Estava no script: Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo foi o vencedor do Oscar 2023. Levou as estatuetas de melhor filme, direção e roteiro original (Daniel Kwan e Daniel Scheinert), atriz (Michelle Yeoh), montagem, ator e atriz coadjuvantes (Ke Huy Quan e Jamie Lee Curtis). Sete estatuetas. Ufa!
Ok, estava previsto. Mas nem por isso podemos nos poupar do espanto. Como é possível que obra tão mal ajambrada possa, afinal, receber tamanha consagração por parte de um coletivo (quase 10 mil votantes) de gente ligada ao cinema? Só não ganhou o famoso “big five” (filme, direção, ator, atriz, roteiro) porque não dispunha de um candidato indicado a melhor ator (o prêmio acabou ficando, merecidamente, com Brendan Fraser por A Baleia).
Então esse mix de ficção científica, comédia e melodrama familiar seria algo próximo de uma obra-prima de acordo com esses senhores e senhoras profissionais da arte cinematográfica? Bem, o tempo dirá. Porém, é possível apostar que seja um daqueles filmes que produzem um ruído danado e em seguida são esquecidos.
Imergindo o público na vertigem do metaverso, em estética Tik Tok, em ritmo de videoclipe, Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo parece um daqueles filmes-sintomas que surgem em momentos de crise como o nosso e tornam-se um sucesso involuntário. De maneira confusa, expressam um mal-estar difuso, sem conseguir compreendê-lo. Parece fruto imaturo da confusão de ideias, da rarefação mental. Obra caótica, infantilóide e de desfecho sentimental, talvez sirva como termômetro de uma época caracterizada pelo desejo de escapismo e a mais profunda desagregação cognitiva que se conhece. Que esta ocorra numa época de rápido desenvolvimento tecnológico, é um paradoxo digno de todo interesse.
Esse Oscar tão lamentável teve como compensação o bom acolhimento a uma obra de valor, o alemão Nada de Novo no Front, vencedor nas categorias de melhor filme internacional, fotografia, trilha sonora e direção de arte.
Filme de guerra, duro, realista, talvez em diálogo subliminar com uma obra-prima do gênero, Vá e Veja, do russo Elem Klimov desfaz as ilusões de heroísmo e bom-mocismo presentes no gênero, em especial em artefatos made in USA. É a terceira adaptação para a tela do romance de Erich Maria Remarque, considerado um clássico da literatura antibelicista e baseado na experiência do próprio autor durante a Primeira Guerra Mundial. É a primeira versão em alemão, o que lhe confere o ponto de vista autêntico do autor do livro.
Mas o destaque dado ao longa alemão não compensa o tratamento dispensado a outros concorrentes desta edição do Oscar. Em especial a Tár, trabalho adulto e que talvez tenha sido prejudicado pela pegada intelectual, algo fora de moda em tempo de culto à mediocridade. A maior injustiça foi feita a Cate Blanchett, magnífica na criação de Lydia Tár, uma regente de gênio, porém de personalidade manipuladora e agressiva. Exemplo daquilo que os gregos chamavam de hybris, o excesso de confiança e prepotência que pode levar à destruição, Lydia conhece a descida abrupta justo quando se encontra no auge da carreira. Ela é uma personagem complexa, portanto, construída com talento e rigor por Blanchett. Mas quem disse que ser a melhor atriz é suficiente para ganhar o Oscar de melhor atriz?
Não deixa de ser notável, também, a desfeita a Steven Spielberg, que merecia melhor sorte com seu autobiográfico Os Fabelmans, filme de aparência muito simples, mas que acaba ressoando em nossa sensibilidade tempos depois. Homenagem ao cinema como descoberta da beleza, mas também do trauma escondido nas relações familiares. Os conselhos de um velho tio de passagem pela casa sobre a natureza terrível da arte, a câmera usada como arma da ironia (ao entronizar o desafeto para melhor ridicularizá-lo), o encontro do jovem candidato a cineasta com o mito John Ford - são sequências dos Fabelmans que permanecem no espírito.
O sueco Triângulo da Tristeza e Os Banshees de Inisherin são filmes interessantes, com altos e baixos, mesclando momentos de talento alguns exageros, mas essa irregularidade não justifica terem saído de mãos abanando. O Oscar não está com essa bola toda para esnobar concorrentes como esses.
Por outro lado, me pareceu correto destinar o prêmio de melhor longa de animação a Pinóquio, de Guillermo Del Toro. É uma obra radical, bela mas não bonitinha. Recupera, para o nosso tempo, o espírito soturno de Carlo Collodi, criador da história do boneco de madeira, que fala e cujo nariz cresce quando está mentindo. À tal história, soma ainda uma vertente política ao ambientá-la numa época de lobos famintos, o fascismo italiano, cujas vibrações longínquas se fazem sentir no mundo de hoje.
Por fim, entre os documentários, Navalny foi o escolhido vencedor ao mostrar a trajetória do maior opositor de Vladimir Putin. Há nele algo heróico, mas com certo retrogosto de impostura. Provavelmente, a vitória do filme se deu muito mais pela comoção do mundo ocidental com a guerra na Ucrânia, e a consequente condenação a Putin, do que pelos méritos cinematográficos da obra. Qualquer um dos quatro documentários concorrentes seria melhor opção do que ele. Mas assim são os prêmios. Parafraseando Ortega y Gasset, filmes são eles e a sua circunstância. Faz papel de ingênuo quem pensar que neste mundo conta apenas o mérito artístico.
Talvez essa relatividade das escolhas explique um pouco a votação dessa consciência coletiva formada pelo colégio eleitoral da Academia de Hollywood. Preocupada com o futuro do cinema, escolheu um vencedor que supõe ser de gosto da cultura millennial, pois serão estes os consumidores de hoje e amanhã.
Nessa hipótese, se Tudo Em Todo Lugar ao Mesmo Tempo for uma escolha estratégica, apenas um ponto fora da curva para tempos difíceis, tudo bem. Terá sido apenas uma extravagância, sem maiores consequências. Se indicar uma tendência, poderá, quase 130 anos depois, dar razão a Louis Lumière, criador do cinematógrafo, que dizia ser o cinema uma invenção sem futuro.
Veja aqui a lista completa dos vencedores do Oscar.