes de termos acesso a ela.
Em uma das exibições em Veneza, o público estava torcendo por Lydia quando ela repreende seu aluno na Julliard por rejeitar Bach como irrelevante para ele, o que eu não acho que fariam em uma segunda exibição. Surpreendeu-se?
Field: Acho que não me surpreende. Mas o que você está dizendo, que não acha que fariam isso numa segunda exibição, essa é a ideia. Essa cena pode ser vista através de muitas lentes. A lente com a qual começamos era simplesmente a velha questão, se você pudesse falar com o seu eu mais jovem, o que diria? Eu acho que essa personagem, quando ela tinha 24 anos e em uma posição semelhante a de Max na Juilliard quando estava em Harvard, estava tentando quebrar os limites que foram estabelecidos em termos do cânone austro-alemão. Mas ela não tem mais 24 anos. Ela está fazendo 50.
Apesar de ter ultrapassado os limites, ela é uma mulher que talvez só tenha conseguido este tipo de sucesso porque também jogou dentro das regras do patriarcado?
Blanchett: Isso faz parte. Mas ela acredita no poder de ser a exceção. Uma vez que você vence uma montanha, você pensa, ‘Meu Deus, é lindo aqui’. E a beleza faz você esquecer o quão difícil foi a jornada. Ela é uma musicista consumada. E ela é uma crente, acredita muito nas grandes narrativas, na grande tradição. Ela ganhou o direito de tocar essas grandes obras. É a mesma coisa que ensinam na faculdade. É como, claro, você pode ser um pintor abstrato, mas primeiro tem que aprender a pintar a forma. Você sempre vai ter algo contra seus professores. Mas depois esquece.
Este filme faz um bom trabalho ao fazer você se sentir como um insider no mundo da música clássica.
Field: Não há muitas filmagens de maestros fazendo extensos ensaios e é muito mais interessante vê-los ensaiar do que assistir a uma apresentação. Nosso objetivo era pegar o espectador e fazer com que se sentisse na frente da casa, nos fundos da casa, e também que estivesse passando por algum tipo de processo com esse personagem.
Blanchett: Aprendi muito assistindo aos documentários (sobre os maestros Carlos Kleiber, Herbert von Karajan). Há todos esses momentos de bastidores que achei realmente fascinantes. Abbado, depois do seu primeiro concerto quando assumiu o cargo de maestro titular da Filarmônica de Berlim, saiu e alguém foi falar com ele. Ele estava coberto de suor, se afastou e caminhou pelo corredor, ficou realmente imóvel e colocou uma mão contra a parede. Era uma imagem tão, mas tão solitária. Você sente o fardo que ele carregava, a responsabilidade de criar o som e conduzir aquela orquestra para aquele público.
Field: Nós roubamos essa imagem para o fim.
Você escalou músicos, mas também fez a escolha radical de ter seus atores, como Cate e Nina Hoss, aprendendo a tocar também.
Field: Os melhores atores que conheci e os melhores músicos que conheci são muito parecidos, porque entendem princípios muito práticos sobre toque, ritmo, dinâmica e som. Era importante que todos que fizessem música na tela fizessem música de fato. Há um tipo de piada de longa data, bem, eu chamo isso de piada, mas talvez Cate se sinta diferente sobre isso, porque ela fica um pouco incomodada por eu não mostrar suas mãos na cena na Julliard tocando Bach.
Blanchett: (risos)
Field: Se fosse Leonard Bernstein ou alguém assim, você não se sentiria obrigado a fazer isso. Se você voltar e olhar para aqueles concertos de jovens que ele fez nos anos 50 no Carnegie Hall, eles não estão mostrando suas mãos. Meu ponto era que a única vez que nos sentimos obrigados a mostrar as mãos dos atores nos pianos é quando eles estão fingindo.
Blanchett: Ou se for para consideração da Academia. / TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES