Em 'As Mil e Uma Noites', Miguel Gomes repensa a identidade portuguesa


Os três volumes do filme estão em cartaz em São Paulo

Por Luiz Carlos Merten

No vasto mosaico de histórias criado por Miguel Gomes para refletir os efeitos da crise econômica, política e social em Portugal, no começo da década, cada espectador é livre para escolher as que mais o tocam, ou interessam. Se não for a unanimidade, com certeza uma das melhores será As Lágrimas da Juíza, no segundo volume da trilogia As Mil e Uma Noites. Nessas últimas horas de 2016, nada mais importante que destacar as estreias, na quinta, 29, dos volumes justamente 2 e 3, O Desolado e O Encantado. A eles, o Belas Artes acrescenta As Mil e Uma Noites Volume 1 – O Inquieto, para que o público tenha, na tela, a integralidade da fábula orquestrada pelo grande autor português.

Curioso país, esse Portugal. Encravado na ponta da Europa, pequenino, dele saíram os navegantes para a grande aventura do descobrimento. Portugal produziu grandes artistas – escritores como Camões e Eça de Queiroz, cineastas como Manoel de Oliveira. Esse último criou uma forma particular de fazer cinema, para expressar a ‘saudade’, esse sentimento único que corrói a alma do português. Ainda jovem – nasceu em Lisboa, em 1972 –, Gomes já é autor de uma obra consolidada. Ao longo de 12 anos, desde 2004, veio esculpindo A Cara Que Mereces, Aquele Querido Mês de Agosto, Tabu e As Mil e Uma Noites, que estreou em Cannes ano passado. Tabu estreara – e foi premiado – em Berlim, em 2012.

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Isso significa que Miguel teve não mais do que três anos para criar sua trilogia com um total de 381 minutos. Três filmes com mais de duas horas, em média. Digamos que o autor os fizesse à razão de um por ano. Considerando-se o grau de elaboração e o empenho da produção, As Mil e Uma Noites até que saiu rápido. Os irmãos Gullane, produtores brasileiros – e paulistas – que colocaram dinheiro em Tabu, quiseram continuar parceiros de Gomes, mas não foi preciso. Após o sucesso de Tabu no circuito de arte, choveu apoio de quase todo o mundo para viabilizar esse projeto maluco que Gomes foi tecendo. Uma adaptação das 1001 Noites árabes. Você sabe, você lembra. Xerazade, casada com o califa que tem por hábito matar suas mulheres, seduz o marido com sua habilidade de narradora. Cada noite conta uma história que não termina e engata em outra. E, assim, ao longo de três anos tece uma teia de sedução.

Gomes buscou a fábula, mas com um objetivo realista – uma contradição, em termos. Os anos de 2013 e 14 foram complicados em Portugal. O país chegou à beira da bancarrota e os credores internacionais impuseram rígidos planos de austeridade. Nesse quadro, Miguel Gomes colocou-se na pele do diretor feito refém pela equipe e que, como Xerazade, conta histórias que refletem o país. A própria Xerazade ganha sua história no volume 3, e o seu envolvimento com um ‘loiro burro’ não é a menor das ironias do afresco de Gomes. Vamos por partes. Volume 1 – O Inquieto. Os contos são O Homem do Pau Feito, A História do Galo e do Fogo e O Banho dos Magníficos. Gomes experimenta – realismo mágico, SMS, personagens que quebram a quarta parede e contracenam com a câmera, crianças interpretando adultos, a tudo ele se permite.

Volume 2 O Desolado é ainda melhor. A Fuga de Simão ‘sem Tripas’, As Lágrimas da Juíza e Os Donos de Dixie são as novas histórias. Investem na crítica social. A primeira é narrada quase toda em off, mostrando a resistência desse homem solitário – e mau – que vira emblema da revolta de todo o povo português contra o governo português que assinou os acordos internacionais e jogou o orgulho nacional no solo. As Lágrimas da Juíza é uma obra-prima. A investigação de crimes insólitos leva todo o mundo perante a juíza. Há um gênio da lâmpada, uma vaca fugitiva que fala com uma oliveira. E Gomes ainda não esgotou seu tom fabular. Os Donos de Dixie é sobre a fauna que habita um prédio residencial. O mundo é visto através dos olhos de um protagonista canino – Dixie, que ganhou a Palme Dog em Cannes.

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De diferentes formas, os contos dos volumes 2 e 3 projetam a crise, o empobrecimento da população, a revolta contra a deterioração dos serviços públicos. Há (quase) uma mudança de tom em O Encantado, como se, no volume 3, depois de tanta crítica, Gomes tivesse sentido a necessidade de exaltar a capacidade de superação dos portugueses. De novo, mais três histórias – Xerazade, O Inebriante Canto dos Tentilhões e Floresta Quente. A primeira passa-se em Bagdá – há uma referência a Lisboa, do outro lado do mundo, e a cidade aparece de cabeça para baixo –, onde a narradora se envolve com o loiro burro Paddeman. Os atores Crista Alfaiate e Carloto Cotto, que fazem os papéis, são ótimos, e belos, com direito a MPB (Samba da Minha Terra) na trilha. A segunda mostra passarinheiros que desafiam a autoridade para que as aves cantem. A terceira é sobre uma chinesa que emigra para Portugal e se apaixona por um policial. A fábula das Mil e Uma Noites só pode se resolver pelo afeto.

ENTREVISTA, Miguel Gomes, diretor

‘Tudo começou com uma fala de minha filha’

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Convidado da Mostra, Miguel Gomes esteve em São Paulo no ano passado. Na feijoada, entre uma caipirinha e outra, conversou com o repórter.

É um projeto muito grande. Como surgiu?

Minha filha, que hoje tem 9 anos, tinha 5. Ela me pediu para comprar determinada coisa. Disse que não ia gastar dinheiro com bobagem. Ela retrucou – “Sei, é a crise.” E eu fiquei a pensar como uma criança já conhecia a palavra. Me veio esse desejo de fazer um filme para superar a crise. Só podia ser uma fábula. E foi assim que me voltei para As Mil e Uma Noites. Mas era um risco, porque é um livro muito selvagem.

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Um aspecto muito interessante é que você dá voz aos animais. Por quê?

Pois é a fábula. Penses em La Fontaine. No primeiro volume, o galo vai parar no tribunal porque tenta falar no meio da noite e ninguém quer ouvir. No terceiro volume, essa sociedade secreta desafia a autoridade, porque o que faz é proibido, para ouvir os pássaros. Então, tenho a impressão de que, para lá da crise, o filme tem um bocadinho de esperança, e não sei se isso é bom ou mau.

No vasto mosaico de histórias criado por Miguel Gomes para refletir os efeitos da crise econômica, política e social em Portugal, no começo da década, cada espectador é livre para escolher as que mais o tocam, ou interessam. Se não for a unanimidade, com certeza uma das melhores será As Lágrimas da Juíza, no segundo volume da trilogia As Mil e Uma Noites. Nessas últimas horas de 2016, nada mais importante que destacar as estreias, na quinta, 29, dos volumes justamente 2 e 3, O Desolado e O Encantado. A eles, o Belas Artes acrescenta As Mil e Uma Noites Volume 1 – O Inquieto, para que o público tenha, na tela, a integralidade da fábula orquestrada pelo grande autor português.

Curioso país, esse Portugal. Encravado na ponta da Europa, pequenino, dele saíram os navegantes para a grande aventura do descobrimento. Portugal produziu grandes artistas – escritores como Camões e Eça de Queiroz, cineastas como Manoel de Oliveira. Esse último criou uma forma particular de fazer cinema, para expressar a ‘saudade’, esse sentimento único que corrói a alma do português. Ainda jovem – nasceu em Lisboa, em 1972 –, Gomes já é autor de uma obra consolidada. Ao longo de 12 anos, desde 2004, veio esculpindo A Cara Que Mereces, Aquele Querido Mês de Agosto, Tabu e As Mil e Uma Noites, que estreou em Cannes ano passado. Tabu estreara – e foi premiado – em Berlim, em 2012.

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Isso significa que Miguel teve não mais do que três anos para criar sua trilogia com um total de 381 minutos. Três filmes com mais de duas horas, em média. Digamos que o autor os fizesse à razão de um por ano. Considerando-se o grau de elaboração e o empenho da produção, As Mil e Uma Noites até que saiu rápido. Os irmãos Gullane, produtores brasileiros – e paulistas – que colocaram dinheiro em Tabu, quiseram continuar parceiros de Gomes, mas não foi preciso. Após o sucesso de Tabu no circuito de arte, choveu apoio de quase todo o mundo para viabilizar esse projeto maluco que Gomes foi tecendo. Uma adaptação das 1001 Noites árabes. Você sabe, você lembra. Xerazade, casada com o califa que tem por hábito matar suas mulheres, seduz o marido com sua habilidade de narradora. Cada noite conta uma história que não termina e engata em outra. E, assim, ao longo de três anos tece uma teia de sedução.

Gomes buscou a fábula, mas com um objetivo realista – uma contradição, em termos. Os anos de 2013 e 14 foram complicados em Portugal. O país chegou à beira da bancarrota e os credores internacionais impuseram rígidos planos de austeridade. Nesse quadro, Miguel Gomes colocou-se na pele do diretor feito refém pela equipe e que, como Xerazade, conta histórias que refletem o país. A própria Xerazade ganha sua história no volume 3, e o seu envolvimento com um ‘loiro burro’ não é a menor das ironias do afresco de Gomes. Vamos por partes. Volume 1 – O Inquieto. Os contos são O Homem do Pau Feito, A História do Galo e do Fogo e O Banho dos Magníficos. Gomes experimenta – realismo mágico, SMS, personagens que quebram a quarta parede e contracenam com a câmera, crianças interpretando adultos, a tudo ele se permite.

Volume 2 O Desolado é ainda melhor. A Fuga de Simão ‘sem Tripas’, As Lágrimas da Juíza e Os Donos de Dixie são as novas histórias. Investem na crítica social. A primeira é narrada quase toda em off, mostrando a resistência desse homem solitário – e mau – que vira emblema da revolta de todo o povo português contra o governo português que assinou os acordos internacionais e jogou o orgulho nacional no solo. As Lágrimas da Juíza é uma obra-prima. A investigação de crimes insólitos leva todo o mundo perante a juíza. Há um gênio da lâmpada, uma vaca fugitiva que fala com uma oliveira. E Gomes ainda não esgotou seu tom fabular. Os Donos de Dixie é sobre a fauna que habita um prédio residencial. O mundo é visto através dos olhos de um protagonista canino – Dixie, que ganhou a Palme Dog em Cannes.

De diferentes formas, os contos dos volumes 2 e 3 projetam a crise, o empobrecimento da população, a revolta contra a deterioração dos serviços públicos. Há (quase) uma mudança de tom em O Encantado, como se, no volume 3, depois de tanta crítica, Gomes tivesse sentido a necessidade de exaltar a capacidade de superação dos portugueses. De novo, mais três histórias – Xerazade, O Inebriante Canto dos Tentilhões e Floresta Quente. A primeira passa-se em Bagdá – há uma referência a Lisboa, do outro lado do mundo, e a cidade aparece de cabeça para baixo –, onde a narradora se envolve com o loiro burro Paddeman. Os atores Crista Alfaiate e Carloto Cotto, que fazem os papéis, são ótimos, e belos, com direito a MPB (Samba da Minha Terra) na trilha. A segunda mostra passarinheiros que desafiam a autoridade para que as aves cantem. A terceira é sobre uma chinesa que emigra para Portugal e se apaixona por um policial. A fábula das Mil e Uma Noites só pode se resolver pelo afeto.

ENTREVISTA, Miguel Gomes, diretor

‘Tudo começou com uma fala de minha filha’

Convidado da Mostra, Miguel Gomes esteve em São Paulo no ano passado. Na feijoada, entre uma caipirinha e outra, conversou com o repórter.

É um projeto muito grande. Como surgiu?

Minha filha, que hoje tem 9 anos, tinha 5. Ela me pediu para comprar determinada coisa. Disse que não ia gastar dinheiro com bobagem. Ela retrucou – “Sei, é a crise.” E eu fiquei a pensar como uma criança já conhecia a palavra. Me veio esse desejo de fazer um filme para superar a crise. Só podia ser uma fábula. E foi assim que me voltei para As Mil e Uma Noites. Mas era um risco, porque é um livro muito selvagem.

Um aspecto muito interessante é que você dá voz aos animais. Por quê?

Pois é a fábula. Penses em La Fontaine. No primeiro volume, o galo vai parar no tribunal porque tenta falar no meio da noite e ninguém quer ouvir. No terceiro volume, essa sociedade secreta desafia a autoridade, porque o que faz é proibido, para ouvir os pássaros. Então, tenho a impressão de que, para lá da crise, o filme tem um bocadinho de esperança, e não sei se isso é bom ou mau.

No vasto mosaico de histórias criado por Miguel Gomes para refletir os efeitos da crise econômica, política e social em Portugal, no começo da década, cada espectador é livre para escolher as que mais o tocam, ou interessam. Se não for a unanimidade, com certeza uma das melhores será As Lágrimas da Juíza, no segundo volume da trilogia As Mil e Uma Noites. Nessas últimas horas de 2016, nada mais importante que destacar as estreias, na quinta, 29, dos volumes justamente 2 e 3, O Desolado e O Encantado. A eles, o Belas Artes acrescenta As Mil e Uma Noites Volume 1 – O Inquieto, para que o público tenha, na tela, a integralidade da fábula orquestrada pelo grande autor português.

Curioso país, esse Portugal. Encravado na ponta da Europa, pequenino, dele saíram os navegantes para a grande aventura do descobrimento. Portugal produziu grandes artistas – escritores como Camões e Eça de Queiroz, cineastas como Manoel de Oliveira. Esse último criou uma forma particular de fazer cinema, para expressar a ‘saudade’, esse sentimento único que corrói a alma do português. Ainda jovem – nasceu em Lisboa, em 1972 –, Gomes já é autor de uma obra consolidada. Ao longo de 12 anos, desde 2004, veio esculpindo A Cara Que Mereces, Aquele Querido Mês de Agosto, Tabu e As Mil e Uma Noites, que estreou em Cannes ano passado. Tabu estreara – e foi premiado – em Berlim, em 2012.

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Isso significa que Miguel teve não mais do que três anos para criar sua trilogia com um total de 381 minutos. Três filmes com mais de duas horas, em média. Digamos que o autor os fizesse à razão de um por ano. Considerando-se o grau de elaboração e o empenho da produção, As Mil e Uma Noites até que saiu rápido. Os irmãos Gullane, produtores brasileiros – e paulistas – que colocaram dinheiro em Tabu, quiseram continuar parceiros de Gomes, mas não foi preciso. Após o sucesso de Tabu no circuito de arte, choveu apoio de quase todo o mundo para viabilizar esse projeto maluco que Gomes foi tecendo. Uma adaptação das 1001 Noites árabes. Você sabe, você lembra. Xerazade, casada com o califa que tem por hábito matar suas mulheres, seduz o marido com sua habilidade de narradora. Cada noite conta uma história que não termina e engata em outra. E, assim, ao longo de três anos tece uma teia de sedução.

Gomes buscou a fábula, mas com um objetivo realista – uma contradição, em termos. Os anos de 2013 e 14 foram complicados em Portugal. O país chegou à beira da bancarrota e os credores internacionais impuseram rígidos planos de austeridade. Nesse quadro, Miguel Gomes colocou-se na pele do diretor feito refém pela equipe e que, como Xerazade, conta histórias que refletem o país. A própria Xerazade ganha sua história no volume 3, e o seu envolvimento com um ‘loiro burro’ não é a menor das ironias do afresco de Gomes. Vamos por partes. Volume 1 – O Inquieto. Os contos são O Homem do Pau Feito, A História do Galo e do Fogo e O Banho dos Magníficos. Gomes experimenta – realismo mágico, SMS, personagens que quebram a quarta parede e contracenam com a câmera, crianças interpretando adultos, a tudo ele se permite.

Volume 2 O Desolado é ainda melhor. A Fuga de Simão ‘sem Tripas’, As Lágrimas da Juíza e Os Donos de Dixie são as novas histórias. Investem na crítica social. A primeira é narrada quase toda em off, mostrando a resistência desse homem solitário – e mau – que vira emblema da revolta de todo o povo português contra o governo português que assinou os acordos internacionais e jogou o orgulho nacional no solo. As Lágrimas da Juíza é uma obra-prima. A investigação de crimes insólitos leva todo o mundo perante a juíza. Há um gênio da lâmpada, uma vaca fugitiva que fala com uma oliveira. E Gomes ainda não esgotou seu tom fabular. Os Donos de Dixie é sobre a fauna que habita um prédio residencial. O mundo é visto através dos olhos de um protagonista canino – Dixie, que ganhou a Palme Dog em Cannes.

De diferentes formas, os contos dos volumes 2 e 3 projetam a crise, o empobrecimento da população, a revolta contra a deterioração dos serviços públicos. Há (quase) uma mudança de tom em O Encantado, como se, no volume 3, depois de tanta crítica, Gomes tivesse sentido a necessidade de exaltar a capacidade de superação dos portugueses. De novo, mais três histórias – Xerazade, O Inebriante Canto dos Tentilhões e Floresta Quente. A primeira passa-se em Bagdá – há uma referência a Lisboa, do outro lado do mundo, e a cidade aparece de cabeça para baixo –, onde a narradora se envolve com o loiro burro Paddeman. Os atores Crista Alfaiate e Carloto Cotto, que fazem os papéis, são ótimos, e belos, com direito a MPB (Samba da Minha Terra) na trilha. A segunda mostra passarinheiros que desafiam a autoridade para que as aves cantem. A terceira é sobre uma chinesa que emigra para Portugal e se apaixona por um policial. A fábula das Mil e Uma Noites só pode se resolver pelo afeto.

ENTREVISTA, Miguel Gomes, diretor

‘Tudo começou com uma fala de minha filha’

Convidado da Mostra, Miguel Gomes esteve em São Paulo no ano passado. Na feijoada, entre uma caipirinha e outra, conversou com o repórter.

É um projeto muito grande. Como surgiu?

Minha filha, que hoje tem 9 anos, tinha 5. Ela me pediu para comprar determinada coisa. Disse que não ia gastar dinheiro com bobagem. Ela retrucou – “Sei, é a crise.” E eu fiquei a pensar como uma criança já conhecia a palavra. Me veio esse desejo de fazer um filme para superar a crise. Só podia ser uma fábula. E foi assim que me voltei para As Mil e Uma Noites. Mas era um risco, porque é um livro muito selvagem.

Um aspecto muito interessante é que você dá voz aos animais. Por quê?

Pois é a fábula. Penses em La Fontaine. No primeiro volume, o galo vai parar no tribunal porque tenta falar no meio da noite e ninguém quer ouvir. No terceiro volume, essa sociedade secreta desafia a autoridade, porque o que faz é proibido, para ouvir os pássaros. Então, tenho a impressão de que, para lá da crise, o filme tem um bocadinho de esperança, e não sei se isso é bom ou mau.

No vasto mosaico de histórias criado por Miguel Gomes para refletir os efeitos da crise econômica, política e social em Portugal, no começo da década, cada espectador é livre para escolher as que mais o tocam, ou interessam. Se não for a unanimidade, com certeza uma das melhores será As Lágrimas da Juíza, no segundo volume da trilogia As Mil e Uma Noites. Nessas últimas horas de 2016, nada mais importante que destacar as estreias, na quinta, 29, dos volumes justamente 2 e 3, O Desolado e O Encantado. A eles, o Belas Artes acrescenta As Mil e Uma Noites Volume 1 – O Inquieto, para que o público tenha, na tela, a integralidade da fábula orquestrada pelo grande autor português.

Curioso país, esse Portugal. Encravado na ponta da Europa, pequenino, dele saíram os navegantes para a grande aventura do descobrimento. Portugal produziu grandes artistas – escritores como Camões e Eça de Queiroz, cineastas como Manoel de Oliveira. Esse último criou uma forma particular de fazer cinema, para expressar a ‘saudade’, esse sentimento único que corrói a alma do português. Ainda jovem – nasceu em Lisboa, em 1972 –, Gomes já é autor de uma obra consolidada. Ao longo de 12 anos, desde 2004, veio esculpindo A Cara Que Mereces, Aquele Querido Mês de Agosto, Tabu e As Mil e Uma Noites, que estreou em Cannes ano passado. Tabu estreara – e foi premiado – em Berlim, em 2012.

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Isso significa que Miguel teve não mais do que três anos para criar sua trilogia com um total de 381 minutos. Três filmes com mais de duas horas, em média. Digamos que o autor os fizesse à razão de um por ano. Considerando-se o grau de elaboração e o empenho da produção, As Mil e Uma Noites até que saiu rápido. Os irmãos Gullane, produtores brasileiros – e paulistas – que colocaram dinheiro em Tabu, quiseram continuar parceiros de Gomes, mas não foi preciso. Após o sucesso de Tabu no circuito de arte, choveu apoio de quase todo o mundo para viabilizar esse projeto maluco que Gomes foi tecendo. Uma adaptação das 1001 Noites árabes. Você sabe, você lembra. Xerazade, casada com o califa que tem por hábito matar suas mulheres, seduz o marido com sua habilidade de narradora. Cada noite conta uma história que não termina e engata em outra. E, assim, ao longo de três anos tece uma teia de sedução.

Gomes buscou a fábula, mas com um objetivo realista – uma contradição, em termos. Os anos de 2013 e 14 foram complicados em Portugal. O país chegou à beira da bancarrota e os credores internacionais impuseram rígidos planos de austeridade. Nesse quadro, Miguel Gomes colocou-se na pele do diretor feito refém pela equipe e que, como Xerazade, conta histórias que refletem o país. A própria Xerazade ganha sua história no volume 3, e o seu envolvimento com um ‘loiro burro’ não é a menor das ironias do afresco de Gomes. Vamos por partes. Volume 1 – O Inquieto. Os contos são O Homem do Pau Feito, A História do Galo e do Fogo e O Banho dos Magníficos. Gomes experimenta – realismo mágico, SMS, personagens que quebram a quarta parede e contracenam com a câmera, crianças interpretando adultos, a tudo ele se permite.

Volume 2 O Desolado é ainda melhor. A Fuga de Simão ‘sem Tripas’, As Lágrimas da Juíza e Os Donos de Dixie são as novas histórias. Investem na crítica social. A primeira é narrada quase toda em off, mostrando a resistência desse homem solitário – e mau – que vira emblema da revolta de todo o povo português contra o governo português que assinou os acordos internacionais e jogou o orgulho nacional no solo. As Lágrimas da Juíza é uma obra-prima. A investigação de crimes insólitos leva todo o mundo perante a juíza. Há um gênio da lâmpada, uma vaca fugitiva que fala com uma oliveira. E Gomes ainda não esgotou seu tom fabular. Os Donos de Dixie é sobre a fauna que habita um prédio residencial. O mundo é visto através dos olhos de um protagonista canino – Dixie, que ganhou a Palme Dog em Cannes.

De diferentes formas, os contos dos volumes 2 e 3 projetam a crise, o empobrecimento da população, a revolta contra a deterioração dos serviços públicos. Há (quase) uma mudança de tom em O Encantado, como se, no volume 3, depois de tanta crítica, Gomes tivesse sentido a necessidade de exaltar a capacidade de superação dos portugueses. De novo, mais três histórias – Xerazade, O Inebriante Canto dos Tentilhões e Floresta Quente. A primeira passa-se em Bagdá – há uma referência a Lisboa, do outro lado do mundo, e a cidade aparece de cabeça para baixo –, onde a narradora se envolve com o loiro burro Paddeman. Os atores Crista Alfaiate e Carloto Cotto, que fazem os papéis, são ótimos, e belos, com direito a MPB (Samba da Minha Terra) na trilha. A segunda mostra passarinheiros que desafiam a autoridade para que as aves cantem. A terceira é sobre uma chinesa que emigra para Portugal e se apaixona por um policial. A fábula das Mil e Uma Noites só pode se resolver pelo afeto.

