Quase oito anos atrás, Charlotte Wells estava naquele dilema de todo cineasta com alguns curtas-metragens no currículo: o que falar em seu primeiro longa? Sua primeira ideia foi quase singela, um filme que acontecesse no espaço e no tempo limitados pelas férias de verão. Como no seu caso a maior parte delas foi passada com o seu pai, era natural que ela gravitasse em direção a um relacionamento de pai e filha. O que a escocesa não sabia é que Aftersun seria muito mais do que isso.
O filme chega aos cinemas brasileiros antes de ser lançado na plataforma de streaming Mubi, em data a ser definida. Fez barulho no Festival de Cannes, mesmo exibido na discreta Semana da Crítica, de onde saiu premiado. Ganhou o Troféu Bandeira Paulista na última Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. “Ah, queria tanto ter estado aí”, disse a diretora ao Estadão, poucos dias antes de receber o Gotham, o Oscar independente da Costa Leste americana, como diretora-revelação.
Aftersun tem conquistado o público pelo coração, mesmo evitando as emoções derramadas. No longa, a menina Sophie (Frankie Corio) vai passar férias com o pai, Callum (Paul Mescal, da série Normal People), na Turquia, nos anos 1990. Ele é jovem e separado da mãe da menina. Os dois passam os dias à beira da piscina, ou fazendo alguns passeios. Conversam, discutem. Poderia ser apenas um filme sobre a relação terna e por vezes complicada entre pai e filha.
Memórias
Mas depois de um tempo Charlotte Wells percebeu que Aftersun não era de jeito nenhum o que ela pensava. “Eu acho que ele sempre foi o que acabou sendo. Mas, se eu tivesse começado com a ideia de realizar esta obra, eu nunca teria feito”, revelou. “Meu cérebro estava convencido de que eu estava fazendo um filme sobre férias. Depois que era um longa sobre pai e filha. E finalmente viu que era uma obra sobre memória e luto”, contou Wells, que perdeu o pai quando adolescente.
No filme, a hoje adulta Sophie relembra aqueles dias e a relação com seu pai, um homem tão próximo e, no entanto, tão desconhecido. As memórias produzidas pela pequena Sophie, com a ajuda de uma câmera, e aquelas que ficaram guardadas sob a percepção infantil ganham novos significados. A Sophie de agora busca uma reconciliação com o passado.
Para Wells, foi um processo longo de descoberta e de mergulho em seus próprios sentimentos. “Passei muito tempo procurando minhas memórias, me lembrando detalhes dos lugares, da relação, de acontecimentos”, lembrou a diretora. Mas aquela necessidade de expressão do que estava dentro foi se transformando em algo com identidade própria. “Tive de deixar o filme ser o que tinha de ser”, afirmou. Ela tem dificuldades hoje de falar sobre como Aftersun reflete a sua relação com o pai. “Para mim é complicado traçar uma linha separando o que é pessoal. É muito mais fácil falar sobre as escolhas criativas do que sobre sua conexão comigo, até porque ela progrediu ao longo do tempo.”
Mas, por ser uma produção tão pessoal, é com certa surpresa que ela tem visto as pessoas se conectarem tanto e tão profundamente com o filme, seja em Cannes ou em São Paulo. “Pode ser que tenha a ver com a pandemia, com as pessoas saindo do longo período de solidão em que tiveram de refletir sobre o passado, as escolhas e o que querem do futuro.”