Crítica: Perturbador, ‘Zona de Interesse’ mostra o horror nazista a partir de um novo ângulo; leia


Filme de Jonathan Glazer retrata a vida - e a indiferença - de uma família vivendo no ‘quintal’ de campo de concentração; saiba quando o filme estreia e como assistir na Mostra de Cinema de São Paulo

Por Bruno Carmelo
Atualização:

É impressionante o quanto as sugestões, no cinema, podem ser muito mais fortes do que as imagens de violência. Em Zona de Interesse, filme exibido na Mostra de Cinema de São Paulo, o diretor Jonathan Glazer (de Sob a Pele e Reencarnação) apresenta telas completamente pretas, brancas ou vermelhas, junto às quais se escutam gritos de desespero e gemidos de dor.

Depois, ao descobrirmos a casa confortável de uma família, percebemos no horizonte as chaminés que despejam fumaça preta aos ares, tanto de dia quanto de noite. A propriedade é cercada por uma gigantesca muralha de concreto com arames farpados.

Os protagonistas deste drama, baseado no livro de Martin Amis, vivem no território adjacente a um campo de concentração, em plena Segunda Guerra Mundial. “Do outro lado, estão os judeus”, explica Hedwig Höss (Sandra Hüller) à sua hóspede. Ela é casada com Rudolf Höss (Christian Friedel), gestor do campo, que vive perto do trabalho por questões de conveniência.

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Este funcionário de Estado divide seu dia entre reuniões, ligações telefônicas, discussões a respeito de orçamentos e provisões. Recebe um especialista que sugere uma relação de custo-benefício mais eficiente às câmaras de gás.

Em nenhum momento esta família nazista profere seu ódio aos judeus, nem transparece um prazer perverso no extermínio de milhares de pessoas. Parecem apenas não pensar nisso. A mãe está ocupada com as crianças e a visita da avó dos pequenos. O marido precisa encontrar soluções de logística, visando uma ascensão profissional. A vida segue com uma naturalidade inabalável.

Cena do filme 'Zona de Interesse', de Jonathan Glazer, que está em exibição na Mostra de Cinema de São Paulo e terá estreia no Brasil em 2024 Foto: A24 Films
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O caráter mais perturbador da obra reside na representação da banalidade do mal. O cinema está repleto de imagens raivosas de Hitler dando ordens, aos gritos, além de judeus desesperados, sofrendo fome, tortura e execuções. Costuma-se voltar os olhos ao aspecto mais claramente catártico do Holocausto.

No entanto, este projeto dá um passo atrás para formular outras perguntas: enquanto as mortes ocorriam em Auschwitz, Dachau e tantos outros campos, o que acontecia lá fora? Como era o cotidiano dos oficiais nazistas e suas famílias? Conseguiam dormir com a consciência tranquila? Aparentemente, sim.

“Estamos vivendo a vida que sonhamos”, declara Hedwig, recusando-se a aceitar a transferência de cidade imposta ao marido. Ela adora seu pequeno idílio, repleto de jardins floridos onde ocasionalmente caem algumas cinzas humanas trazidas pelo vento. Zona de Interesse se desenvolve a partir deste contraste: o luxo e a precariedade, a paz da casa burguesa e o inferno nas câmaras.

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Cada imagem ilustra a indecência de fechar os olhos ao sofrimento alheio, de se divertir com amigos na piscina enquanto se escuta, discretamente, o calvário humano em volta. O desenho sonoro se mostra primoroso por sustentar a dor alheia na condição de “som ambiente”. O filme jamais se esquece dos fatos vizinhos, nem adere à alienação daquele núcleo patriarcal.

Pelo contrário, Glazer faz o possível para sublinhar o absurdo destes espaços. O imóvel se transforma num labirinto. Cada vez que o marido ou a esposa passam pelas portas, apresenta-se ao espectador um enquadramento diferente, o que promove a perda de referências. A cena banal em que Hedwig veste um casaco será vista por quatro enquadramentos diferentes, correspondentes às quatro quinas do cômodo.

Atos ordinários, tal qual a limpeza das botas do oficial, serão filmados num estranho plano aéreo, enquanto o gesto de apagar as luzes antes de dormir se converte, graças à repetição da montagem, numa viagem interminável. A luz das chamas entra pela janela e perturba o sono da senhora idosa; os choros distantes interrompem a brincadeira (de guerra, é claro) do filho pequeno.