ENTREVISTA, Miguel Gomes, diretor

‘Tudo começou com uma fala de minha filha’

Convidado da Mostra, Miguel Gomes esteve em São Paulo no ano passado. Na feijoada, entre uma caipirinha e outra, conversou com o repórter.

É um projeto muito grande. Como surgiu?

Minha filha, que hoje tem 9 anos, tinha 5. Ela me pediu para comprar determinada coisa. Disse que não ia gastar dinheiro com bobagem. Ela retrucou – “Sei, é a crise.” E eu fiquei a pensar como uma criança já conhecia a palavra. Me veio esse desejo de fazer um filme para superar a crise. Só podia ser uma fábula. E foi assim que me voltei para As Mil e Uma Noites. Mas era um risco, porque é um livro muito selvagem.

Um aspecto muito interessante é que você dá voz aos animais. Por quê?

Pois é a fábula. Penses em La Fontaine. No primeiro volume, o galo vai parar no tribunal porque tenta falar no meio da noite e ninguém quer ouvir. No terceiro volume, essa sociedade secreta desafia a autoridade, porque o que faz é proibido, para ouvir os pássaros. Então, tenho a impressão de que, para lá da crise, o filme tem um bocadinho de esperança, e não sei se isso é bom ou mau.

No vasto mosaico de histórias criado por Miguel Gomes para refletir os efeitos da crise econômica, política e social em Portugal, no começo da década, cada espectador é livre para escolher as que mais o tocam, ou interessam. Se não for a unanimidade, com certeza uma das melhores será As Lágrimas da Juíza, no segundo volume da trilogia As Mil e Uma Noites. Nessas últimas horas de 2016, nada mais importante que destacar as estreias, na quinta, 29, dos volumes justamente 2 e 3, O Desolado e O Encantado. A eles, o Belas Artes acrescenta As Mil e Uma Noites Volume 1 – O Inquieto, para que o público tenha, na tela, a integralidade da fábula orquestrada pelo grande autor português.

Curioso país, esse Portugal. Encravado na ponta da Europa, pequenino, dele saíram os navegantes para a grande aventura do descobrimento. Portugal produziu grandes artistas – escritores como Camões e Eça de Queiroz, cineastas como Manoel de Oliveira. Esse último criou uma forma particular de fazer cinema, para expressar a ‘saudade’, esse sentimento único que corrói a alma do português. Ainda jovem – nasceu em Lisboa, em 1972 –, Gomes já é autor de uma obra consolidada. Ao longo de 12 anos, desde 2004, veio esculpindo A Cara Que Mereces, Aquele Querido Mês de Agosto, Tabu e As Mil e Uma Noites, que estreou em Cannes ano passado. Tabu estreara – e foi premiado – em Berlim, em 2012.

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Isso significa que Miguel teve não mais do que três anos para criar sua trilogia com um total de 381 minutos. Três filmes com mais de duas horas, em média. Digamos que o autor os fizesse à razão de um por ano. Considerando-se o grau de elaboração e o empenho da produção, As Mil e Uma Noites até que saiu rápido. Os irmãos Gullane, produtores brasileiros – e paulistas – que colocaram dinheiro em Tabu, quiseram continuar parceiros de Gomes, mas não foi preciso. Após o sucesso de Tabu no circuito de arte, choveu apoio de quase todo o mundo para viabilizar esse projeto maluco que Gomes foi tecendo. Uma adaptação das 1001 Noites árabes. Você sabe, você lembra. Xerazade, casada com o califa que tem por hábito matar suas mulheres, seduz o marido com sua habilidade de narradora. Cada noite conta uma história que não termina e engata em outra. E, assim, ao longo de três anos tece uma teia de sedução.

