No meio do ano, prestes a lançar Assassinos da Lua das Flores no Festival de Cannes, o cineasta Martin Scorsese fez uma celebração melancólica. Comemorou que agora, aos 80 anos, pode fazer o filme que quiser – os estúdios lhe dão dinheiro para seus projetos mais ousados, mesmo em números que fazem qualquer executivo corar.
No entanto, apesar da alegria disso, há a melancolia de estar no fim da vida. “O mundo inteiro se abriu para mim, mas é tarde demais. É tarde demais”, disse ele em uma entrevista já histórica ao Deadline.
Por isso, quando sentamos na poltrona do cinema e assistimos ao novo filme do mestre, que estreia nos cinemas brasileiros em 19 de outubro, devemos saber que este não é um projeto qualquer.
Scorsese, sabendo da finitude da vida e como está chegando ao limite das possibilidades de seu próprio tempo como cineasta, agora escolhe seus projetos a dedo. O Irlandês era o filme de sua vida, que tentava fazer há décadas. Assassinos da Lua das Flores, enquanto isso, nasceu de uma epifania: leu o livro de David Grann e já quis transformar em longa.
Afinal, o filme une duas coisas que chamam a atenção: de um lado, uma trama criminal sobre nativos da tribo Osage que foram assassinados sem qualquer investigação; do outro lado, uma trama que dá voz a esse povo, há décadas calado e com uma história pra lá de melancólica.
Scorsese, um cineasta muitas vezes associado ao caos nova-iorquino e toda a velocidade e loucura que nasce na cidade, se volta ao interior para mais uma investigação pessoal sobre o que instiga o ser humano – aqui, mais especificamente, a gana por dinheiro.
Uma história movida a sangue, terra e ganância
Quem move a história é Ernest (Leonardo DiCaprio), um rapaz simples, que acabou de voltar da guerra para tocar sua vida ao lado do tio (Robert De Niro). Eles moram em uma cidadezinha do interior, lar da tribo Osage, onde pagam dividendos para os indígenas, obtendo o direito de explorar a terra, rica em petróleo.
Só que junto com o dinheiro, e com esse povo branco, também vem o crime: indígenas são mortos e as terras, sem dono, ficam de herança para esses invasores. Não basta apenas explorar a terra, é preciso tomá-la.
Este filme não é o primeiro filme sobre os assassinatos de Osage: a história, que é baseada em fatos reais, já foi contada há um século no interessante e obscuro Tragedies of the Osage Hills, de James Young Deer, além de ser citada em produções como A História do FBI, de 1959.
No entanto, só agora a história ganha fôlego e muita verdade sob a batuta da direção de Scorsese e o roteiro, afiado e sem medo de ser longo demais, do próprio cineasta e de Eric Roth (de Duna e Forrest Gump). É um filme que flerta com o épico, com as suas 3h30 de duração, mas que nunca ganha escala: a tensão está nas falas e gestos.
Com uma câmera elegante do diretor de fotografia Rodrigo Prieto (de Argo, Babel e O Segredo de Brokeback Mountain) e um elenco habilidoso formado por pessoas do povo Osage, capitaneado pela consistente Lily Gladstone, Assassinos da Lua das Flores conta a história com calma, sem nunca ter pressa.
Ainda que se demore demais em alguns momentos, batendo um cansaço forte lá pelas 2h30, o longa-metragem controla a narrativa para que nós, espectadores, tenhamos consciência do absurdo que se revela aqui.
Drama histórico
Scorsese, acertadamente, nunca transforma o longa-metragem em um suspense barato, em que indígenas são mortos enquanto nós tentamos decifrar o enigma. Esqueça Agatha Christie, Arthur Conan Doyle, Maurice Leblanc.
Assassinos da Lua das Flores é um filme essencialmente antropológico, que analisa os movimentos sociais dos Estados Unidos e que nos apresenta, para além da cartilha escolar, como a conquista de povos nativos foi além da matança e escravidão nos séculos das Grandes Navegações. O imperialismo se manteve, perpetuado em pessoas que se viam mais importantes do que os nativos.
Revelando tudo desde o começo, com uma franqueza que machuca, o longa talvez seja o projeto mais doloroso da carreira de Scorsese – talvez próximo de Silêncio, o filme que mais conversa com esta sua nova empreitada. O diretor norte-americano, afinal, toma para si toda a narrativa sobre o mito do homem americano, que tão bem estudou e retratou nas últimas décadas de seu cinema, para mostrar como vai além de mafiosos, corruptos do mercado financeiro e além. É algo que já vive na terra.
De Niro digno de prêmio
Scorsese ainda é apoiado por esse elenco magnífico: Robert De Niro está brilhante como esse homem inescrupuloso, que comanda a terra e que se transforma quase em um ser antropofágico. Não basta conquistar, ele ainda adquire hábitos, falas e maneirismos desses nativos.
O veterano está genial e chega forte para o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante. O mesmo vale para a já citada Gladstone (Certas Mulheres), com uma atuação forte mesmo contracenando ao lado de DiCaprio – que está na mesma, numa atuação até apagada.
Eles ajudam a alavancar a indignação ao redor desse assassinato aliado ao genocídio desse povo, que não nasce necessariamente a partir da escravidão, mas da miscigenação.
A fraqueza do filme está no último ato: o público começa a ter cansaço com as longas horas de duração e a história dá algumas voltas, buscando motivos para continuar. Aí, quando vem aquela coceira para checar o horário no celular, Scorsese acerta em cheio.
Os últimos cinco ou dez minutos do filme ganham vitalidade e mostram que esse senhor, mesmo aos 80 anos de idade, tem uma ousadia de um cineasta brincando com a linguagem.
Que sorte de termos Scorsese ativo e com tamanha força em seu cinema. Pode não ser um filme para todos, mas, sem dúvidas, mostra que ele tem muita história para contar.