Análise: Com potencial e efeitos, ‘O Sequestro do Voo 375′ traz ‘quase-atentado’ real ao Planalto


Em 1988, desempregado sequestrou o avião da Vasp que ia de Rondônia ao Rio de Janeiro para tentar derrubá-lo em Brasília, matando o presidente

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

RIO - Em 1988, quando ocorreu o episódio do sequestro do voo 375, Marcus Baldini tinha 14 anos. “Não lembro de ter acompanhado pela TV a cobertura do caso, mas me lembro bem do Brasil da época. As Diretas Já, a redemocratização, a morte de Tancredo Neves e a presidência de José Sarney, a esperança e o desapontamento produzido pelo fracasso dos planos econômicos.” Baldini trouxe tudo isso, o que chama de métrica das produções de gênero, e o fundo político, para seu longa O Sequestro do Voo 375, que encerrou o 25º Festival do Rio no sábado, 14.

No domingo, 15, o Festival realiza a premiação. Quem levará o troféu Redentor? No dia 29, Voo 375 terá exibição na Mostra de São Paulo. Em 7 de dezembro chegará às salas de cinema. Para muita gente será uma dupla surpresa. O público jovem talvez nem saiba que isso ocorreu no Brasil. Também vai se surpreender com a qualidade. E não é que o cinema brasileiro consegue fazer filmes catástrofes, com muitos efeitos, e gastando menos?

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Tem mais - em julho de 2019, há quatro anos, Jair Bolsonaro estava presidente há apenas seis meses, mas já havia iniciado sua cruzada contra o cinema brasileiro. Bolsonaro elegeu Bruna Surfistinha como paradigma. Seria indecente fazer filmes como o de Marcus Baldini com Deborah Secco com dinheiro público. Bolsonaro não foi reeleito, o Brasil vive outro momento.

Set de filmagens simulou avião real para o filme 'O Sequestro do Voo 375' Foto: Taba Benedicto/Estadão

Nesse novo quadro, o filme que chega às telas não quer apenas propor duas horas de emoção e entretenimento, mas também dar conta do Brasil, O de 1988 projetando-se no de 2023. “Entrei no projeto em 2018. Logo depois ocorreu tudo aquilo. Com certeza fui inspirado pela rejeição a Bolsonaro, cujo projeto cultural nunca compartilhei, mas, conscientemente, não posso afirmar que o quadro político do Voo foi montado contra ele. Fazia parte da vontade de enquadrar o Brasil real na história. Tudo o que ocorreu, o gesto radical de Nonato, a reação dos militares, dos federais, faz parte de uma realidade que era o Brasil de 1988.”

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‘Nonato’ é o desempregado Raimundo Nonato Alves da Conceição, que sequestrou o avião da Vasp que decolou de Rondônia com destino ao Rio de Janeiro, e escala em Confins, Belo Horizonte, onde embarcou. Armado – a segurança ainda não era rígida nos aeroportos -, Nonato exigiu que o piloto Fernando Murilo de Lima e Silva, também embarcado em BH, se desviasse da rota e voasse para Brasília. Seu plano - lançar o Boeing contra o Palácio do Planalto, para matar o presidente, segundo ele, o responsável pela desgraceira que assolava o País. Na época, o Estadão fez uma extensa cobertura do episódio. A novidade é que, com esse filme, Baldini e o cinema brasileiro ingressam com estilo na era dos disaster movies.

Cena do filme 'O Sequestro do Voo 375' Foto: Juliana Chalita

Em 1970, George Seaton iniciou a série Aeroporto. Mais recentemente, Robert Zemeckis fez Decisão de Risco/The Flight, em 2012, e Clint Eastwood dirigiu O Milagre do Rio Hudson, em 2016. No Brasil houve tentativas como Joelma, 13º andar, de Clery Cunha, de 1979, que reconstitui o incêndio do edifício no Centro de São Paulo. Se Joelma, 13º Andar se inscrevia na vertente de Inferno na Torre, de 1974, com Steve McQueen e Paul Newman, O Sequestro do Voo 375 percorre agora a de Aeroporto e seus derivados.

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Baldini viu todos aqueles mamutes de Hollywood. Queria entender os códigos narrativos, as convenções, para recriá-las – “Gosto de levar público aos cinemas” -, mas com o diferencial, já assinalado, de fazer uma sólida leitura política do período em que ocorreram os fatos. Poderia citar também Voo United 93, de Paul Greengrass. Não por acaso, informa o letreiro final, o sequestro do voo 375 estava detalhado nos arquivos de Osama Bin Laden. Teria sido uma das fontes de inspiração para o 11 de setembro.

Making Of do filme 'O Sequestro do Voo 375', produzido pelo Estúdio Escarlate Foto: Marcelo Navarro

Pesquisa e detalhes

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O filme começou a nascer com uma pesquisa iniciada há 11 anos pelo argumentista e coprodutor, Constâncio Viana e logo depois foi apresentado para a produtora Joana Henning, do Estúdio Escarlate. Há sete anos foi dado o start para o início da produção. Em 2018, Baldini estava dentro. Ele é produtor e diretor, Joana é produtora com envolvimento autoral e artístico. Formaram o casamento perfeito. Ela conta as dificuldades da produção – “Filmamos nos estúdios da Vera Cruz, utilizando aviões de verdade, e não apenas cenográficos.” A Vasp, Viação Aérea São Paulo, deixou de operar em 2005 e teve sua falência decretada três anos mais tarde. No final dos anos 1980, era uma das gigantes da aviação comercial brasileira. Joana percorreu o Brasil procurando carcaças de aviões. Várias aeronaves, incluindo da Vasp, foram adquiridas por colecionadores, após o fechamento da empresa. Joana conseguiu comprar – em consignação – três aviões e montar dois. “Descobri locais que vendiam talheres de bordo, até o papel higiênico com o timbre da Vasp.”

