Elenco de 'A Voz Suprema do Blues' relembra clima das gravações do poderoso filme


Ma Rainey’s Black Bottom, a história de August Wilson sobre o orgulho negro e o blues da Chicago de 1927, é tão incendiária hoje quanto no dia em que foi escrita

Por Redação
Atualização:

Uma nação dilacerada pela violência racial, uma indústria com histórico de exploração da cultura negra, executivos brancos querendo se passar por aliados e artistas negros no centro de tudo, lutando com um sistema que os cumprimentava com uma mão e limpava seus bolsos com a outra.

A história de Ma Rainey’s Black Bottom, a aclamada peça de 1982 de August Wilson sobre o orgulho negro, o poder dos brancos e o blues da Chicago de 1927, é tão incendiária hoje quanto no dia em que foi escrita. Uma nova adaptação para o cinema na Netflix (A Voz Suprema do Blues) revive a narrativa histórica de Wilson num tempo contemporâneo em que muito mudou – e muito pouco mudou.

Gravação. Viola Davis e Chadwick Boseman em ação, sob o comando do diretor George C. Wolf Foto: DAVID LEE/NETFLIX
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Segunda obra das dez peças de seu Ciclo do Século Americano, no qual narra a experiência negra em cada década do século 20, Rainey ganhou três Tonys por sua edição original na Broadway. A adaptação para o cinema já é candidata a prêmios para o ano que vem, graças a uma atuação marcante de Viola Davis e uma aparição poderosa de Chadwick Boseman, em seu último papel no cinema antes de morrer de câncer, em agosto.

Davis interpreta Ma, uma artista indomável baseada na vida real da “Mãe do Blues”, cujo estrelato sem precedentes a levou dos shows nas tendas de Barnesville, Geórgia, a uma sessão de gravação em Chicago. Os homens brancos que supervisionam a sessão, com cifrões dançando nas cabeças, temem e respeitam Ma, assim como todas as outras pessoas de sua órbita gravitacional, entre elas sua namorada, Dussie Mae (Taylour Paige) e o experiente quarteto de músicos de apoio: Levee (Boseman), Cutler (Colman Domingo), Toledo (Glynn Turman) e Slow Drag (Michael Potts). Mas, quando as ambições de carreira de Levee o colocam em confronto com o grupo, sua frágil infraestrutura ameaça implodir.

George C. Wolfe, vencedor do Tony (Angels in America), dirigiu o filme a partir de um roteiro adaptado por Ruben Santiago-Hudson. Numa recente mesa-redonda por chamada de vídeo, Wolfe, Davis, Domingo, Turman e Potts discutiram o trabalho com Boseman, o poderoso legado de Rainey e a afirmação de seu valor num mundo construído sobre sua desvalorização. Estes são alguns trechos editados (e sem spoilers) de nossa conversa.

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Última atuação. Chadwick Boseman morreu em agosto Foto: NETFLIX

O filme é dedicado a Chadwick Boseman, que tem uma atuação inesquecível como Levee. Quais são suas memórias de trabalhar com ele? O que ele trouxe para o filme que vocês viram como seus colaboradores e que nós, como espectadores, talvez não consigamos ver?

George C. Wolfe: Eu me lembro de uma vez, quando a banda estava só esperando no ensaio, ele começou a se lançar a um de seus monólogos finais. Tudo estava muito casual. Aí, num certo momento, não era mais casual – foi um momento totalmente engajado, cheio de energia, intensidade e verdade. Só me lembro de ter pensado: “Oh, é agora que vamos embarcar?”. E ele embarcou. Estávamos todos metade personagem e metade quem éramos, e então, naquele momento, a metade personagem assumiu o controle. E foi um negócio glorioso. Glynn Turman: Eu adorava o jeito como ele tinha seu trompete sempre por perto. Ele estava sempre fazendo alguma coisa com o instrumento, se familiarizando com ele, descobrindo a maneira como um músico e seu instrumento se tornam uma coisa só. Sempre que ele o pegava, estava na posição certa. Sempre que o deixava em algum lugar, estava na posição certa. Sempre que o colocava na boca, estava na posição certa. Ele se tornou um músico. Foi maravilhoso testemunhar isso. Todos nós meio que pegamos essa deixa para não ficarmos para trás, é uma coisa que os atores sempre fazem. Colman Domingo: É verdade. Wolfe: Quem? Nós aqui? Fiquei confuso (risos). 

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Eu fico me perguntando, quando vocês olham para a atuação dele agora ou quando vocês assistem ao filme, ela é diferente para algum de vocês, por causa do falecimento? O significado dessa atuação mudou para vocês, de alguma maneira?

Domingo: Com certeza. Eu assisti outra noite e ouvi a linguagem de Chad de um jeito diferente. Você vê sua força e seu humor. Fiquei com lágrimas nos olhos desde o começo, por saber o que sabemos agora. E sabendo que estávamos todos bem saudáveis e estávamos fazendo um trabalho incrível, dando um passo à frente e enfrentando a linguagem de August. Este cara estava enfrentando uma outra luta enorme em cima de tudo isso. Não sei como ele conseguiu. Fiquei pensando comigo mesmo por uns bons 15 minutos depois de assistir ao filme e chorei um pouco, principalmente quando vi a dedicatória. Aí me bateu de verdade que ele não está mais conosco. Eu sabia que ele não estava aqui, mas ver a dedicatória escrita na tela meio que acabou comigo. Viola Davis: Tinha alguma coisa transcendente na atuação do Chad – e precisava ter mesmo. É um homem que está furioso com Deus, que perdeu até mesmo sua fé. Então (Boseman) tem que ir até o limite da esperança, da morte e da vida para fazer esse personagem funcionar. Claro, você olha para trás e vê que é o lugar onde ele próprio estava. É o que sempre digo: um carpinteiro, ou qualquer outra pessoa que trabalhe, essas pessoas precisam de certas ferramentas para criar. Nossa ferramenta somos nós. Temos que usar a nós mesmos. Não há como juntar tudo o que você está passando e deixar no quarto do hotel. Você tem que trazer isso com você e precisa de permissão para fazer isso. E ele fez isso, fez mesmo.

Ma Rainey. Viola Davis no papel da cantora indomável Foto: NETFLIX
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George e Viola, ‘Ma Rainey’s Black Bottom’ é a única peça do ‘Ciclo do Século Americano’ de August Wilson que é inspirada numa figura pública da vida real. Por que você acha que a história dela foi propícia para o teatro?

Wolfe: Acho que uma das razões pelas quais August se sentiu atraído por ela é que ela vivia fora das regras. E quando alguém vive fora das regras, fica muito claro quais são as regras. Eu amo que ela sempre luta a luta, sem pensar nas consequências. E luta a luta porque é o que deve fazer. Ela me lembra... minha avó era assim. Se você fosse uma mulher negra e ficasse esperando que alguém reconhecesse seu poder, isso nunca iria acontecer. Então você tinha que reivindicar seu poder. Ela tem aquela qualidade que todo mundo que é artista tem que desenvolver e ponto final. E, se você é uma artista negra, ainda mais. Esta é a verdade e este é o meu talento, e isto é o que estou disposta a fazer e isto é o que não estou disposta a fazer. Acho que ela viveu sua vida muito puramente assim. E se você situar tudo isso em 1927, você vai ter muito drama, porque o mundo não está reconhecendo nada disso. Davis: Uma das coisas que adoro em August é que ele nos dá uma coisa que não tínhamos em muitas narrativas, principalmente nos filmes: autonomia. Sempre somos mostrados pelo filtro de um olhar branco. É como Toni Morrison fala sobre O Homem Invisível, de Ralph Ellison. Ela fica tipo, “invisível para quem?”. August nos define de um jeito particular. Se você perguntar a qualquer um de nós que estamos aqui nesta teleconferência por Zoom se conhecemos alguém como Ma Rainey, que podia acabar com você na quinta e ir à igreja no domingo, que não pedia desculpas por seu próprio valor, você vai ver que nós crescemos com pessoas assim. E com certeza acho que é um ótimo começo para uma narrativa, ter uma mulher que era conhecida por sua autonomia, que não abria mão de seu valor, e os homens que estavam ao seu redor.

Glynn, Colman e Michael,grande parte da eletricidadedo filme vem das interações entre os rapazes da banda. Existe uma espécie de jocosidade e camaradagem entre vocês, mas também existe uma corrente de tensão e rivalidade. Falem um pouco sobre como vocês trabalharam juntos para criar essa dinâmica.

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Turman: Começa de um ponto em que realmente podemos desfrutar da companhia um do outro. Acho que jantamos uma noite depois do ensaio, todos nós saímos logo depois de nos conhecermos. Nossa amizade foi construída em cima dessa base. Assim como na vida real, as dores e o desconforto vêm do quão bem vocês se conhecem, porque as pessoas que você conhece são as únicas que podem realmente chegar até você. Então, todos sofremos muito nisso de tentar nos conhecer dentro do prazo que tínhamos. Assim, ficamos à vontade zoando, xingando e falando bobagem. E isso aconteceu na tela e fora dela (risos). Michael Potts: A zoeira não acabava. A gente estava no set com um bando de caras sem noção. Sem a mínima noção (risos). Domingo: Lembro que um dia o Chad apareceu, foi logo no início dos ensaios, ele entrou com o chapéu inclinado para o lado e o trompete. Ele entra na sala silenciosamente, de um jeito muito elegante. E eu não sei se é o Cutler em mim também, mas aí eu falei algo do tipo, ‘Oh, então você acha que vai entrar aqui e não vai falar com ninguém? Você chega aqui e não fala com ninguém?’ (risos). Ele disse: ‘Ah, não, não!’. A gente tirava sarro desse jeito. Mas, a partir daí, ele fez questão de chegar todas as manhãs e dar um salve para os irmãos e mostrar respeito. Porque o sentimento era: não podemos ficar dentro das nossas próprias cabeças. Nós temos que entrar e nos entregar uns aos outros. E foi isso que fizemos.

Uma das principais questões apresentadas pelo filme é como você encontra seu lugar no mundo – como artista e cantora, mas também como uma pessoa negra na base de uma hierarquia racial rígida. Estou curioso para saber se havia elementos das histórias dos personagens que ressoaram em qualquer um de vocês, em suas próprias jornadas artísticas e profissionais.

Davis: Acho isso exaustivo. Acho mesmo. Acho muito necessário, mas exaustivo. Você está lutando para conquistar seu lugar. Você está lutando para ser vista. Você está lutando para ser ouvida. É sempre uma luta. E é uma luta pelas coisas mais simples que as outras pessoas ganham sem dar nada em troca. Meu grande problema é quando tenho que lutar por minha competência. Não suporto isso. Essa parte de mim é a parte que passou dez anos na escola de atuação, que fez todo aquele teatro, off-Broadway, Broadway, TV e tudo mais. E então você entra numa sala em Hollywood e vê que, quando você é uma pessoa negra, tem uma vida útil curta. É isso que me irrita. Não gosto quando as pessoas questionam minha capacidade. Mas sinto que é disto que tratam todas as peças de August: lutar por um lugar no mundo. E tem mais outra coisa: você não precisa ser rei ou rainha. Você não tem que ser alguém lá no alto. Ele infundiu importância nas nossas vidas, mesmo que não o tenhamos colocado nos livros de história. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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Uma nação dilacerada pela violência racial, uma indústria com histórico de exploração da cultura negra, executivos brancos querendo se passar por aliados e artistas negros no centro de tudo, lutando com um sistema que os cumprimentava com uma mão e limpava seus bolsos com a outra.

A história de Ma Rainey’s Black Bottom, a aclamada peça de 1982 de August Wilson sobre o orgulho negro, o poder dos brancos e o blues da Chicago de 1927, é tão incendiária hoje quanto no dia em que foi escrita. Uma nova adaptação para o cinema na Netflix (A Voz Suprema do Blues) revive a narrativa histórica de Wilson num tempo contemporâneo em que muito mudou – e muito pouco mudou.

Gravação. Viola Davis e Chadwick Boseman em ação, sob o comando do diretor George C. Wolf Foto: DAVID LEE/NETFLIX

Segunda obra das dez peças de seu Ciclo do Século Americano, no qual narra a experiência negra em cada década do século 20, Rainey ganhou três Tonys por sua edição original na Broadway. A adaptação para o cinema já é candidata a prêmios para o ano que vem, graças a uma atuação marcante de Viola Davis e uma aparição poderosa de Chadwick Boseman, em seu último papel no cinema antes de morrer de câncer, em agosto.

Davis interpreta Ma, uma artista indomável baseada na vida real da “Mãe do Blues”, cujo estrelato sem precedentes a levou dos shows nas tendas de Barnesville, Geórgia, a uma sessão de gravação em Chicago. Os homens brancos que supervisionam a sessão, com cifrões dançando nas cabeças, temem e respeitam Ma, assim como todas as outras pessoas de sua órbita gravitacional, entre elas sua namorada, Dussie Mae (Taylour Paige) e o experiente quarteto de músicos de apoio: Levee (Boseman), Cutler (Colman Domingo), Toledo (Glynn Turman) e Slow Drag (Michael Potts). Mas, quando as ambições de carreira de Levee o colocam em confronto com o grupo, sua frágil infraestrutura ameaça implodir.

George C. Wolfe, vencedor do Tony (Angels in America), dirigiu o filme a partir de um roteiro adaptado por Ruben Santiago-Hudson. Numa recente mesa-redonda por chamada de vídeo, Wolfe, Davis, Domingo, Turman e Potts discutiram o trabalho com Boseman, o poderoso legado de Rainey e a afirmação de seu valor num mundo construído sobre sua desvalorização. Estes são alguns trechos editados (e sem spoilers) de nossa conversa.

Última atuação. Chadwick Boseman morreu em agosto Foto: NETFLIX

O filme é dedicado a Chadwick Boseman, que tem uma atuação inesquecível como Levee. Quais são suas memórias de trabalhar com ele? O que ele trouxe para o filme que vocês viram como seus colaboradores e que nós, como espectadores, talvez não consigamos ver?

George C. Wolfe: Eu me lembro de uma vez, quando a banda estava só esperando no ensaio, ele começou a se lançar a um de seus monólogos finais. Tudo estava muito casual. Aí, num certo momento, não era mais casual – foi um momento totalmente engajado, cheio de energia, intensidade e verdade. Só me lembro de ter pensado: “Oh, é agora que vamos embarcar?”. E ele embarcou. Estávamos todos metade personagem e metade quem éramos, e então, naquele momento, a metade personagem assumiu o controle. E foi um negócio glorioso. Glynn Turman: Eu adorava o jeito como ele tinha seu trompete sempre por perto. Ele estava sempre fazendo alguma coisa com o instrumento, se familiarizando com ele, descobrindo a maneira como um músico e seu instrumento se tornam uma coisa só. Sempre que ele o pegava, estava na posição certa. Sempre que o deixava em algum lugar, estava na posição certa. Sempre que o colocava na boca, estava na posição certa. Ele se tornou um músico. Foi maravilhoso testemunhar isso. Todos nós meio que pegamos essa deixa para não ficarmos para trás, é uma coisa que os atores sempre fazem. Colman Domingo: É verdade. Wolfe: Quem? Nós aqui? Fiquei confuso (risos). 

Eu fico me perguntando, quando vocês olham para a atuação dele agora ou quando vocês assistem ao filme, ela é diferente para algum de vocês, por causa do falecimento? O significado dessa atuação mudou para vocês, de alguma maneira?

Domingo: Com certeza. Eu assisti outra noite e ouvi a linguagem de Chad de um jeito diferente. Você vê sua força e seu humor. Fiquei com lágrimas nos olhos desde o começo, por saber o que sabemos agora. E sabendo que estávamos todos bem saudáveis e estávamos fazendo um trabalho incrível, dando um passo à frente e enfrentando a linguagem de August. Este cara estava enfrentando uma outra luta enorme em cima de tudo isso. Não sei como ele conseguiu. Fiquei pensando comigo mesmo por uns bons 15 minutos depois de assistir ao filme e chorei um pouco, principalmente quando vi a dedicatória. Aí me bateu de verdade que ele não está mais conosco. Eu sabia que ele não estava aqui, mas ver a dedicatória escrita na tela meio que acabou comigo. Viola Davis: Tinha alguma coisa transcendente na atuação do Chad – e precisava ter mesmo. É um homem que está furioso com Deus, que perdeu até mesmo sua fé. Então (Boseman) tem que ir até o limite da esperança, da morte e da vida para fazer esse personagem funcionar. Claro, você olha para trás e vê que é o lugar onde ele próprio estava. É o que sempre digo: um carpinteiro, ou qualquer outra pessoa que trabalhe, essas pessoas precisam de certas ferramentas para criar. Nossa ferramenta somos nós. Temos que usar a nós mesmos. Não há como juntar tudo o que você está passando e deixar no quarto do hotel. Você tem que trazer isso com você e precisa de permissão para fazer isso. E ele fez isso, fez mesmo.

Ma Rainey. Viola Davis no papel da cantora indomável Foto: NETFLIX

George e Viola, ‘Ma Rainey’s Black Bottom’ é a única peça do ‘Ciclo do Século Americano’ de August Wilson que é inspirada numa figura pública da vida real. Por que você acha que a história dela foi propícia para o teatro?

Wolfe: Acho que uma das razões pelas quais August se sentiu atraído por ela é que ela vivia fora das regras. E quando alguém vive fora das regras, fica muito claro quais são as regras. Eu amo que ela sempre luta a luta, sem pensar nas consequências. E luta a luta porque é o que deve fazer. Ela me lembra... minha avó era assim. Se você fosse uma mulher negra e ficasse esperando que alguém reconhecesse seu poder, isso nunca iria acontecer. Então você tinha que reivindicar seu poder. Ela tem aquela qualidade que todo mundo que é artista tem que desenvolver e ponto final. E, se você é uma artista negra, ainda mais. Esta é a verdade e este é o meu talento, e isto é o que estou disposta a fazer e isto é o que não estou disposta a fazer. Acho que ela viveu sua vida muito puramente assim. E se você situar tudo isso em 1927, você vai ter muito drama, porque o mundo não está reconhecendo nada disso. Davis: Uma das coisas que adoro em August é que ele nos dá uma coisa que não tínhamos em muitas narrativas, principalmente nos filmes: autonomia. Sempre somos mostrados pelo filtro de um olhar branco. É como Toni Morrison fala sobre O Homem Invisível, de Ralph Ellison. Ela fica tipo, “invisível para quem?”. August nos define de um jeito particular. Se você perguntar a qualquer um de nós que estamos aqui nesta teleconferência por Zoom se conhecemos alguém como Ma Rainey, que podia acabar com você na quinta e ir à igreja no domingo, que não pedia desculpas por seu próprio valor, você vai ver que nós crescemos com pessoas assim. E com certeza acho que é um ótimo começo para uma narrativa, ter uma mulher que era conhecida por sua autonomia, que não abria mão de seu valor, e os homens que estavam ao seu redor.

Glynn, Colman e Michael,grande parte da eletricidadedo filme vem das interações entre os rapazes da banda. Existe uma espécie de jocosidade e camaradagem entre vocês, mas também existe uma corrente de tensão e rivalidade. Falem um pouco sobre como vocês trabalharam juntos para criar essa dinâmica.

Turman: Começa de um ponto em que realmente podemos desfrutar da companhia um do outro. Acho que jantamos uma noite depois do ensaio, todos nós saímos logo depois de nos conhecermos. Nossa amizade foi construída em cima dessa base. Assim como na vida real, as dores e o desconforto vêm do quão bem vocês se conhecem, porque as pessoas que você conhece são as únicas que podem realmente chegar até você. Então, todos sofremos muito nisso de tentar nos conhecer dentro do prazo que tínhamos. Assim, ficamos à vontade zoando, xingando e falando bobagem. E isso aconteceu na tela e fora dela (risos). Michael Potts: A zoeira não acabava. A gente estava no set com um bando de caras sem noção. Sem a mínima noção (risos). Domingo: Lembro que um dia o Chad apareceu, foi logo no início dos ensaios, ele entrou com o chapéu inclinado para o lado e o trompete. Ele entra na sala silenciosamente, de um jeito muito elegante. E eu não sei se é o Cutler em mim também, mas aí eu falei algo do tipo, ‘Oh, então você acha que vai entrar aqui e não vai falar com ninguém? Você chega aqui e não fala com ninguém?’ (risos). Ele disse: ‘Ah, não, não!’. A gente tirava sarro desse jeito. Mas, a partir daí, ele fez questão de chegar todas as manhãs e dar um salve para os irmãos e mostrar respeito. Porque o sentimento era: não podemos ficar dentro das nossas próprias cabeças. Nós temos que entrar e nos entregar uns aos outros. E foi isso que fizemos.

Uma das principais questões apresentadas pelo filme é como você encontra seu lugar no mundo – como artista e cantora, mas também como uma pessoa negra na base de uma hierarquia racial rígida. Estou curioso para saber se havia elementos das histórias dos personagens que ressoaram em qualquer um de vocês, em suas próprias jornadas artísticas e profissionais.

Davis: Acho isso exaustivo. Acho mesmo. Acho muito necessário, mas exaustivo. Você está lutando para conquistar seu lugar. Você está lutando para ser vista. Você está lutando para ser ouvida. É sempre uma luta. E é uma luta pelas coisas mais simples que as outras pessoas ganham sem dar nada em troca. Meu grande problema é quando tenho que lutar por minha competência. Não suporto isso. Essa parte de mim é a parte que passou dez anos na escola de atuação, que fez todo aquele teatro, off-Broadway, Broadway, TV e tudo mais. E então você entra numa sala em Hollywood e vê que, quando você é uma pessoa negra, tem uma vida útil curta. É isso que me irrita. Não gosto quando as pessoas questionam minha capacidade. Mas sinto que é disto que tratam todas as peças de August: lutar por um lugar no mundo. E tem mais outra coisa: você não precisa ser rei ou rainha. Você não tem que ser alguém lá no alto. Ele infundiu importância nas nossas vidas, mesmo que não o tenhamos colocado nos livros de história. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Uma nação dilacerada pela violência racial, uma indústria com histórico de exploração da cultura negra, executivos brancos querendo se passar por aliados e artistas negros no centro de tudo, lutando com um sistema que os cumprimentava com uma mão e limpava seus bolsos com a outra.

A história de Ma Rainey’s Black Bottom, a aclamada peça de 1982 de August Wilson sobre o orgulho negro, o poder dos brancos e o blues da Chicago de 1927, é tão incendiária hoje quanto no dia em que foi escrita. Uma nova adaptação para o cinema na Netflix (A Voz Suprema do Blues) revive a narrativa histórica de Wilson num tempo contemporâneo em que muito mudou – e muito pouco mudou.

Gravação. Viola Davis e Chadwick Boseman em ação, sob o comando do diretor George C. Wolf Foto: DAVID LEE/NETFLIX

Segunda obra das dez peças de seu Ciclo do Século Americano, no qual narra a experiência negra em cada década do século 20, Rainey ganhou três Tonys por sua edição original na Broadway. A adaptação para o cinema já é candidata a prêmios para o ano que vem, graças a uma atuação marcante de Viola Davis e uma aparição poderosa de Chadwick Boseman, em seu último papel no cinema antes de morrer de câncer, em agosto.

Davis interpreta Ma, uma artista indomável baseada na vida real da “Mãe do Blues”, cujo estrelato sem precedentes a levou dos shows nas tendas de Barnesville, Geórgia, a uma sessão de gravação em Chicago. Os homens brancos que supervisionam a sessão, com cifrões dançando nas cabeças, temem e respeitam Ma, assim como todas as outras pessoas de sua órbita gravitacional, entre elas sua namorada, Dussie Mae (Taylour Paige) e o experiente quarteto de músicos de apoio: Levee (Boseman), Cutler (Colman Domingo), Toledo (Glynn Turman) e Slow Drag (Michael Potts). Mas, quando as ambições de carreira de Levee o colocam em confronto com o grupo, sua frágil infraestrutura ameaça implodir.

George C. Wolfe, vencedor do Tony (Angels in America), dirigiu o filme a partir de um roteiro adaptado por Ruben Santiago-Hudson. Numa recente mesa-redonda por chamada de vídeo, Wolfe, Davis, Domingo, Turman e Potts discutiram o trabalho com Boseman, o poderoso legado de Rainey e a afirmação de seu valor num mundo construído sobre sua desvalorização. Estes são alguns trechos editados (e sem spoilers) de nossa conversa.

Última atuação. Chadwick Boseman morreu em agosto Foto: NETFLIX

O filme é dedicado a Chadwick Boseman, que tem uma atuação inesquecível como Levee. Quais são suas memórias de trabalhar com ele? O que ele trouxe para o filme que vocês viram como seus colaboradores e que nós, como espectadores, talvez não consigamos ver?

George C. Wolfe: Eu me lembro de uma vez, quando a banda estava só esperando no ensaio, ele começou a se lançar a um de seus monólogos finais. Tudo estava muito casual. Aí, num certo momento, não era mais casual – foi um momento totalmente engajado, cheio de energia, intensidade e verdade. Só me lembro de ter pensado: “Oh, é agora que vamos embarcar?”. E ele embarcou. Estávamos todos metade personagem e metade quem éramos, e então, naquele momento, a metade personagem assumiu o controle. E foi um negócio glorioso. Glynn Turman: Eu adorava o jeito como ele tinha seu trompete sempre por perto. Ele estava sempre fazendo alguma coisa com o instrumento, se familiarizando com ele, descobrindo a maneira como um músico e seu instrumento se tornam uma coisa só. Sempre que ele o pegava, estava na posição certa. Sempre que o deixava em algum lugar, estava na posição certa. Sempre que o colocava na boca, estava na posição certa. Ele se tornou um músico. Foi maravilhoso testemunhar isso. Todos nós meio que pegamos essa deixa para não ficarmos para trás, é uma coisa que os atores sempre fazem. Colman Domingo: É verdade. Wolfe: Quem? Nós aqui? Fiquei confuso (risos). 

Eu fico me perguntando, quando vocês olham para a atuação dele agora ou quando vocês assistem ao filme, ela é diferente para algum de vocês, por causa do falecimento? O significado dessa atuação mudou para vocês, de alguma maneira?

Domingo: Com certeza. Eu assisti outra noite e ouvi a linguagem de Chad de um jeito diferente. Você vê sua força e seu humor. Fiquei com lágrimas nos olhos desde o começo, por saber o que sabemos agora. E sabendo que estávamos todos bem saudáveis e estávamos fazendo um trabalho incrível, dando um passo à frente e enfrentando a linguagem de August. Este cara estava enfrentando uma outra luta enorme em cima de tudo isso. Não sei como ele conseguiu. Fiquei pensando comigo mesmo por uns bons 15 minutos depois de assistir ao filme e chorei um pouco, principalmente quando vi a dedicatória. Aí me bateu de verdade que ele não está mais conosco. Eu sabia que ele não estava aqui, mas ver a dedicatória escrita na tela meio que acabou comigo. Viola Davis: Tinha alguma coisa transcendente na atuação do Chad – e precisava ter mesmo. É um homem que está furioso com Deus, que perdeu até mesmo sua fé. Então (Boseman) tem que ir até o limite da esperança, da morte e da vida para fazer esse personagem funcionar. Claro, você olha para trás e vê que é o lugar onde ele próprio estava. É o que sempre digo: um carpinteiro, ou qualquer outra pessoa que trabalhe, essas pessoas precisam de certas ferramentas para criar. Nossa ferramenta somos nós. Temos que usar a nós mesmos. Não há como juntar tudo o que você está passando e deixar no quarto do hotel. Você tem que trazer isso com você e precisa de permissão para fazer isso. E ele fez isso, fez mesmo.

Ma Rainey. Viola Davis no papel da cantora indomável Foto: NETFLIX

George e Viola, ‘Ma Rainey’s Black Bottom’ é a única peça do ‘Ciclo do Século Americano’ de August Wilson que é inspirada numa figura pública da vida real. Por que você acha que a história dela foi propícia para o teatro?

Wolfe: Acho que uma das razões pelas quais August se sentiu atraído por ela é que ela vivia fora das regras. E quando alguém vive fora das regras, fica muito claro quais são as regras. Eu amo que ela sempre luta a luta, sem pensar nas consequências. E luta a luta porque é o que deve fazer. Ela me lembra... minha avó era assim. Se você fosse uma mulher negra e ficasse esperando que alguém reconhecesse seu poder, isso nunca iria acontecer. Então você tinha que reivindicar seu poder. Ela tem aquela qualidade que todo mundo que é artista tem que desenvolver e ponto final. E, se você é uma artista negra, ainda mais. Esta é a verdade e este é o meu talento, e isto é o que estou disposta a fazer e isto é o que não estou disposta a fazer. Acho que ela viveu sua vida muito puramente assim. E se você situar tudo isso em 1927, você vai ter muito drama, porque o mundo não está reconhecendo nada disso. Davis: Uma das coisas que adoro em August é que ele nos dá uma coisa que não tínhamos em muitas narrativas, principalmente nos filmes: autonomia. Sempre somos mostrados pelo filtro de um olhar branco. É como Toni Morrison fala sobre O Homem Invisível, de Ralph Ellison. Ela fica tipo, “invisível para quem?”. August nos define de um jeito particular. Se você perguntar a qualquer um de nós que estamos aqui nesta teleconferência por Zoom se conhecemos alguém como Ma Rainey, que podia acabar com você na quinta e ir à igreja no domingo, que não pedia desculpas por seu próprio valor, você vai ver que nós crescemos com pessoas assim. E com certeza acho que é um ótimo começo para uma narrativa, ter uma mulher que era conhecida por sua autonomia, que não abria mão de seu valor, e os homens que estavam ao seu redor.

Glynn, Colman e Michael,grande parte da eletricidadedo filme vem das interações entre os rapazes da banda. Existe uma espécie de jocosidade e camaradagem entre vocês, mas também existe uma corrente de tensão e rivalidade. Falem um pouco sobre como vocês trabalharam juntos para criar essa dinâmica.

Turman: Começa de um ponto em que realmente podemos desfrutar da companhia um do outro. Acho que jantamos uma noite depois do ensaio, todos nós saímos logo depois de nos conhecermos. Nossa amizade foi construída em cima dessa base. Assim como na vida real, as dores e o desconforto vêm do quão bem vocês se conhecem, porque as pessoas que você conhece são as únicas que podem realmente chegar até você. Então, todos sofremos muito nisso de tentar nos conhecer dentro do prazo que tínhamos. Assim, ficamos à vontade zoando, xingando e falando bobagem. E isso aconteceu na tela e fora dela (risos). Michael Potts: A zoeira não acabava. A gente estava no set com um bando de caras sem noção. Sem a mínima noção (risos). Domingo: Lembro que um dia o Chad apareceu, foi logo no início dos ensaios, ele entrou com o chapéu inclinado para o lado e o trompete. Ele entra na sala silenciosamente, de um jeito muito elegante. E eu não sei se é o Cutler em mim também, mas aí eu falei algo do tipo, ‘Oh, então você acha que vai entrar aqui e não vai falar com ninguém? Você chega aqui e não fala com ninguém?’ (risos). Ele disse: ‘Ah, não, não!’. A gente tirava sarro desse jeito. Mas, a partir daí, ele fez questão de chegar todas as manhãs e dar um salve para os irmãos e mostrar respeito. Porque o sentimento era: não podemos ficar dentro das nossas próprias cabeças. Nós temos que entrar e nos entregar uns aos outros. E foi isso que fizemos.

Uma das principais questões apresentadas pelo filme é como você encontra seu lugar no mundo – como artista e cantora, mas também como uma pessoa negra na base de uma hierarquia racial rígida. Estou curioso para saber se havia elementos das histórias dos personagens que ressoaram em qualquer um de vocês, em suas próprias jornadas artísticas e profissionais.

Davis: Acho isso exaustivo. Acho mesmo. Acho muito necessário, mas exaustivo. Você está lutando para conquistar seu lugar. Você está lutando para ser vista. Você está lutando para ser ouvida. É sempre uma luta. E é uma luta pelas coisas mais simples que as outras pessoas ganham sem dar nada em troca. Meu grande problema é quando tenho que lutar por minha competência. Não suporto isso. Essa parte de mim é a parte que passou dez anos na escola de atuação, que fez todo aquele teatro, off-Broadway, Broadway, TV e tudo mais. E então você entra numa sala em Hollywood e vê que, quando você é uma pessoa negra, tem uma vida útil curta. É isso que me irrita. Não gosto quando as pessoas questionam minha capacidade. Mas sinto que é disto que tratam todas as peças de August: lutar por um lugar no mundo. E tem mais outra coisa: você não precisa ser rei ou rainha. Você não tem que ser alguém lá no alto. Ele infundiu importância nas nossas vidas, mesmo que não o tenhamos colocado nos livros de história. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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