Toda boa história tem um vilão e, com o passar dos anos, Hollywood se mostrou genial em criar ótimos personagens desse tipo. Deixando de lado os monstros e fantasmas, boa parte dos antagonistas hollywoodianos é formada por humanos, meros homens e mulheres cujo objetivo é causar o mal. No entanto, se, há algumas décadas, uma porção significativa dos vilões das telonas era de russos, alemães ou árabes, agora, os Estados Unidos colocam a si mesmos como grandes vilões do cinema.
Basta pensar em sagas como Rambo ou em filmes como Rocky IV (1985) e 007 contra GoldenEye (1995) para constatar que, de forma geral, a presença de personagens russos em longas-metragens costuma ser no papel do antagonista. Já os alemães são vilões importantes em Duro de Matar (1988), Indiana Jones e os Caçadores da Arca Perdida (1981), 007 contra o Satânico Dr. No (1962) e na série Austin Powers. Por fim, os árabes estrelam nesses papéis em Busca Implacável (2008), Nova York Sitiada (1998) e séries como Homeland.
A escolha da nacionalidade do vilão dificilmente é aleatória. Vale lembrar que, durante a segunda metade do século 20, os Estados Unidos estavam investidos na Guerra Fria contra a então União Soviética.Assim, os norte-americanos enxergavam os soviéticos (em grande parte, as pessoas que hoje chamamos de russos) como tipos maus, violentos, não merecedores de confiança. O mesmo vale para alemães, que enfrentaram a fúria estadunidense durante a Segunda Guerra Mundial, e para os árabes, sobretudo após os atentados do 11 de setembro.
É claro que os estereótipos vilanescos atribuídos a cada uma dessas nacionalidades não surgiram apenas com essas guerras, mas os confrontos mencionados impulsionaram o preconceito contra esses povos, o que foi refletido nas telonas.
Mais recentemente, porém, cada vez mais as agências, instituições e os próprios cidadãos norte-americanos têm pipocado como antagonistas em Hollywood. É o caso de filmes como Avatar (2009), Transformers: A Era da Extinção (2014) e O Esquadrão Suicida (2021) -isso, é claro, sem falar em longa-metragens produzidos fora dos Estados Unidos, como o brasileiro Bacurau (2019). O que motivou essa mudança, colocando os estadunidenses no holofote vilanesco em seu próprio país?
“Isso se deve a uma mudança de mentalidade com relação à própria humanidade”, explica Efrem Pedrosa, professor de rádio e TV do Centro Universitário FMU. “O exercício irreal do norte-americano como herói máximo em oposição aos demais se tornou completamente obsoleto, e a exposição de suas falhas e fraquezas indica um reposicionamento do cinema.”
Para o especialista, em cuja lista de vilões favoritos destacam-se Darth Vader e Miranda Priestly, o perfil de um antagonista diz algo sobre a sociedade e seus governantes. Em decorrência desse fato, temos visto cada vez mais filmes em que o vilão é protagonista, apresentando ao público sua história de vida e suas motivações a ponto de fazer o espectador se questionar sobre se está assistindo a uma pessoa completamente má ou a uma vítima das circunstâncias.
Nos tempos atuais, os antagonistas estão em alta. Filmes como Cruella (2021), Aves de Rapina: Arlequina e Sua Emancipação Fantabulosa (2020) e Malévola (2014) apresentam vilãs conhecidas sob uma nova perspectiva, capaz de atrair o público à sua torcida. Um dos possíveis efeitos da maior exploração psicológica dos vilões em filmes hollywoodianos é que, em alguns casos, a teoria ou missão do antagonista pode parecer aceitável aos olhos do espectador. Vários internautas se colocaram ao lado de Thanos, oponente dos Vingadores, quando ele abordou a superpopulação da Terra e do universo (embora pouquíssimas pessoas apoiassem seu método radical de exterminar metade da vida que existe). Diversas mulheres se manifestaram a favor de Arlequina, de Esquadrão Suicida, ao perceber que ela estava em uma espécie de relacionamento abusivo com o Coringa (ainda que entendam que a solução adequada para isso não seja o homicídio). Dessa forma, alguns antagonistas se tornaram queridinhos do público, sendo frequentemente vistos como superiores aos heróis formulaicos e politicamente corretos.
“Esse protagonismo é muito bem-vindo para que possamos debater os vilões e apreciá-los na telona”, diz Pedrosa. “A minha torcida é para que o cinema seja cada vez mais democrático, que possa trazer personagens que fortaleçam a representatividade e o debate político-social - o que já está acontecendo.”
Mais do que influência do passado norte-americano em termos de política externa, as questões e debates sociais do presente também afetam a forma como um vilão é concebido em Hollywood. A ascensão da extrema-direita dentro dos Estados Unidos levou, por exemplo, à construção de um Batman xenófobo, extremista e com nítidos sinais de loucura em Batman vs Superman: A Origem da Justiça (2016) - muito diferente do Homem-Morcego honrado que estamos acostumados a ver. É essa a opinião de Renan Claudino Villalon, docente do curso de Cinema da Universidade Anhembi Morumbi.
“Nesse caso, o Batman remete ao medo e desejo de vingança presente em muitos estadunidenses desde o terrível atentado ao World Trade Center”, declara. “Do mesmo modo, quando vemos um personagem intitulado Peacemaker (ou Fazedor da Paz) em O Esquadrão Suicida tentando evitar que os segredos do envolvimento norte-americano em uma crise sejam publicados, sendo considerado nitidamente um dos principais vilões da narrativa, percebemos que a sociedade não mais acredita na idoneidade das ações político-militares da própria nação.” Para Villalon, alguns dos principais antagonistas das telonas são Jack Torrance (de O Iluminado) e o Coringa (de O Cavaleiro das Trevas). O professor pontua ainda que, além de refletir a opinião do povo sobre algo, a construção do vilão também depende da opinião individual dos cineastas responsáveis pelo filme.
Dessa forma, compreende-se que a escolha de um vilão é muito mais do que uma escolha arbitrária. Mais que sinalizar o sentimento de uma sociedade, a construção do antagonista reflete o Zeitgeist (espírito da época) do período em questão, servindo talvez como um documento artístico para que, no futuro, historiadores possam entender o ponto de vista de um povo a partir dos vilões de seus filmes preferidos.