Houve grande cuidado com os detalhes, e não apenas. A Aeronáutica brasileira contribuiu para garantir a autenticidade dos termos e protocolos. “Foram solidários, não censores”, resume Joana. Ela foi a Los Angeles e teve todo apoio da Air Hollywood, uma empresa especializada em viabilizar sequências aéreas para produções de audiovisual. Diversas – pelo menos três – traquitanas tiveram de ser montadas para criar algumas das cenas mais impressionantes do filme. O giro do avião, e a inversão com os passageiros de cabeça para baixo, que Zemeckis já utilizou em The Flight. O avião em queda livre, na vertical. Tudo isso exige técnica, e dinheiro. “O filme custou mais que a média da produção nacional, e ainda assim foi um orçamento baixo para os padrões internacionais. Precisamos repensar a questão do orçamento, se quisermos ser competitivos no mercado internacional, produzindo filmes de qualidade”, diz Joana.

As traquitanas funcionaram, mas Joana lembra – “Apesar do testemunho de mais de uma centena de passageiros, a Boeing sempre contestou que o piloto tenha feito aquelas manobras arriscadas. Segundo a companhia, o avião não teria aguentado.” O filme cria duas personagens femininas fortes – a chefe de cabine, interpretada por Juliana Alves, e a controladora de voo, Roberta Gualda. Na realidade, era um controlador, um homem, que Joana conseguiu transformar em mulher. “Não é possível fazermos um filme grande assim sem atentar a questões de gênero que são decisivas na contemporaneidade.” E, depois, “ainda não havia mulheres no Exército, mas civis eram admitidas nas escolas de controladoria.” Tudo isso, a técnica como a dramaturgia, é para tentar explicar como O Sequestro do Voo 375 foi produzido para ser competitivo no próprio mercado brasileiro, formatado para a produção estrangeira, de Hollywood.

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Juliana Alves caracterizada como comissária de bordo para o filme "O Sequestro do Voo 375' Foto: Marcelo Navarro

O discurso do diretor

Baldini reconhece que houve toda uma preocupação, não apenas com o funcionamento da aeronave e a dinâmica do voo, mas também com a construção dramatúrgica do quadro político. O Brasil pré-Constituinte. Os resquícios da ditadura cívico-militar. O militar que controla o tráfego aéreo, invocando a pátria, quer a autorização do presidente para derrubar o avião. O que são 100 civis indefesos face à segurança nacional? Os (policiais) federais parecem mais humanos, mas são atrapalhados demais para ser heróis dessa história. Sobram o piloto, Murilo, interpretado por Danilo Grandheia, e as mulheres, a aeromoça e a negociadora.

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Murilo, ligado ao sindicato da categoria, sente-se injustiçado pela companhia. Ele entende o desespero de Nonato/Jorge Paz, mas seu compromisso é com a tripulação e os passageiros. Como herói que foi – morreu em 2020 -, Murilo, o brasileiro sindicalizado fará tudo para que o voo chegue a bom termo. Ninguém é superconhecido, embora o espectador já tenha visto esses rostos. Atores e atrizes servem aos personagens, à dramaturgia.

É um momento difícil – decisivo? – para o cinema brasileiro, que precisa motivar o público a voltar às salas. A cota de tela é essencial, mas também o preço do ingresso. Não adianta o filme ser popular, se o entorno não for. Bolsonaro hostilizou tanto Baldini, por causa de Bruna Surfistinha, que se poderia agora fazer uma campanha. Ver O Sequestro do Voo 375 como uma tomada de posição, de apoio à resiliência do cinema nacional. Também para entender o Brasil de 35 anos atrás e seus resquícios na atualidade. Se há um filme com potencial para fazer 1 milhão de espectadores, é esse.

Set de filmagem do filme 'O Sequestro do Voo 375' no Estúdio Vera Cruz em dezembro de 2022 Foto: Taba Benedicto/Estadão

RIO - Em 1988, quando ocorreu o episódio do sequestro do voo 375, Marcus Baldini tinha 14 anos. “Não lembro de ter acompanhado pela TV a cobertura do caso, mas me lembro bem do Brasil da época. As Diretas Já, a redemocratização, a morte de Tancredo Neves e a presidência de José Sarney, a esperança e o desapontamento produzido pelo fracasso dos planos econômicos.” Baldini trouxe tudo isso, o que chama de métrica das produções de gênero, e o fundo político, para seu longa O Sequestro do Voo 375, que encerrou o 25º Festival do Rio no sábado, 14.

No domingo, 15, o Festival realiza a premiação. Quem levará o troféu Redentor? No dia 29, Voo 375 terá exibição na Mostra de São Paulo. Em 7 de dezembro chegará às salas de cinema. Para muita gente será uma dupla surpresa. O público jovem talvez nem saiba que isso ocorreu no Brasil. Também vai se surpreender com a qualidade. E não é que o cinema brasileiro consegue fazer filmes catástrofes, com muitos efeitos, e gastando menos?

Tem mais - em julho de 2019, há quatro anos, Jair Bolsonaro estava presidente há apenas seis meses, mas já havia iniciado sua cruzada contra o cinema brasileiro. Bolsonaro elegeu Bruna Surfistinha como paradigma. Seria indecente fazer filmes como o de Marcus Baldini com Deborah Secco com dinheiro público. Bolsonaro não foi reeleito, o Brasil vive outro momento.

Set de filmagens simulou avião real para o filme 'O Sequestro do Voo 375' Foto: Taba Benedicto/Estadão

Nesse novo quadro, o filme que chega às telas não quer apenas propor duas horas de emoção e entretenimento, mas também dar conta do Brasil, O de 1988 projetando-se no de 2023. “Entrei no projeto em 2018. Logo depois ocorreu tudo aquilo. Com certeza fui inspirado pela rejeição a Bolsonaro, cujo projeto cultural nunca compartilhei, mas, conscientemente, não posso afirmar que o quadro político do Voo foi montado contra ele. Fazia parte da vontade de enquadrar o Brasil real na história. Tudo o que ocorreu, o gesto radical de Nonato, a reação dos militares, dos federais, faz parte de uma realidade que era o Brasil de 1988.”

