Você faz filmes suficientes sobre pessoas correndo atrás de coisas - bandidos, dinheiro, um bebê sequestrado - e eventualmente alguém corre atrás de você. No caso de Joel Coen, seu perseguidor era William Shakespeare.
Como Coen disse recentemente, “Shakespeare é inevitável”. Ele deu uma risada resignada e acrescentou: "Para o bem ou para o mal".
Em uma carreira cinematográfica de quase 40 anos, Coen tem retratado um espectro de criminosos articulados e caras esclarecidos em histórias com quantidades variadas de brutalidade e absurdo. Ele dirigiu 18 longas-metragens e escreveu vários outros com seu irmão, Ethan.
Tendo construído uma filmografia caracterizada por reviravoltas inesperadas, o próprio Joel Coen tirou o que pode parecer um pivô surpreendente desse corpo de trabalho. Seu último filme, A Tragédia de Macbeth, é uma versão sombria e fantasmagórica da peça de Shakespeare, apresentado em preto e branco.
O filme, lançado nos cinemas em dezembro e na Apple TV+ no início deste mês, é estrelado por Denzel Washington como o nobre assassino do título e Frances McDormand como sua esposa ardilosa, Lady Macbeth. Já recebeu inúmeros aplausos na pós-temporada e, nesta terça-feira, 8, faturou três indicações ao Oscar: nas categorias de melhor ator (com Denzel Washington), fotografia e design de produção.
Coen é um frequentador de teatro dedicado e um ávido leitor, embora não tenha nenhum conhecimento especial ou afinidade com Shakespeare. “Eu cheguei nisso como um amador”, ele disse. “Ainda sou um amador.”
Mas olhando mais de perto para Macbeth, há aspectos da peça que a tornam um assunto adequado e talvez inevitável para Coen. “É uma história de assassinato”, ele disse. “De certa forma, é até uma história de terror.”
Essa história sombria pode ter sido uma fuga ideal para o diretor, chegando em um momento estranho quando Ethan decidiu fazer uma pausa no cinema. Justamente quando Joel buscava novas abordagens para seu ofício cinematográfico como diretor solo, sua inspiração surgiu de um texto fundamental da literatura inglesa.
“Foi uma escolha deliberada de fazer algo que eu não tinha feito”, disse Coen. “Foi uma oportunidade de me afastar do que estava acostumado. É algo que exigia que eu fizesse isso.”
Coen, 67, estava falando no início deste mês em uma entrevista por vídeo da Califórnia. Seu comportamento sugeria uma mistura de Harold Ramis e Larry David; ele podia ser paternal e espirituoso, mas também defensivo e avesso à automitologização.
Uma espécie de interação entre alto e baixo, sério e absurdo, sujo e justo parece ser onipresente na filmografia dos irmãos Coen, que lhes rendeu quatro Oscars, mas Joel não está necessariamente inclinado a considerar essas linhas mestras em seu trabalho.
Ele reconheceu que ele e Ethan fizeram alguns filmes peculiares ao longo dos anos, mas disse que "foi um erro pensar que qualquer coisa foi planejada".
Ele acrescentou: “Nunca houve nenhum projeto real ou arquitetura para o que fizemos”.
Mas mesmo essa ausência de estratégia foi derrubada após sua antologia faroeste de 2018, A balada de Buster Scruggs, quando Ethan decidiu se concentrar em outros empreendimentos.
Joel disse que sua parceria era flexível o suficiente para acomodar esse tipo de interrupção.
“Quando começamos não planejamos trabalhar juntos por 40 anos”, ele disse . “Aconteceu assim. Quando dissemos: ‘Vamos fazer outras coisas separadamente por um tempo’, não é como se houvesse algum plano de quanto tempo e o que isso significaria”.
Joel disse que fazer um filme sem Ethan era como “ter um olho arrancado”, mas acrescentou que “provavelmente havia algo saudável em dar um tempo”.
No mínimo, deu a Joel o espaço para contemplar um território diferente como Macbeth. Era algo em que ele vinha pensando desde pelo menos 2016, quando McDormand, sua esposa e colaboradora frequente, lhe perguntou sobre a direção de uma produção da peça, na qual ela estrelou no Berkeley Repertory Theatre.
Dirigir Macbeth para o palco não agradou a Coen - “Acho que não saberia o que fazer”, ele disse - mas como filme, ele viu potencial para permitir que ele “se afastasse de muitas maneiras do que estava fazendo antes.”