Gomes buscou a fábula, mas com um objetivo realista – uma contradição, em termos. Os anos de 2013 e 14 foram complicados em Portugal. O país chegou à beira da bancarrota e os credores internacionais impuseram rígidos planos de austeridade. Nesse quadro, Miguel Gomes colocou-se na pele do diretor feito refém pela equipe e que, como Xerazade, conta histórias que refletem o país. A própria Xerazade ganha sua história no volume 3, e o seu envolvimento com um ‘loiro burro’ não é a menor das ironias do afresco de Gomes. Vamos por partes. Volume 1 – O Inquieto. Os contos são O Homem do Pau Feito, A História do Galo e do Fogo e O Banho dos Magníficos. Gomes experimenta – realismo mágico, SMS, personagens que quebram a quarta parede e contracenam com a câmera, crianças interpretando adultos, a tudo ele se permite.

Volume 2 O Desolado é ainda melhor. A Fuga de Simão ‘sem Tripas’, As Lágrimas da Juíza e Os Donos de Dixie são as novas histórias. Investem na crítica social. A primeira é narrada quase toda em off, mostrando a resistência desse homem solitário – e mau – que vira emblema da revolta de todo o povo português contra o governo português que assinou os acordos internacionais e jogou o orgulho nacional no solo. As Lágrimas da Juíza é uma obra-prima. A investigação de crimes insólitos leva todo o mundo perante a juíza. Há um gênio da lâmpada, uma vaca fugitiva que fala com uma oliveira. E Gomes ainda não esgotou seu tom fabular. Os Donos de Dixie é sobre a fauna que habita um prédio residencial. O mundo é visto através dos olhos de um protagonista canino – Dixie, que ganhou a Palme Dog em Cannes.

De diferentes formas, os contos dos volumes 2 e 3 projetam a crise, o empobrecimento da população, a revolta contra a deterioração dos serviços públicos. Há (quase) uma mudança de tom em O Encantado, como se, no volume 3, depois de tanta crítica, Gomes tivesse sentido a necessidade de exaltar a capacidade de superação dos portugueses. De novo, mais três histórias – Xerazade, O Inebriante Canto dos Tentilhões e Floresta Quente. A primeira passa-se em Bagdá – há uma referência a Lisboa, do outro lado do mundo, e a cidade aparece de cabeça para baixo –, onde a narradora se envolve com o loiro burro Paddeman. Os atores Crista Alfaiate e Carloto Cotto, que fazem os papéis, são ótimos, e belos, com direito a MPB (Samba da Minha Terra) na trilha. A segunda mostra passarinheiros que desafiam a autoridade para que as aves cantem. A terceira é sobre uma chinesa que emigra para Portugal e se apaixona por um policial. A fábula das Mil e Uma Noites só pode se resolver pelo afeto.

ENTREVISTA, Miguel Gomes, diretor

‘Tudo começou com uma fala de minha filha’

Convidado da Mostra, Miguel Gomes esteve em São Paulo no ano passado. Na feijoada, entre uma caipirinha e outra, conversou com o repórter.

É um projeto muito grande. Como surgiu?

Minha filha, que hoje tem 9 anos, tinha 5. Ela me pediu para comprar determinada coisa. Disse que não ia gastar dinheiro com bobagem. Ela retrucou – “Sei, é a crise.” E eu fiquei a pensar como uma criança já conhecia a palavra. Me veio esse desejo de fazer um filme para superar a crise. Só podia ser uma fábula. E foi assim que me voltei para As Mil e Uma Noites. Mas era um risco, porque é um livro muito selvagem.

Um aspecto muito interessante é que você dá voz aos animais. Por quê?

Pois é a fábula. Penses em La Fontaine. No primeiro volume, o galo vai parar no tribunal porque tenta falar no meio da noite e ninguém quer ouvir. No terceiro volume, essa sociedade secreta desafia a autoridade, porque o que faz é proibido, para ouvir os pássaros. Então, tenho a impressão de que, para lá da crise, o filme tem um bocadinho de esperança, e não sei se isso é bom ou mau.

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