‘Nonato’ é o desempregado Raimundo Nonato Alves da Conceição, que sequestrou o avião da Vasp que decolou de Rondônia com destino ao Rio de Janeiro, e escala em Confins, Belo Horizonte, onde embarcou. Armado – a segurança ainda não era rígida nos aeroportos -, Nonato exigiu que o piloto Fernando Murilo de Lima e Silva, também embarcado em BH, se desviasse da rota e voasse para Brasília. Seu plano - lançar o Boeing contra o Palácio do Planalto, para matar o presidente, segundo ele, o responsável pela desgraceira que assolava o País. Na época, o Estadão fez uma extensa cobertura do episódio. A novidade é que, com esse filme, Baldini e o cinema brasileiro ingressam com estilo na era dos disaster movies.

Cena do filme 'O Sequestro do Voo 375' Foto: Juliana Chalita

Em 1970, George Seaton iniciou a série Aeroporto. Mais recentemente, Robert Zemeckis fez Decisão de Risco/The Flight, em 2012, e Clint Eastwood dirigiu O Milagre do Rio Hudson, em 2016. No Brasil houve tentativas como Joelma, 13º andar, de Clery Cunha, de 1979, que reconstitui o incêndio do edifício no Centro de São Paulo. Se Joelma, 13º Andar se inscrevia na vertente de Inferno na Torre, de 1974, com Steve McQueen e Paul Newman, O Sequestro do Voo 375 percorre agora a de Aeroporto e seus derivados.

Baldini viu todos aqueles mamutes de Hollywood. Queria entender os códigos narrativos, as convenções, para recriá-las – “Gosto de levar público aos cinemas” -, mas com o diferencial, já assinalado, de fazer uma sólida leitura política do período em que ocorreram os fatos. Poderia citar também Voo United 93, de Paul Greengrass. Não por acaso, informa o letreiro final, o sequestro do voo 375 estava detalhado nos arquivos de Osama Bin Laden. Teria sido uma das fontes de inspiração para o 11 de setembro.

Making Of do filme 'O Sequestro do Voo 375', produzido pelo Estúdio Escarlate Foto: Marcelo Navarro

Pesquisa e detalhes

O filme começou a nascer com uma pesquisa iniciada há 11 anos pelo argumentista e coprodutor, Constâncio Viana e logo depois foi apresentado para a produtora Joana Henning, do Estúdio Escarlate. Há sete anos foi dado o start para o início da produção. Em 2018, Baldini estava dentro. Ele é produtor e diretor, Joana é produtora com envolvimento autoral e artístico. Formaram o casamento perfeito. Ela conta as dificuldades da produção – “Filmamos nos estúdios da Vera Cruz, utilizando aviões de verdade, e não apenas cenográficos.” A Vasp, Viação Aérea São Paulo, deixou de operar em 2005 e teve sua falência decretada três anos mais tarde. No final dos anos 1980, era uma das gigantes da aviação comercial brasileira. Joana percorreu o Brasil procurando carcaças de aviões. Várias aeronaves, incluindo da Vasp, foram adquiridas por colecionadores, após o fechamento da empresa. Joana conseguiu comprar – em consignação – três aviões e montar dois. “Descobri locais que vendiam talheres de bordo, até o papel higiênico com o timbre da Vasp.”

Houve grande cuidado com os detalhes, e não apenas. A Aeronáutica brasileira contribuiu para garantir a autenticidade dos termos e protocolos. “Foram solidários, não censores”, resume Joana. Ela foi a Los Angeles e teve todo apoio da Air Hollywood, uma empresa especializada em viabilizar sequências aéreas para produções de audiovisual. Diversas – pelo menos três – traquitanas tiveram de ser montadas para criar algumas das cenas mais impressionantes do filme. O giro do avião, e a inversão com os passageiros de cabeça para baixo, que Zemeckis já utilizou em The Flight. O avião em queda livre, na vertical. Tudo isso exige técnica, e dinheiro. “O filme custou mais que a média da produção nacional, e ainda assim foi um orçamento baixo para os padrões internacionais. Precisamos repensar a questão do orçamento, se quisermos ser competitivos no mercado internacional, produzindo filmes de qualidade”, diz Joana.

As traquitanas funcionaram, mas Joana lembra – “Apesar do testemunho de mais de uma centena de passageiros, a Boeing sempre contestou que o piloto tenha feito aquelas manobras arriscadas. Segundo a companhia, o avião não teria aguentado.” O filme cria duas personagens femininas fortes – a chefe de cabine, interpretada por Juliana Alves, e a controladora de voo, Roberta Gualda. Na realidade, era um controlador, um homem, que Joana conseguiu transformar em mulher. “Não é possível fazermos um filme grande assim sem atentar a questões de gênero que são decisivas na contemporaneidade.” E, depois, “ainda não havia mulheres no Exército, mas civis eram admitidas nas escolas de controladoria.” Tudo isso, a técnica como a dramaturgia, é para tentar explicar como O Sequestro do Voo 375 foi produzido para ser competitivo no próprio mercado brasileiro, formatado para a produção estrangeira, de Hollywood.

Juliana Alves caracterizada como comissária de bordo para o filme "O Sequestro do Voo 375' Foto: Marcelo Navarro

O discurso do diretor

Baldini reconhece que houve toda uma preocupação, não apenas com o funcionamento da aeronave e a dinâmica do voo, mas também com a construção dramatúrgica do quadro político. O Brasil pré-Constituinte. Os resquícios da ditadura cívico-militar. O militar que controla o tráfego aéreo, invocando a pátria, quer a autorização do presidente para derrubar o avião. O que são 100 civis indefesos face à segurança nacional? Os (policiais) federais parecem mais humanos, mas são atrapalhados demais para ser heróis dessa história. Sobram o piloto, Murilo, interpretado por Danilo Grandheia, e as mulheres, a aeromoça e a negociadora.

Murilo, ligado ao sindicato da categoria, sente-se injustiçado pela companhia. Ele entende o desespero de Nonato/Jorge Paz, mas seu compromisso é com a tripulação e os passageiros. Como herói que foi – morreu em 2020 -, Murilo, o brasileiro sindicalizado fará tudo para que o voo chegue a bom termo. Ninguém é superconhecido, embora o espectador já tenha visto esses rostos. Atores e atrizes servem aos personagens, à dramaturgia.

É um momento difícil – decisivo? – para o cinema brasileiro, que precisa motivar o público a voltar às salas. A cota de tela é essencial, mas também o preço do ingresso. Não adianta o filme ser popular, se o entorno não for. Bolsonaro hostilizou tanto Baldini, por causa de Bruna Surfistinha, que se poderia agora fazer uma campanha. Ver O Sequestro do Voo 375 como uma tomada de posição, de apoio à resiliência do cinema nacional. Também para entender o Brasil de 35 anos atrás e seus resquícios na atualidade. Se há um filme com potencial para fazer 1 milhão de espectadores, é esse.

Set de filmagem do filme 'O Sequestro do Voo 375' no Estúdio Vera Cruz em dezembro de 2022 Foto: Taba Benedicto/Estadão

RIO - Em 1988, quando ocorreu o episódio do sequestro do voo 375, Marcus Baldini tinha 14 anos. “Não lembro de ter acompanhado pela TV a cobertura do caso, mas me lembro bem do Brasil da época. As Diretas Já, a redemocratização, a morte de Tancredo Neves e a presidência de José Sarney, a esperança e o desapontamento produzido pelo fracasso dos planos econômicos.” Baldini trouxe tudo isso, o que chama de métrica das produções de gênero, e o fundo político, para seu longa O Sequestro do Voo 375, que encerrou o 25º Festival do Rio no sábado, 14.

No domingo, 15, o Festival realiza a premiação. Quem levará o troféu Redentor? No dia 29, Voo 375 terá exibição na Mostra de São Paulo. Em 7 de dezembro chegará às salas de cinema. Para muita gente será uma dupla surpresa. O público jovem talvez nem saiba que isso ocorreu no Brasil. Também vai se surpreender com a qualidade. E não é que o cinema brasileiro consegue fazer filmes catástrofes, com muitos efeitos, e gastando menos?

Tem mais - em julho de 2019, há quatro anos, Jair Bolsonaro estava presidente há apenas seis meses, mas já havia iniciado sua cruzada contra o cinema brasileiro. Bolsonaro elegeu Bruna Surfistinha como paradigma. Seria indecente fazer filmes como o de Marcus Baldini com Deborah Secco com dinheiro público. Bolsonaro não foi reeleito, o Brasil vive outro momento.

Set de filmagens simulou avião real para o filme 'O Sequestro do Voo 375' Foto: Taba Benedicto/Estadão

Nesse novo quadro, o filme que chega às telas não quer apenas propor duas horas de emoção e entretenimento, mas também dar conta do Brasil, O de 1988 projetando-se no de 2023. “Entrei no projeto em 2018. Logo depois ocorreu tudo aquilo. Com certeza fui inspirado pela rejeição a Bolsonaro, cujo projeto cultural nunca compartilhei, mas, conscientemente, não posso afirmar que o quadro político do Voo foi montado contra ele. Fazia parte da vontade de enquadrar o Brasil real na história. Tudo o que ocorreu, o gesto radical de Nonato, a reação dos militares, dos federais, faz parte de uma realidade que era o Brasil de 1988.”

‘Nonato’ é o desempregado Raimundo Nonato Alves da Conceição, que sequestrou o avião da Vasp que decolou de Rondônia com destino ao Rio de Janeiro, e escala em Confins, Belo Horizonte, onde embarcou. Armado – a segurança ainda não era rígida nos aeroportos -, Nonato exigiu que o piloto Fernando Murilo de Lima e Silva, também embarcado em BH, se desviasse da rota e voasse para Brasília. Seu plano - lançar o Boeing contra o Palácio do Planalto, para matar o presidente, segundo ele, o responsável pela desgraceira que assolava o País. Na época, o Estadão fez uma extensa cobertura do episódio. A novidade é que, com esse filme, Baldini e o cinema brasileiro ingressam com estilo na era dos disaster movies.

Cena do filme 'O Sequestro do Voo 375' Foto: Juliana Chalita

Em 1970, George Seaton iniciou a série Aeroporto. Mais recentemente, Robert Zemeckis fez Decisão de Risco/The Flight, em 2012, e Clint Eastwood dirigiu O Milagre do Rio Hudson, em 2016. No Brasil houve tentativas como Joelma, 13º andar, de Clery Cunha, de 1979, que reconstitui o incêndio do edifício no Centro de São Paulo. Se Joelma, 13º Andar se inscrevia na vertente de Inferno na Torre, de 1974, com Steve McQueen e Paul Newman, O Sequestro do Voo 375 percorre agora a de Aeroporto e seus derivados.

Baldini viu todos aqueles mamutes de Hollywood. Queria entender os códigos narrativos, as convenções, para recriá-las – “Gosto de levar público aos cinemas” -, mas com o diferencial, já assinalado, de fazer uma sólida leitura política do período em que ocorreram os fatos. Poderia citar também Voo United 93, de Paul Greengrass. Não por acaso, informa o letreiro final, o sequestro do voo 375 estava detalhado nos arquivos de Osama Bin Laden. Teria sido uma das fontes de inspiração para o 11 de setembro.

Making Of do filme 'O Sequestro do Voo 375', produzido pelo Estúdio Escarlate Foto: Marcelo Navarro

Pesquisa e detalhes

O filme começou a nascer com uma pesquisa iniciada há 11 anos pelo argumentista e coprodutor, Constâncio Viana e logo depois foi apresentado para a produtora Joana Henning, do Estúdio Escarlate. Há sete anos foi dado o start para o início da produção. Em 2018, Baldini estava dentro. Ele é produtor e diretor, Joana é produtora com envolvimento autoral e artístico. Formaram o casamento perfeito. Ela conta as dificuldades da produção – “Filmamos nos estúdios da Vera Cruz, utilizando aviões de verdade, e não apenas cenográficos.” A Vasp, Viação Aérea São Paulo, deixou de operar em 2005 e teve sua falência decretada três anos mais tarde. No final dos anos 1980, era uma das gigantes da aviação comercial brasileira. Joana percorreu o Brasil procurando carcaças de aviões. Várias aeronaves, incluindo da Vasp, foram adquiridas por colecionadores, após o fechamento da empresa. Joana conseguiu comprar – em consignação – três aviões e montar dois. “Descobri locais que vendiam talheres de bordo, até o papel higiênico com o timbre da Vasp.”

Houve grande cuidado com os detalhes, e não apenas. A Aeronáutica brasileira contribuiu para garantir a autenticidade dos termos e protocolos. “Foram solidários, não censores”, resume Joana. Ela foi a Los Angeles e teve todo apoio da Air Hollywood, uma empresa especializada em viabilizar sequências aéreas para produções de audiovisual. Diversas – pelo menos três – traquitanas tiveram de ser montadas para criar algumas das cenas mais impressionantes do filme. O giro do avião, e a inversão com os passageiros de cabeça para baixo, que Zemeckis já utilizou em The Flight. O avião em queda livre, na vertical. Tudo isso exige técnica, e dinheiro. “O filme custou mais que a média da produção nacional, e ainda assim foi um orçamento baixo para os padrões internacionais. Precisamos repensar a questão do orçamento, se quisermos ser competitivos no mercado internacional, produzindo filmes de qualidade”, diz Joana.

As traquitanas funcionaram, mas Joana lembra – “Apesar do testemunho de mais de uma centena de passageiros, a Boeing sempre contestou que o piloto tenha feito aquelas manobras arriscadas. Segundo a companhia, o avião não teria aguentado.” O filme cria duas personagens femininas fortes – a chefe de cabine, interpretada por Juliana Alves, e a controladora de voo, Roberta Gualda. Na realidade, era um controlador, um homem, que Joana conseguiu transformar em mulher. “Não é possível fazermos um filme grande assim sem atentar a questões de gênero que são decisivas na contemporaneidade.” E, depois, “ainda não havia mulheres no Exército, mas civis eram admitidas nas escolas de controladoria.” Tudo isso, a técnica como a dramaturgia, é para tentar explicar como O Sequestro do Voo 375 foi produzido para ser competitivo no próprio mercado brasileiro, formatado para a produção estrangeira, de Hollywood.

Juliana Alves caracterizada como comissária de bordo para o filme "O Sequestro do Voo 375' Foto: Marcelo Navarro

O discurso do diretor

Baldini reconhece que houve toda uma preocupação, não apenas com o funcionamento da aeronave e a dinâmica do voo, mas também com a construção dramatúrgica do quadro político. O Brasil pré-Constituinte. Os resquícios da ditadura cívico-militar. O militar que controla o tráfego aéreo, invocando a pátria, quer a autorização do presidente para derrubar o avião. O que são 100 civis indefesos face à segurança nacional? Os (policiais) federais parecem mais humanos, mas são atrapalhados demais para ser heróis dessa história. Sobram o piloto, Murilo, interpretado por Danilo Grandheia, e as mulheres, a aeromoça e a negociadora.

Murilo, ligado ao sindicato da categoria, sente-se injustiçado pela companhia. Ele entende o desespero de Nonato/Jorge Paz, mas seu compromisso é com a tripulação e os passageiros. Como herói que foi – morreu em 2020 -, Murilo, o brasileiro sindicalizado fará tudo para que o voo chegue a bom termo. Ninguém é superconhecido, embora o espectador já tenha visto esses rostos. Atores e atrizes servem aos personagens, à dramaturgia.

É um momento difícil – decisivo? – para o cinema brasileiro, que precisa motivar o público a voltar às salas. A cota de tela é essencial, mas também o preço do ingresso. Não adianta o filme ser popular, se o entorno não for. Bolsonaro hostilizou tanto Baldini, por causa de Bruna Surfistinha, que se poderia agora fazer uma campanha. Ver O Sequestro do Voo 375 como uma tomada de posição, de apoio à resiliência do cinema nacional. Também para entender o Brasil de 35 anos atrás e seus resquícios na atualidade. Se há um filme com potencial para fazer 1 milhão de espectadores, é esse.

Set de filmagem do filme 'O Sequestro do Voo 375' no Estúdio Vera Cruz em dezembro de 2022 Foto: Taba Benedicto/Estadão

RIO - Em 1988, quando ocorreu o episódio do sequestro do voo 375, Marcus Baldini tinha 14 anos. “Não lembro de ter acompanhado pela TV a cobertura do caso, mas me lembro bem do Brasil da época. As Diretas Já, a redemocratização, a morte de Tancredo Neves e a presidência de José Sarney, a esperança e o desapontamento produzido pelo fracasso dos planos econômicos.” Baldini trouxe tudo isso, o que chama de métrica das produções de gênero, e o fundo político, para seu longa O Sequestro do Voo 375, que encerrou o 25º Festival do Rio no sábado, 14.

No domingo, 15, o Festival realiza a premiação. Quem levará o troféu Redentor? No dia 29, Voo 375 terá exibição na Mostra de São Paulo. Em 7 de dezembro chegará às salas de cinema. Para muita gente será uma dupla surpresa. O público jovem talvez nem saiba que isso ocorreu no Brasil. Também vai se surpreender com a qualidade. E não é que o cinema brasileiro consegue fazer filmes catástrofes, com muitos efeitos, e gastando menos?

Tem mais - em julho de 2019, há quatro anos, Jair Bolsonaro estava presidente há apenas seis meses, mas já havia iniciado sua cruzada contra o cinema brasileiro. Bolsonaro elegeu Bruna Surfistinha como paradigma. Seria indecente fazer filmes como o de Marcus Baldini com Deborah Secco com dinheiro público. Bolsonaro não foi reeleito, o Brasil vive outro momento.

Set de filmagens simulou avião real para o filme 'O Sequestro do Voo 375' Foto: Taba Benedicto/Estadão

Nesse novo quadro, o filme que chega às telas não quer apenas propor duas horas de emoção e entretenimento, mas também dar conta do Brasil, O de 1988 projetando-se no de 2023. “Entrei no projeto em 2018. Logo depois ocorreu tudo aquilo. Com certeza fui inspirado pela rejeição a Bolsonaro, cujo projeto cultural nunca compartilhei, mas, conscientemente, não posso afirmar que o quadro político do Voo foi montado contra ele. Fazia parte da vontade de enquadrar o Brasil real na história. Tudo o que ocorreu, o gesto radical de Nonato, a reação dos militares, dos federais, faz parte de uma realidade que era o Brasil de 1988.”

‘Nonato’ é o desempregado Raimundo Nonato Alves da Conceição, que sequestrou o avião da Vasp que decolou de Rondônia com destino ao Rio de Janeiro, e escala em Confins, Belo Horizonte, onde embarcou. Armado – a segurança ainda não era rígida nos aeroportos -, Nonato exigiu que o piloto Fernando Murilo de Lima e Silva, também embarcado em BH, se desviasse da rota e voasse para Brasília. Seu plano - lançar o Boeing contra o Palácio do Planalto, para matar o presidente, segundo ele, o responsável pela desgraceira que assolava o País. Na época, o Estadão fez uma extensa cobertura do episódio. A novidade é que, com esse filme, Baldini e o cinema brasileiro ingressam com estilo na era dos disaster movies.

Cena do filme 'O Sequestro do Voo 375' Foto: Juliana Chalita

Em 1970, George Seaton iniciou a série Aeroporto. Mais recentemente, Robert Zemeckis fez Decisão de Risco/The Flight, em 2012, e Clint Eastwood dirigiu O Milagre do Rio Hudson, em 2016. No Brasil houve tentativas como Joelma, 13º andar, de Clery Cunha, de 1979, que reconstitui o incêndio do edifício no Centro de São Paulo. Se Joelma, 13º Andar se inscrevia na vertente de Inferno na Torre, de 1974, com Steve McQueen e Paul Newman, O Sequestro do Voo 375 percorre agora a de Aeroporto e seus derivados.

Baldini viu todos aqueles mamutes de Hollywood. Queria entender os códigos narrativos, as convenções, para recriá-las – “Gosto de levar público aos cinemas” -, mas com o diferencial, já assinalado, de fazer uma sólida leitura política do período em que ocorreram os fatos. Poderia citar também Voo United 93, de Paul Greengrass. Não por acaso, informa o letreiro final, o sequestro do voo 375 estava detalhado nos arquivos de Osama Bin Laden. Teria sido uma das fontes de inspiração para o 11 de setembro.

Making Of do filme 'O Sequestro do Voo 375', produzido pelo Estúdio Escarlate Foto: Marcelo Navarro

Pesquisa e detalhes

O filme começou a nascer com uma pesquisa iniciada há 11 anos pelo argumentista e coprodutor, Constâncio Viana e logo depois foi apresentado para a produtora Joana Henning, do Estúdio Escarlate. Há sete anos foi dado o start para o início da produção. Em 2018, Baldini estava dentro. Ele é produtor e diretor, Joana é produtora com envolvimento autoral e artístico. Formaram o casamento perfeito. Ela conta as dificuldades da produção – “Filmamos nos estúdios da Vera Cruz, utilizando aviões de verdade, e não apenas cenográficos.” A Vasp, Viação Aérea São Paulo, deixou de operar em 2005 e teve sua falência decretada três anos mais tarde. No final dos anos 1980, era uma das gigantes da aviação comercial brasileira. Joana percorreu o Brasil procurando carcaças de aviões. Várias aeronaves, incluindo da Vasp, foram adquiridas por colecionadores, após o fechamento da empresa. Joana conseguiu comprar – em consignação – três aviões e montar dois. “Descobri locais que vendiam talheres de bordo, até o papel higiênico com o timbre da Vasp.”

Houve grande cuidado com os detalhes, e não apenas. A Aeronáutica brasileira contribuiu para garantir a autenticidade dos termos e protocolos. “Foram solidários, não censores”, resume Joana. Ela foi a Los Angeles e teve todo apoio da Air Hollywood, uma empresa especializada em viabilizar sequências aéreas para produções de audiovisual. Diversas – pelo menos três – traquitanas tiveram de ser montadas para criar algumas das cenas mais impressionantes do filme. O giro do avião, e a inversão com os passageiros de cabeça para baixo, que Zemeckis já utilizou em The Flight. O avião em queda livre, na vertical. Tudo isso exige técnica, e dinheiro. “O filme custou mais que a média da produção nacional, e ainda assim foi um orçamento baixo para os padrões internacionais. Precisamos repensar a questão do orçamento, se quisermos ser competitivos no mercado internacional, produzindo filmes de qualidade”, diz Joana.

As traquitanas funcionaram, mas Joana lembra – “Apesar do testemunho de mais de uma centena de passageiros, a Boeing sempre contestou que o piloto tenha feito aquelas manobras arriscadas. Segundo a companhia, o avião não teria aguentado.” O filme cria duas personagens femininas fortes – a chefe de cabine, interpretada por Juliana Alves, e a controladora de voo, Roberta Gualda. Na realidade, era um controlador, um homem, que Joana conseguiu transformar em mulher. “Não é possível fazermos um filme grande assim sem atentar a questões de gênero que são decisivas na contemporaneidade.” E, depois, “ainda não havia mulheres no Exército, mas civis eram admitidas nas escolas de controladoria.” Tudo isso, a técnica como a dramaturgia, é para tentar explicar como O Sequestro do Voo 375 foi produzido para ser competitivo no próprio mercado brasileiro, formatado para a produção estrangeira, de Hollywood.