“Eu queria ir o mais longe possível do realismo e mais para uma apresentação teatral”, ele disse. “Eu estava tentando tirar as coisas e reduzi-las a uma essência teatral, mas ainda assim é cinema.”
Em um nível visual, isso significava se inclinar para as ambiguidades da peça de Shakespeare, evitando descrições que forneceriam muita especificidade sobre quando ou onde as coisas estão acontecendo.
"Não há nada certo sobre este filme, nada certo sobre onde ele se passa", disse Bruno Delbonnel, diretor de fotografia do filme, que também trabalhou com os Coens em A Balada de Buster Scruggs e Inside Llewyn Davis - Balada de Um Homem Comum.
“Estávamos criando este mundo onde você nunca sabe se está olhando para cima ou para baixo”, disse Delbonnel. “Você nunca sabe se é noite ou dia.”
Isso também significou cavar fundo para encontrar uma essencialidade Coen em Macbeth. Carter Burwell, que compôs as trilhas sonoras de quase todos os filmes dos Coens desde sua estreia em 1984, Gosto de Sangue, disse que seus filmes estão consistentemente preocupados com “o pathos de pessoas tentando desesperadamente impor significado a esta vida, a este universo sem sentido. ”
As histórias que eles contaram - incluindo A Tragédia de Macbeth - colocam o espectador “na posição de ver tudo o que está acontecendo e os pobres personagens indefesos”, disse Burwell. “Os personagens pensam que são inteligentes, acham que estão no topo. E podemos ver que, de fato, eles estão apenas se debatendo, impotentes.”
Ao contrário, digamos, da versão de 2010 dos irmãos para Bravura Indômita - quando ele deliberadamente não assistiu à versão de 1969 - Joel Coen mergulhou nas influências de Macbeth: ele considerou adaptações cinematográficas de Orson Welles e Roman Polanski, bem como Trono manchado de sangue, de Akira Kurosawa, que transpõe o drama para o Japão feudal. Ele estudou os filmes de Carl Dreyer, Masaki Kobayashi e F.W. Murnau, e leu sobre Edward Gordon Craig, o cenógrafo do início do século 20.
E ao reduzir Macbeth para menos de duas horas, Coen não hesitou em desembainhar sua espada, citando a versão de Welles de 1948 como uma espécie de padrão de ouro.
“Esse é um filme excêntrico”, disse Coen. “Welles não teve problemas em reorganizar, cortar e inventar com Shakespeare. Foi meio libertador. Você olha para isso e pensa, bem, tudo bem, ele fez isso.”
McDormand, que ganhou três Oscars por suas atuações e um quarto como produtora de Nomadland, juntou-se a Macbeth como protagonista e produtora, por razões evidentes. “Sempre trabalhei com membros da família”, disse Coen.
Coen e Delbonnel passaram vários meses projetando a estética de seu Macbeth e planejando as tomadas para quando as filmagens ocorressem em Los Angeles. Delbonnel disse que Coen o trouxe muito mais cedo e mais extensivamente do que nos filmes que Joel dirigiu com Ethan.
Mas de uma maneira fundamental, disse Delbonnel, Joel não era diferente dos filmes anteriores: "Às vezes ele faz uma pergunta e diz: 'O que você acha se fizermos isso?'", disse Delbonnel. “Mas então há um momento em que ele decide, ok, é isso que vamos fazer. E ele sabe exatamente para onde está indo.”
Não que houvesse muita hesitação em escalar Washington, duas vezes vencedor do Oscar, como o personagem-título. Washington disse que estava ansioso pelo papel, pois nunca havia trabalhado com Coen, mas se considerava fã de seus filmes “perigosos”.
“Você vai rir ou vai ver alguém com a cabeça explodindo, possivelmente ao mesmo tempo”, disse Washington. “E Aí, Meu Irmão, Cadê Você? é um dos meus filmes favoritos. Nem sei o porquê. É tão estranho.”
Washington achou as excentricidades de Coen cativantes, observando que o diretor insistia em um aspecto de sua dicção.
"Ele sempre falava comigo sobre meus R's", disse Washington. "'Certifique-se de marcar os R's fortes.' Ele era obcecado por R's. Eu falava, tipo, OK, você tem cerrrteza? Ele ficava louco com isso. 'Você tem que acertar os R's.' E os T's ou os L's?”
TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES