Em 1965, na Itália, um grupo de intelectuais (Umberto Eco entre eles) que se reunia na livraria Milano Libri, em Milão, fundou uma revista de quadrinhos voltada para o público adulto chamada Linus. Quatro anos depois, foi fundada na França a Charlie, também uma publicação de HQs para leitores adultos.
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Seus títulos trazem algo em comum: Linus é uma homenagem a Linus van Pelt, enquanto Charlie foi batizada em referência a Charles Brown. E ambos são amigos do Snoopy, o beagle mais charmoso e famoso da nona arte.
Quando o talentoso quadrinista norte-americano Charles M. Schulz (1922-2000) criou a tira Peanuts, em 1950, ele se preocupava em apresentar aos leitores as doces aventuras de Charlie Brown, Linus e, claro, do pequenino cão Snoopy. Na prática, Schulz estava dando origem a um dos quadrinhos mais influentes de seu país – e fora dele, como mostram os dois batismos de revistas europeias na década seguinte.
Aliás, podemos até dizer que a fama de Snoopy extrapolou, ainda nos anos 1960, os quadrinhos e, com alguma licença poética, o planeta Terra. O módulo lunar do foguete Apollo 10, que ficou na órbita da Lua em 1969, foi batizado Snoopy em sua homenagem – e o módulo de comando da missão chamava Charlie Brown.
Itália, França, órbita lunar (o Apollo 10 não chegou a alunissar). E hoje, mais de duas décadas após a morte de seu criador, Snoopy e sua turma continuam dando origem a novos filmes, séries e especiais, como a animação Snoopy Apresenta: Seja Bem-vindo, Franklin!, que estreia nesta sexta-feira, 16, no Apple TV+ (veja o trailer e leia mais sobre o novo filme abaixo). O que levou este cãozinho beagle a sair do frio Estado de Minnesota onde foi criado e voar (de foguete, inclusive) para tão longe?
A maneira mais simples de responder seria dizer que Schulz era um artista excepcional e que a qualidade de seu trabalho explica tudo. Sim, isso é verdade. Mas é uma obra tão rica em camadas e tão duradoura - foram quase 18 mil tiras em 50 anos - que vale a pena destacarmos alguns aspectos. E justamente por ser rica em camadas e duradoura, vamos falar de recortes específicos deste enorme universo criado por Schulz.
Conteúdo por trás da arte
Acima de tudo, e literalmente antes de tudo, estão os textos. Com tempo para desenvolver seus personagens e histórias, Schulz deu à luz um grupo de crianças completas, de carne e osso, em quem podemos enxergar as crianças ao nosso redor – ou até a nós mesmos.
As histórias trazem etapas da infância que vão muito além da alegria e da ingenuidade puras, comumente associadas a esta fase da vida. Charlie Brown é feliz, mas também inseguro, leal, tímido. Linus, com seu inseparável cobertorzinho, é ingênuo, mas também inteligente, doce, por vezes ciumento.
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O rol de personagens é outro achado. Schulz criou uma galeria de crianças adoráveis, apesar (ou talvez por causa) de seus defeitos: Patty Pimentinha, Marcie, o talentoso pianista prodígio Schroeder e a levemente brava Lucy, entre tantos outros. Isso sem falar nos animais, em teoria, coadjuvantes, mas que ganharam luz própria – além do próprio Snoopy, claro, temos o passarinho Woodstock, com seu idioma particular e suas tramas que de quando em quando envolviam os leitores.
As tiras em si são, quase sempre, engraçadas. Mas temos aí uma “quebra” do que é esperado, uma inovação. Em muitos momentos, o sorriso da piada dá vez à melancolia. As HQs do Snoopy abordam solidão, frustração, derrotas esportivas. E mesmo o beisebol sendo um esporte pouco popular no Brasil, por exemplo, a mensagem é facilmente compreendida.
Há ainda as histórias do triste amor platônico do Charlie Brown pela menininha ruiva – que nunca recebe um nome próprio nos quadrinhos, pode ser qualquer amor não correspondido que imaginemos (nas adaptações para a TV, é batizada de Heather Wold).
Não é só na flutuação entre o humor e o lirismo melancólico que Schulz rompe com o convencional. Há momentos em que a tira deixa de ser sobre um grupo de meninos e cachorro, e entramos completamente nas fantasias do Snoopy. Somos apresentados a outros tipos de histórias, igualmente engraçadas e doces.
Temos o Snoopy como piloto da Primeira Guerra Mundial; o Snoopy escritor de romances policiais; o Snoopy esportista, exímio competidor em várias modalidades. São oportunidades para Schulz aproveitar outro recurso que tem: o de ótimo ilustrador. Nestas fantasias, ele pode explorar os elementos gráficos dos quadrinhos e fazer graça com os vívidos sonhos do cãozinho. Quando a imaginação do Snoopy se mescla à de Schulz, a qualidade da arte ganha asas.
Tiras de Snoopy e sua turma de amigos são publicadas diariamente no Estadão - confira aqui.
A linda e cuidadosa arte de Charles M. Schulz é a embalagem perfeita para este conteúdo. Ela amarra, com precisão, histórias de humor e lirismo, de amizades e frustrações, de brincadeiras e derrotas. O resultado agrada o olhar infantil tanto quanto o adulto. E, embora apresente as frias ruas onde Schulz cresceu, alcança pessoas nos lugares mais distantes – por exemplo, editores de quadrinhos na Europa. Ou astronautas em órbita da Lua.
Snoopy Apresenta: Seja Bem-vindo, Franklin!
A animação Snoopy Apresenta: Seja Bem-vindo, Franklin! resgata elementos clássicos das animações do cãozinho: as vozes dos adultos representadas por sons incompreensíveis, o bom aproveitamento da trilha sonora e uma representação divertida da infinita imaginação do Snoopy. E, claro, o clima leve e o humor que permeiam toda a trama.
Mas apenas o resgate destes elementos não seria o suficiente para uma aventura nova. A história é centrada em Franklin Armstrong, um menino que, por ter pai militar, vive se mudando constantemente e não consegue firmar amizades. Esta animação mostra sua chegada à cidade do Snoopy e seu encontro com a eclética turma criada por Schulz. Além do próprio Franklin e sua busca por ser aceito, há um bom destaque para Charlie Brown e sua sensibilidade - como é possível ver em sua reflexão sobre o que é um “melhor amigo”.