Juliana Alves caracterizada como comissária de bordo para o filme "O Sequestro do Voo 375' Foto: Marcelo Navarro

O discurso do diretor

Baldini reconhece que houve toda uma preocupação, não apenas com o funcionamento da aeronave e a dinâmica do voo, mas também com a construção dramatúrgica do quadro político. O Brasil pré-Constituinte. Os resquícios da ditadura cívico-militar. O militar que controla o tráfego aéreo, invocando a pátria, quer a autorização do presidente para derrubar o avião. O que são 100 civis indefesos face à segurança nacional? Os (policiais) federais parecem mais humanos, mas são atrapalhados demais para ser heróis dessa história. Sobram o piloto, Murilo, interpretado por Danilo Grandheia, e as mulheres, a aeromoça e a negociadora.

Murilo, ligado ao sindicato da categoria, sente-se injustiçado pela companhia. Ele entende o desespero de Nonato/Jorge Paz, mas seu compromisso é com a tripulação e os passageiros. Como herói que foi – morreu em 2020 -, Murilo, o brasileiro sindicalizado fará tudo para que o voo chegue a bom termo. Ninguém é superconhecido, embora o espectador já tenha visto esses rostos. Atores e atrizes servem aos personagens, à dramaturgia.

É um momento difícil – decisivo? – para o cinema brasileiro, que precisa motivar o público a voltar às salas. A cota de tela é essencial, mas também o preço do ingresso. Não adianta o filme ser popular, se o entorno não for. Bolsonaro hostilizou tanto Baldini, por causa de Bruna Surfistinha, que se poderia agora fazer uma campanha. Ver O Sequestro do Voo 375 como uma tomada de posição, de apoio à resiliência do cinema nacional. Também para entender o Brasil de 35 anos atrás e seus resquícios na atualidade. Se há um filme com potencial para fazer 1 milhão de espectadores, é esse.

Set de filmagem do filme 'O Sequestro do Voo 375' no Estúdio Vera Cruz em dezembro de 2022 Foto: Taba Benedicto/Estadão

RIO - Em 1988, quando ocorreu o episódio do sequestro do voo 375, Marcus Baldini tinha 14 anos. “Não lembro de ter acompanhado pela TV a cobertura do caso, mas me lembro bem do Brasil da época. As Diretas Já, a redemocratização, a morte de Tancredo Neves e a presidência de José Sarney, a esperança e o desapontamento produzido pelo fracasso dos planos econômicos.” Baldini trouxe tudo isso, o que chama de métrica das produções de gênero, e o fundo político, para seu longa O Sequestro do Voo 375, que encerrou o 25º Festival do Rio no sábado, 14.

No domingo, 15, o Festival realiza a premiação. Quem levará o troféu Redentor? No dia 29, Voo 375 terá exibição na Mostra de São Paulo. Em 7 de dezembro chegará às salas de cinema. Para muita gente será uma dupla surpresa. O público jovem talvez nem saiba que isso ocorreu no Brasil. Também vai se surpreender com a qualidade. E não é que o cinema brasileiro consegue fazer filmes catástrofes, com muitos efeitos, e gastando menos?

Tem mais - em julho de 2019, há quatro anos, Jair Bolsonaro estava presidente há apenas seis meses, mas já havia iniciado sua cruzada contra o cinema brasileiro. Bolsonaro elegeu Bruna Surfistinha como paradigma. Seria indecente fazer filmes como o de Marcus Baldini com Deborah Secco com dinheiro público. Bolsonaro não foi reeleito, o Brasil vive outro momento.

Set de filmagens simulou avião real para o filme 'O Sequestro do Voo 375' Foto: Taba Benedicto/Estadão

Nesse novo quadro, o filme que chega às telas não quer apenas propor duas horas de emoção e entretenimento, mas também dar conta do Brasil, O de 1988 projetando-se no de 2023. “Entrei no projeto em 2018. Logo depois ocorreu tudo aquilo. Com certeza fui inspirado pela rejeição a Bolsonaro, cujo projeto cultural nunca compartilhei, mas, conscientemente, não posso afirmar que o quadro político do Voo foi montado contra ele. Fazia parte da vontade de enquadrar o Brasil real na história. Tudo o que ocorreu, o gesto radical de Nonato, a reação dos militares, dos federais, faz parte de uma realidade que era o Brasil de 1988.”

‘Nonato’ é o desempregado Raimundo Nonato Alves da Conceição, que sequestrou o avião da Vasp que decolou de Rondônia com destino ao Rio de Janeiro, e escala em Confins, Belo Horizonte, onde embarcou. Armado – a segurança ainda não era rígida nos aeroportos -, Nonato exigiu que o piloto Fernando Murilo de Lima e Silva, também embarcado em BH, se desviasse da rota e voasse para Brasília. Seu plano - lançar o Boeing contra o Palácio do Planalto, para matar o presidente, segundo ele, o responsável pela desgraceira que assolava o País. Na época, o Estadão fez uma extensa cobertura do episódio. A novidade é que, com esse filme, Baldini e o cinema brasileiro ingressam com estilo na era dos disaster movies.

Cena do filme 'O Sequestro do Voo 375' Foto: Juliana Chalita

Em 1970, George Seaton iniciou a série Aeroporto. Mais recentemente, Robert Zemeckis fez Decisão de Risco/The Flight, em 2012, e Clint Eastwood dirigiu O Milagre do Rio Hudson, em 2016. No Brasil houve tentativas como Joelma, 13º andar, de Clery Cunha, de 1979, que reconstitui o incêndio do edifício no Centro de São Paulo. Se Joelma, 13º Andar se inscrevia na vertente de Inferno na Torre, de 1974, com Steve McQueen e Paul Newman, O Sequestro do Voo 375 percorre agora a de Aeroporto e seus derivados.