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Em outras palavras, a realidade insiste em invadir a propriedade que se pretende hermeticamente fechada. Conta-se às crianças a história de João e Maria, concluída com o envio da bruxa ao fogão. Aos nossos adversários, o fogo, entenderam? Ora, os ruídos dos campos, a trilha sonora repleta de dissonâncias, tal qual um filme de terror, e a afetação desta vida doméstica transmitem o completo distanciamento em relação aos protagonistas.

O afastamento ocorre, inclusive, de modo literal. Não existe um único close-up em todo o filme — ou seja, nenhum rosto será visto de perto. Marido, esposa e filhos restam colados à propriedade. Jamais se permitirá que sejam dissociados daquele espaço. Tornam-se agentes e cúmplices.

'Zona de Interesse' teve sua primeira exibição no Festival de Cannes Foto: A24 Films/AP
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Enquanto isso, o diretor de fotografia Lukasz Zal mantém a profundidade infinita das imagens, reforçando a presença das execuções. Em vez de aliviar a tensão ao espectador, ou de propiciar alguma trégua à família Höss, desfocando as instalações, faz com que o elemento ao fundo se converta no verdadeiro foco de nossa atenção.

Tudo no filme é sugerido

Trabalha-se, portanto, a representação pela ausência. Não vemos nenhum judeu, embora todas as cenas remetam a eles. Não presenciamos uma única morte, apesar de ela dominar os pensamentos. Na reta final, o roteiro resgata maneiras contemporâneas de dialogar com a barbárie e lembrar, com responsabilidade, os acontecimentos da Segunda Guerra.

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Este constitui o princípio ético fundamental de Jonathan Glazer: refletir acerca de um crime execrável sem explorar a dor das famílias, nem reproduzi-la para o espectador. O Holocausto nunca se transforma em diversão para as massas, em entretenimento espetacular. Somos convidados a discutir o tema, em vez de chorar por ele.

Em uma entrevista recente, o diretor austríaco Michael Haneke revelou sua completa repulsa por obras de guerra como A Lista de Schindler, de Steven Spielberg. Para ele, este tipo de iniciativa consiste na exploração emocional e comercial da miséria alheia. Ele deve ter apreciado Zona de Interesse.

No ano de 2023, após o genocídio indígena narrado pelo olhar dos criminosos brancos (em Assassinos da Lua das Flores, de Martin Scorsese), chega o Holocausto contado pela perspectiva indiferente dos nazistas. Os melhores filmes da temporada denunciam atrocidades históricas ao colocarem os nossos inimigos na condição de protagonistas.

Como assistir a Zona de Interesse

O filme de Jonathan Glazer estreia nos cinemas brasileiros no final de fevereiro de 2024. Zona de Interesse será exibido na Mostra de Cinema de São Paulo nesta segunda, 30, às 17h40, no Espaço Itaú Frei Caneca, e na terça, 31, às 21h, no Cinesesc.

Veja o trailer

É impressionante o quanto as sugestões, no cinema, podem ser muito mais fortes do que as imagens de violência. Em Zona de Interesse, filme exibido na Mostra de Cinema de São Paulo, o diretor Jonathan Glazer (de Sob a Pele e Reencarnação) apresenta telas completamente pretas, brancas ou vermelhas, junto às quais se escutam gritos de desespero e gemidos de dor.

Depois, ao descobrirmos a casa confortável de uma família, percebemos no horizonte as chaminés que despejam fumaça preta aos ares, tanto de dia quanto de noite. A propriedade é cercada por uma gigantesca muralha de concreto com arames farpados.

Os protagonistas deste drama, baseado no livro de Martin Amis, vivem no território adjacente a um campo de concentração, em plena Segunda Guerra Mundial. “Do outro lado, estão os judeus”, explica Hedwig Höss (Sandra Hüller) à sua hóspede. Ela é casada com Rudolf Höss (Christian Friedel), gestor do campo, que vive perto do trabalho por questões de conveniência.

Este funcionário de Estado divide seu dia entre reuniões, ligações telefônicas, discussões a respeito de orçamentos e provisões. Recebe um especialista que sugere uma relação de custo-benefício mais eficiente às câmaras de gás.

Em nenhum momento esta família nazista profere seu ódio aos judeus, nem transparece um prazer perverso no extermínio de milhares de pessoas. Parecem apenas não pensar nisso. A mãe está ocupada com as crianças e a visita da avó dos pequenos. O marido precisa encontrar soluções de logística, visando uma ascensão profissional. A vida segue com uma naturalidade inabalável.

Cena do filme 'Zona de Interesse', de Jonathan Glazer, que está em exibição na Mostra de Cinema de São Paulo e terá estreia no Brasil em 2024 Foto: A24 Films

O caráter mais perturbador da obra reside na representação da banalidade do mal. O cinema está repleto de imagens raivosas de Hitler dando ordens, aos gritos, além de judeus desesperados, sofrendo fome, tortura e execuções. Costuma-se voltar os olhos ao aspecto mais claramente catártico do Holocausto.

No entanto, este projeto dá um passo atrás para formular outras perguntas: enquanto as mortes ocorriam em Auschwitz, Dachau e tantos outros campos, o que acontecia lá fora? Como era o cotidiano dos oficiais nazistas e suas famílias? Conseguiam dormir com a consciência tranquila? Aparentemente, sim.

“Estamos vivendo a vida que sonhamos”, declara Hedwig, recusando-se a aceitar a transferência de cidade imposta ao marido. Ela adora seu pequeno idílio, repleto de jardins floridos onde ocasionalmente caem algumas cinzas humanas trazidas pelo vento. Zona de Interesse se desenvolve a partir deste contraste: o luxo e a precariedade, a paz da casa burguesa e o inferno nas câmaras.

Cada imagem ilustra a indecência de fechar os olhos ao sofrimento alheio, de se divertir com amigos na piscina enquanto se escuta, discretamente, o calvário humano em volta. O desenho sonoro se mostra primoroso por sustentar a dor alheia na condição de “som ambiente”. O filme jamais se esquece dos fatos vizinhos, nem adere à alienação daquele núcleo patriarcal.

Pelo contrário, Glazer faz o possível para sublinhar o absurdo destes espaços. O imóvel se transforma num labirinto. Cada vez que o marido ou a esposa passam pelas portas, apresenta-se ao espectador um enquadramento diferente, o que promove a perda de referências. A cena banal em que Hedwig veste um casaco será vista por quatro enquadramentos diferentes, correspondentes às quatro quinas do cômodo.

Atos ordinários, tal qual a limpeza das botas do oficial, serão filmados num estranho plano aéreo, enquanto o gesto de apagar as luzes antes de dormir se converte, graças à repetição da montagem, numa viagem interminável. A luz das chamas entra pela janela e perturba o sono da senhora idosa; os choros distantes interrompem a brincadeira (de guerra, é claro) do filho pequeno.

Em outras palavras, a realidade insiste em invadir a propriedade que se pretende hermeticamente fechada. Conta-se às crianças a história de João e Maria, concluída com o envio da bruxa ao fogão. Aos nossos adversários, o fogo, entenderam? Ora, os ruídos dos campos, a trilha sonora repleta de dissonâncias, tal qual um filme de terror, e a afetação desta vida doméstica transmitem o completo distanciamento em relação aos protagonistas.

O afastamento ocorre, inclusive, de modo literal. Não existe um único close-up em todo o filme — ou seja, nenhum rosto será visto de perto. Marido, esposa e filhos restam colados à propriedade. Jamais se permitirá que sejam dissociados daquele espaço. Tornam-se agentes e cúmplices.

'Zona de Interesse' teve sua primeira exibição no Festival de Cannes Foto: A24 Films/AP

Enquanto isso, o diretor de fotografia Lukasz Zal mantém a profundidade infinita das imagens, reforçando a presença das execuções. Em vez de aliviar a tensão ao espectador, ou de propiciar alguma trégua à família Höss, desfocando as instalações, faz com que o elemento ao fundo se converta no verdadeiro foco de nossa atenção.

Tudo no filme é sugerido

Trabalha-se, portanto, a representação pela ausência. Não vemos nenhum judeu, embora todas as cenas remetam a eles. Não presenciamos uma única morte, apesar de ela dominar os pensamentos. Na reta final, o roteiro resgata maneiras contemporâneas de dialogar com a barbárie e lembrar, com responsabilidade, os acontecimentos da Segunda Guerra.

Este constitui o princípio ético fundamental de Jonathan Glazer: refletir acerca de um crime execrável sem explorar a dor das famílias, nem reproduzi-la para o espectador. O Holocausto nunca se transforma em diversão para as massas, em entretenimento espetacular. Somos convidados a discutir o tema, em vez de chorar por ele.

Em uma entrevista recente, o diretor austríaco Michael Haneke revelou sua completa repulsa por obras de guerra como A Lista de Schindler, de Steven Spielberg. Para ele, este tipo de iniciativa consiste na exploração emocional e comercial da miséria alheia. Ele deve ter apreciado Zona de Interesse.

No ano de 2023, após o genocídio indígena narrado pelo olhar dos criminosos brancos (em Assassinos da Lua das Flores, de Martin Scorsese), chega o Holocausto contado pela perspectiva indiferente dos nazistas. Os melhores filmes da temporada denunciam atrocidades históricas ao colocarem os nossos inimigos na condição de protagonistas.

Como assistir a Zona de Interesse

O filme de Jonathan Glazer estreia nos cinemas brasileiros no final de fevereiro de 2024. Zona de Interesse será exibido na Mostra de Cinema de São Paulo nesta segunda, 30, às 17h40, no Espaço Itaú Frei Caneca, e na terça, 31, às 21h, no Cinesesc.

Veja o trailer

É impressionante o quanto as sugestões, no cinema, podem ser muito mais fortes do que as imagens de violência. Em Zona de Interesse, filme exibido na Mostra de Cinema de São Paulo, o diretor Jonathan Glazer (de Sob a Pele e Reencarnação) apresenta telas completamente pretas, brancas ou vermelhas, junto às quais se escutam gritos de desespero e gemidos de dor.

Depois, ao descobrirmos a casa confortável de uma família, percebemos no horizonte as chaminés que despejam fumaça preta aos ares, tanto de dia quanto de noite. A propriedade é cercada por uma gigantesca muralha de concreto com arames farpados.

Os protagonistas deste drama, baseado no livro de Martin Amis, vivem no território adjacente a um campo de concentração, em plena Segunda Guerra Mundial. “Do outro lado, estão os judeus”, explica Hedwig Höss (Sandra Hüller) à sua hóspede. Ela é casada com Rudolf Höss (Christian Friedel), gestor do campo, que vive perto do trabalho por questões de conveniência.

Este funcionário de Estado divide seu dia entre reuniões, ligações telefônicas, discussões a respeito de orçamentos e provisões. Recebe um especialista que sugere uma relação de custo-benefício mais eficiente às câmaras de gás.

Em nenhum momento esta família nazista profere seu ódio aos judeus, nem transparece um prazer perverso no extermínio de milhares de pessoas. Parecem apenas não pensar nisso. A mãe está ocupada com as crianças e a visita da avó dos pequenos. O marido precisa encontrar soluções de logística, visando uma ascensão profissional. A vida segue com uma naturalidade inabalável.

Cena do filme 'Zona de Interesse', de Jonathan Glazer, que está em exibição na Mostra de Cinema de São Paulo e terá estreia no Brasil em 2024 Foto: A24 Films

O caráter mais perturbador da obra reside na representação da banalidade do mal. O cinema está repleto de imagens raivosas de Hitler dando ordens, aos gritos, além de judeus desesperados, sofrendo fome, tortura e execuções. Costuma-se voltar os olhos ao aspecto mais claramente catártico do Holocausto.

No entanto, este projeto dá um passo atrás para formular outras perguntas: enquanto as mortes ocorriam em Auschwitz, Dachau e tantos outros campos, o que acontecia lá fora? Como era o cotidiano dos oficiais nazistas e suas famílias? Conseguiam dormir com a consciência tranquila? Aparentemente, sim.

“Estamos vivendo a vida que sonhamos”, declara Hedwig, recusando-se a aceitar a transferência de cidade imposta ao marido. Ela adora seu pequeno idílio, repleto de jardins floridos onde ocasionalmente caem algumas cinzas humanas trazidas pelo vento. Zona de Interesse se desenvolve a partir deste contraste: o luxo e a precariedade, a paz da casa burguesa e o inferno nas câmaras.

Cada imagem ilustra a indecência de fechar os olhos ao sofrimento alheio, de se divertir com amigos na piscina enquanto se escuta, discretamente, o calvário humano em volta. O desenho sonoro se mostra primoroso por sustentar a dor alheia na condição de “som ambiente”. O filme jamais se esquece dos fatos vizinhos, nem adere à alienação daquele núcleo patriarcal.

Pelo contrário, Glazer faz o possível para sublinhar o absurdo destes espaços. O imóvel se transforma num labirinto. Cada vez que o marido ou a esposa passam pelas portas, apresenta-se ao espectador um enquadramento diferente, o que promove a perda de referências. A cena banal em que Hedwig veste um casaco será vista por quatro enquadramentos diferentes, correspondentes às quatro quinas do cômodo.

Atos ordinários, tal qual a limpeza das botas do oficial, serão filmados num estranho plano aéreo, enquanto o gesto de apagar as luzes antes de dormir se converte, graças à repetição da montagem, numa viagem interminável. A luz das chamas entra pela janela e perturba o sono da senhora idosa; os choros distantes interrompem a brincadeira (de guerra, é claro) do filho pequeno.

Em outras palavras, a realidade insiste em invadir a propriedade que se pretende hermeticamente fechada. Conta-se às crianças a história de João e Maria, concluída com o envio da bruxa ao fogão. Aos nossos adversários, o fogo, entenderam? Ora, os ruídos dos campos, a trilha sonora repleta de dissonâncias, tal qual um filme de terror, e a afetação desta vida doméstica transmitem o completo distanciamento em relação aos protagonistas.

O afastamento ocorre, inclusive, de modo literal. Não existe um único close-up em todo o filme — ou seja, nenhum rosto será visto de perto. Marido, esposa e filhos restam colados à propriedade. Jamais se permitirá que sejam dissociados daquele espaço. Tornam-se agentes e cúmplices.

'Zona de Interesse' teve sua primeira exibição no Festival de Cannes Foto: A24 Films/AP

Enquanto isso, o diretor de fotografia Lukasz Zal mantém a profundidade infinita das imagens, reforçando a presença das execuções. Em vez de aliviar a tensão ao espectador, ou de propiciar alguma trégua à família Höss, desfocando as instalações, faz com que o elemento ao fundo se converta no verdadeiro foco de nossa atenção.

Tudo no filme é sugerido

Trabalha-se, portanto, a representação pela ausência. Não vemos nenhum judeu, embora todas as cenas remetam a eles. Não presenciamos uma única morte, apesar de ela dominar os pensamentos. Na reta final, o roteiro resgata maneiras contemporâneas de dialogar com a barbárie e lembrar, com responsabilidade, os acontecimentos da Segunda Guerra.

Este constitui o princípio ético fundamental de Jonathan Glazer: refletir acerca de um crime execrável sem explorar a dor das famílias, nem reproduzi-la para o espectador. O Holocausto nunca se transforma em diversão para as massas, em entretenimento espetacular. Somos convidados a discutir o tema, em vez de chorar por ele.

Em uma entrevista recente, o diretor austríaco Michael Haneke revelou sua completa repulsa por obras de guerra como A Lista de Schindler, de Steven Spielberg. Para ele, este tipo de iniciativa consiste na exploração emocional e comercial da miséria alheia. Ele deve ter apreciado Zona de Interesse.

No ano de 2023, após o genocídio indígena narrado pelo olhar dos criminosos brancos (em Assassinos da Lua das Flores, de Martin Scorsese), chega o Holocausto contado pela perspectiva indiferente dos nazistas. Os melhores filmes da temporada denunciam atrocidades históricas ao colocarem os nossos inimigos na condição de protagonistas.

Como assistir a Zona de Interesse

O filme de Jonathan Glazer estreia nos cinemas brasileiros no final de fevereiro de 2024. Zona de Interesse será exibido na Mostra de Cinema de São Paulo nesta segunda, 30, às 17h40, no Espaço Itaú Frei Caneca, e na terça, 31, às 21h, no Cinesesc.

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