Diários de Alan Rickman: migalhas de uma vida em movimento


‘Madly, Deeply’ traz anotações discretas do ator que interpretou Severus Snape em ‘Harry Potter’; ele morreu em 2016

Por Dwight Garner

NYT - O ator inglês Alan Rickman não bebia nem usava drogas em excesso. Conheceu sua parceira de vida quando ambos eram adolescentes. Não gostava de pessoas indiscretas e raramente traía uma confiança, nem mesmo em seu diário – e, portanto, esses diários, publicados agora sob o título Madly, Deeply, são fantasticamente maçantes.

Veja, por exemplo, uma entrada de dezembro de 2002: “Jantar no Mick Jagger”. E é só isso. Como era o banheiro de Mick? Será que ele sabia fazer bons drinks? Será que botava cabeças inteiras de brócolis na boca? Jamais saberemos.

Assim como muitos leitores, sinto falta de Rickman, que morreu de câncer em 2016. Ele sempre fazia o papel de vilão arrogante, homens que pareciam estar a todo momento detectando fedores distantes no ar. Seus lábios retorcidos eram tão expressivos quanto os olhos de muitos atores.

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Ele foi Severus Snape, o sarcástico e exasperado mestre de poções dos filmes de Harry Potter. Graças a isso, existem os livros de colorir de Alan Rickman. Meu detalhe favorito é que ele insistia em pedir a conta nos restaurantes pronunciando as palavras “Harry” e “Potter”.

Entre seus outros filmes estão Duro de Matar, Um Romance de Outro Mundo e Simplesmente Amor. Ele foi o xerife de Nottingham em Robin Hood e emplacou essa fala paradigmática: “Então é isso. Nada de sobras da cozinha para leprosos e órfãos, chega de decapitações e cancele o Natal”. Ele teve uma longa e valorosa carreira no teatro.

Alan Rickman em 'Harry Potter' Foto: Warner Bros.
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Este livro foi talhado a partir de mais de um milhão de palavras manuscritas. Não está claro se Rickman queria que fossem publicadas. Aposto que não. Os diários não chegam a ser embaraçosos, mas as entradas raramente trazem detalhes. Grande parte parece só um apoio para a memória, notas rapidamente rabiscadas às quais se pode voltar mais tarde para escrever um outro tipo de livro.

Não é culpa dele, mas esses diários são meio deprimentes. Eles vão de 1993 a 2015, seus anos de maior fama. As regras usuais já haviam começado a se curvar em torno dele. Sua vida ia muito bem. Ele passava de aeroporto a aeroporto, de primeira classe a primeira classe.

Quase todas as noites havia um restaurante chique. Em Londres, seus lugares favoritos eram River Café, J Sheekey e Wolseley; em Nova York, Balthazar, Café Cluny e Café Loup. Há muitas festas suntuosas e hotéis esplêndidos.

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Mas ele parece atormentado, contrariado, reservado até os ossos. Não entra muita luz pelas vidraças. Era difícil trabalhar com ele, e ele sabia disso. (“Meu egoísmo no trabalho me tira o fôlego”). David Hare o chamou de “V.S. Naipaul da atuação”, ele relata. Naipaul não era conhecido por sua paciência.

Alan Rickman e Sigourney Weaver, em 1999 Foto: Rose Prouser/Reuters

Rickman conhecia todo mundo em Londres. Comparece e discursa em muitos velórios. Entre os nomes que aparecem com mais regularidade estão o de Emma Thompson (que contribui com um prefácio), Ian McKellen, Liam Neeson, Natasha Richardson, Stanley Tucci, Juliet Stevenson e Daniel Day-Lewis.

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Se algum de seus amigos era especialmente próximo, ele não diz. Sua parceira, a política do Partido Trabalhista Rima Horton (eles finalmente se casaram em 2012), não aparece com frequência. Mesmo quando na companhia de outros, Rickman parece curiosamente sozinho. Seus relatos de encerramento de grandes noites muitas vezes dizem: “Todo mundo se divertiu”, ou algo semelhante. Ele viu muito, mas descreveu muito pouco.

É possível percorrer este livro, como se com um detector de metais, e recuperar pedaços de tesouros para tabloides. Ewan McGregor é egocêntrico; Sigourney Weaver tomou anabolizantes; Daniel Radcliffe não é bom ator; Tim Allen (eles estrelaram o subestimado Heróis Fora de Órbita) é um idiota; Linda Fiorentino estraga suas falas. Muitas vezes ele corrigia essas opiniões.

Há momentos mais alegres. Certa noite, no Wolseley, Rickman passou por uma mesa onde estavam amontoados Salman Rushdie, Martin Amis e Ian McEwan. Rushdie se levantou para cumprimentar e Rickman comentou que deveria haver um substantivo coletivo para definir a mesa deles. “Um resto,” Rushdie sugeriu.

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Rickman não é bom em capturar seus companheiros humanos em poucas palavras. Ele é melhor em outros tópicos. Na manhã seguinte à estreia de uma peça, por exemplo, ele sabe que as críticas vão ser ruins se ninguém estiver pagando. Homem reservado, ele detesta entrevistas. (“Não vou responder”, diz ele para si mesmo depois de lhe perguntarem se ele levou para casa algum adereço favorito do set de Harry Potter).

Ele se exaspera com as premiações, mas as assiste. “Oh, Deus, quantos prêmios mais conseguiremos entregar a nós mesmos?”, ele pergunta. Assistir ao Oscar é como ver “macacos catando pulgas uns dos outros”.

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Rickman e Horton possuíam propriedades em Londres, Nova York e Toscana. Muitas vezes havia alguma reforma acontecendo. (Parecem que eles nunca recebem amigos em casa). Ele gostava de palavras cruzadas e jardinagem. Varrer as folhas, comenta, é uma boa terapia.

Há indícios de uma vida sexual mais ampla. Quando a foto de Hugh Grant se espalhou pelo mundo em 1995, quando que ele foi preso com uma profissional do sexo, Rickman disse a Thompson: “Sorte que não foi comigo”. Certa noite termina “com as luzes apagadas e uma pilha de corpos na cama”. Ele assiste a shows burlescos VIP em Manhattan. Mas geralmente lança um véu discreto sobre essa parte de sua vida.

Da mesma forma que é preciso uma grande equipe em terra para levar um só piloto de caça ao ar, é preciso uma grande equipe de humanos para cuidar de um ator famoso: maquiagem e roupas e cenários e carros pretos e pedidos de entrevista e ingressos e reservas e todo o resto. Queria muito que Rickman tivesse alguma coisa, qualquer coisa, a dizer sobre essas pessoas e esses processos. Mas ele desliza pela vida como se estivesse em um tapete mágico.

Como não poderia deixar de ser nesses diários, quando Rickman soube que tinha a forma agressiva de câncer que o mataria, ele simplesmente escreveu: “Dr. Landau, Rua Harley. Um tipo diferente de diário agora”. O editor precisou nos dizer, em nota de rodapé, que era câncer de pâncreas.

(Se Rickman tivesse escrito A Metamorfose, o livro teria só uma frase: “Acordei como inseto”).

Os últimos meses de entradas passam rápido não porque Rickman relata muito sobre seu tratamento, suas esperanças e seus medos, mas porque ele percebe que viveu sempre em movimento e nunca teve tempo de olhar para trás, saborear tudo.

Madly, Deeply nos remete àquela frase de Simone de Beauvoir: “Que coisa estranha é um diário: as coisas que você omite são mais importantes do que as que você anota”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

NYT - O ator inglês Alan Rickman não bebia nem usava drogas em excesso. Conheceu sua parceira de vida quando ambos eram adolescentes. Não gostava de pessoas indiscretas e raramente traía uma confiança, nem mesmo em seu diário – e, portanto, esses diários, publicados agora sob o título Madly, Deeply, são fantasticamente maçantes.

Veja, por exemplo, uma entrada de dezembro de 2002: “Jantar no Mick Jagger”. E é só isso. Como era o banheiro de Mick? Será que ele sabia fazer bons drinks? Será que botava cabeças inteiras de brócolis na boca? Jamais saberemos.

Assim como muitos leitores, sinto falta de Rickman, que morreu de câncer em 2016. Ele sempre fazia o papel de vilão arrogante, homens que pareciam estar a todo momento detectando fedores distantes no ar. Seus lábios retorcidos eram tão expressivos quanto os olhos de muitos atores.

Ele foi Severus Snape, o sarcástico e exasperado mestre de poções dos filmes de Harry Potter. Graças a isso, existem os livros de colorir de Alan Rickman. Meu detalhe favorito é que ele insistia em pedir a conta nos restaurantes pronunciando as palavras “Harry” e “Potter”.

Entre seus outros filmes estão Duro de Matar, Um Romance de Outro Mundo e Simplesmente Amor. Ele foi o xerife de Nottingham em Robin Hood e emplacou essa fala paradigmática: “Então é isso. Nada de sobras da cozinha para leprosos e órfãos, chega de decapitações e cancele o Natal”. Ele teve uma longa e valorosa carreira no teatro.

Alan Rickman em 'Harry Potter' Foto: Warner Bros.

Este livro foi talhado a partir de mais de um milhão de palavras manuscritas. Não está claro se Rickman queria que fossem publicadas. Aposto que não. Os diários não chegam a ser embaraçosos, mas as entradas raramente trazem detalhes. Grande parte parece só um apoio para a memória, notas rapidamente rabiscadas às quais se pode voltar mais tarde para escrever um outro tipo de livro.

Não é culpa dele, mas esses diários são meio deprimentes. Eles vão de 1993 a 2015, seus anos de maior fama. As regras usuais já haviam começado a se curvar em torno dele. Sua vida ia muito bem. Ele passava de aeroporto a aeroporto, de primeira classe a primeira classe.

Quase todas as noites havia um restaurante chique. Em Londres, seus lugares favoritos eram River Café, J Sheekey e Wolseley; em Nova York, Balthazar, Café Cluny e Café Loup. Há muitas festas suntuosas e hotéis esplêndidos.

Mas ele parece atormentado, contrariado, reservado até os ossos. Não entra muita luz pelas vidraças. Era difícil trabalhar com ele, e ele sabia disso. (“Meu egoísmo no trabalho me tira o fôlego”). David Hare o chamou de “V.S. Naipaul da atuação”, ele relata. Naipaul não era conhecido por sua paciência.

Alan Rickman e Sigourney Weaver, em 1999 Foto: Rose Prouser/Reuters

Rickman conhecia todo mundo em Londres. Comparece e discursa em muitos velórios. Entre os nomes que aparecem com mais regularidade estão o de Emma Thompson (que contribui com um prefácio), Ian McKellen, Liam Neeson, Natasha Richardson, Stanley Tucci, Juliet Stevenson e Daniel Day-Lewis.

Se algum de seus amigos era especialmente próximo, ele não diz. Sua parceira, a política do Partido Trabalhista Rima Horton (eles finalmente se casaram em 2012), não aparece com frequência. Mesmo quando na companhia de outros, Rickman parece curiosamente sozinho. Seus relatos de encerramento de grandes noites muitas vezes dizem: “Todo mundo se divertiu”, ou algo semelhante. Ele viu muito, mas descreveu muito pouco.

É possível percorrer este livro, como se com um detector de metais, e recuperar pedaços de tesouros para tabloides. Ewan McGregor é egocêntrico; Sigourney Weaver tomou anabolizantes; Daniel Radcliffe não é bom ator; Tim Allen (eles estrelaram o subestimado Heróis Fora de Órbita) é um idiota; Linda Fiorentino estraga suas falas. Muitas vezes ele corrigia essas opiniões.

Há momentos mais alegres. Certa noite, no Wolseley, Rickman passou por uma mesa onde estavam amontoados Salman Rushdie, Martin Amis e Ian McEwan. Rushdie se levantou para cumprimentar e Rickman comentou que deveria haver um substantivo coletivo para definir a mesa deles. “Um resto,” Rushdie sugeriu.

Rickman não é bom em capturar seus companheiros humanos em poucas palavras. Ele é melhor em outros tópicos. Na manhã seguinte à estreia de uma peça, por exemplo, ele sabe que as críticas vão ser ruins se ninguém estiver pagando. Homem reservado, ele detesta entrevistas. (“Não vou responder”, diz ele para si mesmo depois de lhe perguntarem se ele levou para casa algum adereço favorito do set de Harry Potter).

Ele se exaspera com as premiações, mas as assiste. “Oh, Deus, quantos prêmios mais conseguiremos entregar a nós mesmos?”, ele pergunta. Assistir ao Oscar é como ver “macacos catando pulgas uns dos outros”.

Rickman e Horton possuíam propriedades em Londres, Nova York e Toscana. Muitas vezes havia alguma reforma acontecendo. (Parecem que eles nunca recebem amigos em casa). Ele gostava de palavras cruzadas e jardinagem. Varrer as folhas, comenta, é uma boa terapia.

Há indícios de uma vida sexual mais ampla. Quando a foto de Hugh Grant se espalhou pelo mundo em 1995, quando que ele foi preso com uma profissional do sexo, Rickman disse a Thompson: “Sorte que não foi comigo”. Certa noite termina “com as luzes apagadas e uma pilha de corpos na cama”. Ele assiste a shows burlescos VIP em Manhattan. Mas geralmente lança um véu discreto sobre essa parte de sua vida.

Da mesma forma que é preciso uma grande equipe em terra para levar um só piloto de caça ao ar, é preciso uma grande equipe de humanos para cuidar de um ator famoso: maquiagem e roupas e cenários e carros pretos e pedidos de entrevista e ingressos e reservas e todo o resto. Queria muito que Rickman tivesse alguma coisa, qualquer coisa, a dizer sobre essas pessoas e esses processos. Mas ele desliza pela vida como se estivesse em um tapete mágico.

Como não poderia deixar de ser nesses diários, quando Rickman soube que tinha a forma agressiva de câncer que o mataria, ele simplesmente escreveu: “Dr. Landau, Rua Harley. Um tipo diferente de diário agora”. O editor precisou nos dizer, em nota de rodapé, que era câncer de pâncreas.

(Se Rickman tivesse escrito A Metamorfose, o livro teria só uma frase: “Acordei como inseto”).

Os últimos meses de entradas passam rápido não porque Rickman relata muito sobre seu tratamento, suas esperanças e seus medos, mas porque ele percebe que viveu sempre em movimento e nunca teve tempo de olhar para trás, saborear tudo.

Madly, Deeply nos remete àquela frase de Simone de Beauvoir: “Que coisa estranha é um diário: as coisas que você omite são mais importantes do que as que você anota”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

NYT - O ator inglês Alan Rickman não bebia nem usava drogas em excesso. Conheceu sua parceira de vida quando ambos eram adolescentes. Não gostava de pessoas indiscretas e raramente traía uma confiança, nem mesmo em seu diário – e, portanto, esses diários, publicados agora sob o título Madly, Deeply, são fantasticamente maçantes.

Veja, por exemplo, uma entrada de dezembro de 2002: “Jantar no Mick Jagger”. E é só isso. Como era o banheiro de Mick? Será que ele sabia fazer bons drinks? Será que botava cabeças inteiras de brócolis na boca? Jamais saberemos.

Assim como muitos leitores, sinto falta de Rickman, que morreu de câncer em 2016. Ele sempre fazia o papel de vilão arrogante, homens que pareciam estar a todo momento detectando fedores distantes no ar. Seus lábios retorcidos eram tão expressivos quanto os olhos de muitos atores.

Ele foi Severus Snape, o sarcástico e exasperado mestre de poções dos filmes de Harry Potter. Graças a isso, existem os livros de colorir de Alan Rickman. Meu detalhe favorito é que ele insistia em pedir a conta nos restaurantes pronunciando as palavras “Harry” e “Potter”.

Entre seus outros filmes estão Duro de Matar, Um Romance de Outro Mundo e Simplesmente Amor. Ele foi o xerife de Nottingham em Robin Hood e emplacou essa fala paradigmática: “Então é isso. Nada de sobras da cozinha para leprosos e órfãos, chega de decapitações e cancele o Natal”. Ele teve uma longa e valorosa carreira no teatro.

Alan Rickman em 'Harry Potter' Foto: Warner Bros.

Este livro foi talhado a partir de mais de um milhão de palavras manuscritas. Não está claro se Rickman queria que fossem publicadas. Aposto que não. Os diários não chegam a ser embaraçosos, mas as entradas raramente trazem detalhes. Grande parte parece só um apoio para a memória, notas rapidamente rabiscadas às quais se pode voltar mais tarde para escrever um outro tipo de livro.

Não é culpa dele, mas esses diários são meio deprimentes. Eles vão de 1993 a 2015, seus anos de maior fama. As regras usuais já haviam começado a se curvar em torno dele. Sua vida ia muito bem. Ele passava de aeroporto a aeroporto, de primeira classe a primeira classe.

Quase todas as noites havia um restaurante chique. Em Londres, seus lugares favoritos eram River Café, J Sheekey e Wolseley; em Nova York, Balthazar, Café Cluny e Café Loup. Há muitas festas suntuosas e hotéis esplêndidos.

Mas ele parece atormentado, contrariado, reservado até os ossos. Não entra muita luz pelas vidraças. Era difícil trabalhar com ele, e ele sabia disso. (“Meu egoísmo no trabalho me tira o fôlego”). David Hare o chamou de “V.S. Naipaul da atuação”, ele relata. Naipaul não era conhecido por sua paciência.

Alan Rickman e Sigourney Weaver, em 1999 Foto: Rose Prouser/Reuters

Rickman conhecia todo mundo em Londres. Comparece e discursa em muitos velórios. Entre os nomes que aparecem com mais regularidade estão o de Emma Thompson (que contribui com um prefácio), Ian McKellen, Liam Neeson, Natasha Richardson, Stanley Tucci, Juliet Stevenson e Daniel Day-Lewis.

Se algum de seus amigos era especialmente próximo, ele não diz. Sua parceira, a política do Partido Trabalhista Rima Horton (eles finalmente se casaram em 2012), não aparece com frequência. Mesmo quando na companhia de outros, Rickman parece curiosamente sozinho. Seus relatos de encerramento de grandes noites muitas vezes dizem: “Todo mundo se divertiu”, ou algo semelhante. Ele viu muito, mas descreveu muito pouco.

É possível percorrer este livro, como se com um detector de metais, e recuperar pedaços de tesouros para tabloides. Ewan McGregor é egocêntrico; Sigourney Weaver tomou anabolizantes; Daniel Radcliffe não é bom ator; Tim Allen (eles estrelaram o subestimado Heróis Fora de Órbita) é um idiota; Linda Fiorentino estraga suas falas. Muitas vezes ele corrigia essas opiniões.

Há momentos mais alegres. Certa noite, no Wolseley, Rickman passou por uma mesa onde estavam amontoados Salman Rushdie, Martin Amis e Ian McEwan. Rushdie se levantou para cumprimentar e Rickman comentou que deveria haver um substantivo coletivo para definir a mesa deles. “Um resto,” Rushdie sugeriu.

Rickman não é bom em capturar seus companheiros humanos em poucas palavras. Ele é melhor em outros tópicos. Na manhã seguinte à estreia de uma peça, por exemplo, ele sabe que as críticas vão ser ruins se ninguém estiver pagando. Homem reservado, ele detesta entrevistas. (“Não vou responder”, diz ele para si mesmo depois de lhe perguntarem se ele levou para casa algum adereço favorito do set de Harry Potter).

Ele se exaspera com as premiações, mas as assiste. “Oh, Deus, quantos prêmios mais conseguiremos entregar a nós mesmos?”, ele pergunta. Assistir ao Oscar é como ver “macacos catando pulgas uns dos outros”.

Rickman e Horton possuíam propriedades em Londres, Nova York e Toscana. Muitas vezes havia alguma reforma acontecendo. (Parecem que eles nunca recebem amigos em casa). Ele gostava de palavras cruzadas e jardinagem. Varrer as folhas, comenta, é uma boa terapia.

Há indícios de uma vida sexual mais ampla. Quando a foto de Hugh Grant se espalhou pelo mundo em 1995, quando que ele foi preso com uma profissional do sexo, Rickman disse a Thompson: “Sorte que não foi comigo”. Certa noite termina “com as luzes apagadas e uma pilha de corpos na cama”. Ele assiste a shows burlescos VIP em Manhattan. Mas geralmente lança um véu discreto sobre essa parte de sua vida.

Da mesma forma que é preciso uma grande equipe em terra para levar um só piloto de caça ao ar, é preciso uma grande equipe de humanos para cuidar de um ator famoso: maquiagem e roupas e cenários e carros pretos e pedidos de entrevista e ingressos e reservas e todo o resto. Queria muito que Rickman tivesse alguma coisa, qualquer coisa, a dizer sobre essas pessoas e esses processos. Mas ele desliza pela vida como se estivesse em um tapete mágico.

Como não poderia deixar de ser nesses diários, quando Rickman soube que tinha a forma agressiva de câncer que o mataria, ele simplesmente escreveu: “Dr. Landau, Rua Harley. Um tipo diferente de diário agora”. O editor precisou nos dizer, em nota de rodapé, que era câncer de pâncreas.

(Se Rickman tivesse escrito A Metamorfose, o livro teria só uma frase: “Acordei como inseto”).

Os últimos meses de entradas passam rápido não porque Rickman relata muito sobre seu tratamento, suas esperanças e seus medos, mas porque ele percebe que viveu sempre em movimento e nunca teve tempo de olhar para trás, saborear tudo.

Madly, Deeply nos remete àquela frase de Simone de Beauvoir: “Que coisa estranha é um diário: as coisas que você omite são mais importantes do que as que você anota”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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