CANNES - O “hype” era intenso. Era uma Vez em... Hollywood, de Quentin Tarantino, entrou aos 45 do segundo tempo na competição do Festival de Cannes, 25 anos após o diretor ganhar a Palma de Ouro com Pulp Fiction – Tempo de Violência. Teve jornalista que enfrentou três horas de fila, teve comemoração quando a sala finalmente abriu para a sessão de imprensa. O filme é uma grande homenagem a uma Hollywood que não existe mais e ao cinema, especialmente ao spaghetti western.
Tarantino faz mais uma viagem ao passado, precisamente a 1969. Rick Dalton (Leonardo DiCaprio) é um ator de uma série de televisão de sucesso que se sente injustiçado. Queria estar fazendo mais e melhores filmes, quem sabe com seu novo vizinho, o polonês Roman Polanski, que colhe os frutos do sucesso O Bebê de Rosemary e é casado com a atriz Sharon Tate (Margot Robbie).
Mas há praticamente um muro intransponível entre essas duas Hollywoods, a Hollywood do passado, representada por Dalton, e a nova Hollywood, dos cineastas cool e autorais como Polanski e, um pouco mais tarde, Francis Ford Coppola, Martin Scorsese e Woody Allen.
“Tarantino é um banco de dados do cinema, e aqui faz uma grande carta de amor a essa indústria a que temos sorte de pertencer”, disse DiCaprio na coletiva de imprensa. O melhor amigo de Rick Dalton é o dublê Cliff Booth (Brad Pitt), que tem uma relação mais relaxada com sua posição pouco privilegiada na indústria. “Tem tudo a ver com aceitação do seu lugar, sua vida, seu ambiente, seus desafios, problemas”, afirmou Brad Pitt. “Rick acha que sua vida é injusta, enquanto Cliff está em paz com quem é e onde está.”
Mas uma nuvem negra paira sobre essa Hollywood em transformação: o culto formado por Charles Manson, conhecido como Família Manson, que em 9 de agosto de 1969 assassinaria Sharon Tate, grávida de oito meses, e mais quatro pessoas. “Era a época do amor livre, da esperança, e os crimes representaram uma perda de inocência. Foi uma visão sombria do lado obscuro da natureza humana”, lembrou Pitt.
O filme passa um bom tempo no grupo formado principalmente por dezenas de jovens mulheres. “É uma comunidade hippie, bizarra, mas, embora tenha um ar sinistro, mostramos seu dia a dia”, disse Tarantino. “Eles ganhavam dinheiro oferecendo cavalgadas guiadas e há relatos de que eram muito simpáticos.”
A inclusão da Família Manson, do assassinato de Sharon Tate e de Roman Polanski, que mais tarde foi condenado por estupro de uma menor e está proibido de viajar aos EUA, foi polêmica já no anúncio do projeto. Polanski não aparece muito, e Tarantino tentou encerrar o assunto rapidamente na coletiva. “Não falei com ele”, disse. Admitiu ser fã de seu trabalho, mas negou que Rick Dalton o descreve como o “maior cineasta”. “Ele diz ‘o cineasta do momento’”, ressaltou.
Sharon Tate tem poucas falas e aparece mais como uma musa. “Eu rejeito essa premissa”, explicou o cineasta quando uma jornalista levantou a questão. Margot Robbie, porém, meio que admitiu que era o caso. “O meu papel é fazer o que o filme precisa de mim. No caso, honrar a memória de Sharon Tate e mostrá-la como um raio de luz. Foi um desafio fazer isso com poucas palavras.”
Tarantino também se recusou a falar sobre a violência contra mulheres, justificando-se: “Para isso teria de dar spoilers”. Brad Pitt veio em seu socorro, dizendo que há no filme “uma ira contra indivíduos”.
Como em alguns de seus filmes recentes, especialmente Bastardos Inglórios e Django Livre, Tarantino subverte a história com “H” maiúsculo e usa o cinema para reescrevê-la. Mas na verdade Era uma Vez em... Hollywood é quase um “best of” de sua obra. Segundo o diretor, não foi proposital. “Quando meu primeiro assistente de direção, William Paul Clark, foi a minha casa ler o roteiro, ele falou: ‘Caramba, é como se fossem todos os seus filmes reunidos’”, contou Tarantino. “Eu não tinha pensado sobre isso.”
O cineasta admitiu estar passando por um processo de balanço de sua vida e carreira. Nada mais natural que seu nono filme fosse uma coletânea de sua trajetória até aqui.