Baldini viu todos aqueles mamutes de Hollywood. Queria entender os códigos narrativos, as convenções, para recriá-las – “Gosto de levar público aos cinemas” -, mas com o diferencial, já assinalado, de fazer uma sólida leitura política do período em que ocorreram os fatos. Poderia citar também Voo United 93, de Paul Greengrass. Não por acaso, informa o letreiro final, o sequestro do voo 375 estava detalhado nos arquivos de Osama Bin Laden. Teria sido uma das fontes de inspiração para o 11 de setembro.

Making Of do filme 'O Sequestro do Voo 375', produzido pelo Estúdio Escarlate Foto: Marcelo Navarro

Pesquisa e detalhes

O filme começou a nascer com uma pesquisa iniciada há 11 anos pelo argumentista e coprodutor, Constâncio Viana e logo depois foi apresentado para a produtora Joana Henning, do Estúdio Escarlate. Há sete anos foi dado o start para o início da produção. Em 2018, Baldini estava dentro. Ele é produtor e diretor, Joana é produtora com envolvimento autoral e artístico. Formaram o casamento perfeito. Ela conta as dificuldades da produção – “Filmamos nos estúdios da Vera Cruz, utilizando aviões de verdade, e não apenas cenográficos.” A Vasp, Viação Aérea São Paulo, deixou de operar em 2005 e teve sua falência decretada três anos mais tarde. No final dos anos 1980, era uma das gigantes da aviação comercial brasileira. Joana percorreu o Brasil procurando carcaças de aviões. Várias aeronaves, incluindo da Vasp, foram adquiridas por colecionadores, após o fechamento da empresa. Joana conseguiu comprar – em consignação – três aviões e montar dois. “Descobri locais que vendiam talheres de bordo, até o papel higiênico com o timbre da Vasp.”

Houve grande cuidado com os detalhes, e não apenas. A Aeronáutica brasileira contribuiu para garantir a autenticidade dos termos e protocolos. “Foram solidários, não censores”, resume Joana. Ela foi a Los Angeles e teve todo apoio da Air Hollywood, uma empresa especializada em viabilizar sequências aéreas para produções de audiovisual. Diversas – pelo menos três – traquitanas tiveram de ser montadas para criar algumas das cenas mais impressionantes do filme. O giro do avião, e a inversão com os passageiros de cabeça para baixo, que Zemeckis já utilizou em The Flight. O avião em queda livre, na vertical. Tudo isso exige técnica, e dinheiro. “O filme custou mais que a média da produção nacional, e ainda assim foi um orçamento baixo para os padrões internacionais. Precisamos repensar a questão do orçamento, se quisermos ser competitivos no mercado internacional, produzindo filmes de qualidade”, diz Joana.

As traquitanas funcionaram, mas Joana lembra – “Apesar do testemunho de mais de uma centena de passageiros, a Boeing sempre contestou que o piloto tenha feito aquelas manobras arriscadas. Segundo a companhia, o avião não teria aguentado.” O filme cria duas personagens femininas fortes – a chefe de cabine, interpretada por Juliana Alves, e a controladora de voo, Roberta Gualda. Na realidade, era um controlador, um homem, que Joana conseguiu transformar em mulher. “Não é possível fazermos um filme grande assim sem atentar a questões de gênero que são decisivas na contemporaneidade.” E, depois, “ainda não havia mulheres no Exército, mas civis eram admitidas nas escolas de controladoria.” Tudo isso, a técnica como a dramaturgia, é para tentar explicar como O Sequestro do Voo 375 foi produzido para ser competitivo no próprio mercado brasileiro, formatado para a produção estrangeira, de Hollywood.

Juliana Alves caracterizada como comissária de bordo para o filme "O Sequestro do Voo 375' Foto: Marcelo Navarro

O discurso do diretor

Baldini reconhece que houve toda uma preocupação, não apenas com o funcionamento da aeronave e a dinâmica do voo, mas também com a construção dramatúrgica do quadro político. O Brasil pré-Constituinte. Os resquícios da ditadura cívico-militar. O militar que controla o tráfego aéreo, invocando a pátria, quer a autorização do presidente para derrubar o avião. O que são 100 civis indefesos face à segurança nacional? Os (policiais) federais parecem mais humanos, mas são atrapalhados demais para ser heróis dessa história. Sobram o piloto, Murilo, interpretado por Danilo Grandheia, e as mulheres, a aeromoça e a negociadora.

Murilo, ligado ao sindicato da categoria, sente-se injustiçado pela companhia. Ele entende o desespero de Nonato/Jorge Paz, mas seu compromisso é com a tripulação e os passageiros. Como herói que foi – morreu em 2020 -, Murilo, o brasileiro sindicalizado fará tudo para que o voo chegue a bom termo. Ninguém é superconhecido, embora o espectador já tenha visto esses rostos. Atores e atrizes servem aos personagens, à dramaturgia.

É um momento difícil – decisivo? – para o cinema brasileiro, que precisa motivar o público a voltar às salas. A cota de tela é essencial, mas também o preço do ingresso. Não adianta o filme ser popular, se o entorno não for. Bolsonaro hostilizou tanto Baldini, por causa de Bruna Surfistinha, que se poderia agora fazer uma campanha. Ver O Sequestro do Voo 375 como uma tomada de posição, de apoio à resiliência do cinema nacional. Também para entender o Brasil de 35 anos atrás e seus resquícios na atualidade. Se há um filme com potencial para fazer 1 milhão de espectadores, é esse.

Set de filmagem do filme 'O Sequestro do Voo 375' no Estúdio Vera Cruz em dezembro de 2022 Foto: Taba Benedicto/Estadão

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