Conta a lenda que Bruce Lee hospedou-se na casa de Roman Polanski e Sharon Tate quando treinou a atriz para as cenas de ação de A Arma Secreta de Matt Helm. Teria sido Polanski quem deu ao futuro astro de artes marciais o célebre macacão amarelo – evocado por Quentin Tarantino como o principal figurino de Uma Thurman em seu épico Kill Bill – Volumes 1 e 2.
Tarantino imagina agora Sharon – em Era Uma Vez... em Hollywood, que estreia nesta quinta, 15 – indo ao cinema para ver justamente o Matt Helm. E ela, grávida de quase nove meses, diverte-se na plateia assistindo às próprias cenas de artes marciais no longa de Phil Karlson, que foi seu último filme lançado ainda em vida. Estamos em agosto de 1969 e, logo-logo, no fatídico dia 9, Sharon e amigos serão mortos por Charles Manson e seus adoradores do Diabo num ritual satânico, na casa dela. Assim foi na realidade e, na sexta passada, completaram-se 50 anos da bárbara chacina.
É bom ir avisando que a crítica pode conter spoilers, nada muito preciso, mas, talvez, subentendido, como forma de se poder avaliar as propostas estéticas de Tarantino. A história, vivida como tragédia, repete-se como farsa, já dizia Hegel, citado por Marx. Tarantino tem se valido das ferramentas do cinema para propor o revisionismo histórico. Shoshana, em Bastardos Inglórios, bola aquele plano de vingança para assassinar Adolf Hitler no cinema dela em Paris. Tarantino reserva de novo a sua dose de surpresas para o público do novo filme. Sharon Tate, no filme, quase não fala. Interpretada por Margot Robbie, é uma presença luminosa que atravessa Era Uma Vez... em Hollywood e ilumina a ficção tarantiniana. Foi um desperdício enorme que essa mulher tenha sido morta (na realidade). Seria outro crime inominável, se tivesse de ser, de novo, sacrificada na ficção.
Para recontar os selvagens anos 1960 em Hollywood, Tarantino vale-se do mesmo procedimento que Paolo Sorrentino colocou como citação na abertura de Silvio e os Outros/Loro, seu longa sobre Silvio Berlusconi, que integra a seleção da 8 1/2 Festa do Cinema Italiano que roda o Brasil. Tudo é documentado, tudo é imaginado.
Duas histórias correm paralelas, a do casal Polanski e a do astro decadente Rick Dalton, interpretado por Leonardo DiCaprio, e seu dublê, Cliff Booth, Brad Pitt. ‘Rick’ está vivendo o fim de sua época em Hollywood. Estrelou filmes, séries, mas agora o máximo que consegue são participações em seriados dos outros. Numa cena muito interessante, desmorona, emocionalmente, e chora frente a uma estrela mirim que parece muito mais adulta, ou mais focada, que ele. ‘Cliff’ não é apenas seu dublê, nas cenas de ação. É seu faz tudo, em casa.
O desenho do filme começa mostrando esses personagens em Hollywood – Rick mora na mansão lado da de Polanski, nas colinas de Hollywood. Cliff mora num trailer e, para chegar em casa, atravessa a cidade, cruzando várias vezes com uma garota – do bando de um hippie lunático identificado como ‘Charlie’ (Manson?). Sem chance em Hollywood, Rick vai estrelar spaghetti westerns na Itália, e Tarantino impregna o filme de observações e piadas sobre o gênero.
Rick e Cliff voltam, em agosto de 1969. Sharon será morta na casa. Não, se esses homens fossem os heróis, maiores que a ficção, que deveriam ser. Ah, sim, tem um cachorro – decisivo na solução da trama. Tarantino fez, como já disse o crítico do The Guardian, seu filme mais ultrajante, irresponsável, desorientador (quanto ao desfecho) – e brilhante. Brad Pitt está genial - Tarantino, como já fizera em Bastardos, lhe oferece outro papel maravilhoso. Leo DiCaprio talvez seja um pouco mais complicado – o inventor daquele aplicativo pode muito bem ter se inspirado nele. Está envelhecendo com cara de bebê, sem a dureza de Pitt. Só quem não gostou foi a filha de Bruce Lee, que ficou, compreensivelmente, decepcionada com a representação que Tarantino faz de seu pai.