Nova adaptação do romance Rebecca (1938), de Daphne du Maurier, está na Netflix. Conta a mesma história filmada por Hitchcock em 1940. Mas, em cores, não alcança a magia gótica conseguida pelo mestre em sua primeira produção nos Estados Unidos, sob a batuta implacável de David O. Selznick.
Na trama, a mocinha pobre, acompanhante de uma ricaça, conhece um milionário mais velho. E, em aparência, irremediavelmente triste. Estão em Montecarlo, no ambiente grã-fino da época. A Netflix teve o bom senso de não trazer a história para os dias atuais. Manteve-o como filme de época. Para quem não conhece a trama, lá vai um pitaco do seu início. O homem e a mocinha casam-se e, depois da lua de mel, vão para a propriedade dele, uma espécie de castelo inglês chamado Manderley. O homem era viúvo e o local é “assombrado” pela presença de Rebecca, sua primeira mulher, que morreu jovem. Não se trata de uma história de fantasmas convencional. Rebecca manifesta-se pelos objetos que tocou. Mas, sobretudo, pela lembrança deixada nas pessoas. Linda de morrer, simpática, inteligente, cativante, etc., Rebecca tinha todas as qualidades. Tinha os três Bs, segundo uma personagem: “breed, brain, beauty” – linhagem, cérebro, beleza. Daí merecer o subtítulo de “mulher inesquecível” da versão brasileira da obra. O romance é todo narrado em primeira pessoa pela protagonista. Ela entende bem sua desvantagem no confronto com uma mulher brilhante e que, ainda por cima, morreu jovem. Rebecca não envelhecerá jamais, não será confrontada pelo passar do tempo e por experiências dolorosas trazidas pela vida. Terá, para sempre, a aura da perfeição. A morte a protege de qualquer desgaste. Acontece, no entanto, uma reviravolta radical na trama (sobre a qual não falaremos, claro) e que dá novo sentido à história. A nova versão de Rebecca é caprichada, porém rotineira. Dirigida por Ben Wheatley, com Lily James como a mocinha que se casa com o milionário viúvo Maxim De Winter (Armie Hammer). A ótima Kristin Scott Thomas faz Mrs. Danvers, a ameaçadora governanta, guardiã feroz da memória de Rebecca. E Sam Riley interpreta Jack Favell, o cafajeste primo da defunta. É uma adaptação correta, bastante fiel ao livro. Mas sem brilho. Vale a pena ver, nem que seja para compará-la com a anterior. Já a de Hitchcock divide um pouco as opiniões de especialistas. Há quem a tenha na conta de um dos grandes filmes do mestre – o que não era opinião nem mesmo de Hitchcock, que a considerava um trabalho pouco autoral. Outros a consideram uma obra menor no conjunto de uma filmografia que tem obras-primas como Um Corpo que Cai e Janela Indiscreta. Revista, a versão de 1940 mostra inequívocas marcas registradas do diretor, além da sua clássica aparição em uma cena – esperando vez diante da cabine telefônica ocupada por Favell (George Sanders, na versão de 1940). Hitch tempera com seu humor sardônico várias sequências dessa história tétrica, por exemplo. No mais, o par central, interpretado por Joan Fontaine e Laurence Olivier, parece imbatível. A história dessa produção é bem conhecida. Convidado por Selznick, Hitchcock mudou-se para os Estados Unidos para filmar Titanic. Chegando, foi avisado de que o produtor mudara de ideia. Havia comprado os direitos do livro de Daphne du Maurier e queria Hitch para filmá-lo. Na famosa entrevista concedida a François Truffaut, o diretor diz simplesmente: “Não é um filme de Hitchcock”. Ele admite mesmo que há buracos no roteiro. Pontos fracos na narrativa, cuja consistência era muito prezada por Hitchcock, sempre preocupado em não levantar suspeitas do público sobre a verossimilhança interna da história. Essa versão procura ser fiel ao livro. Por um motivo muito simples – o romance de Daphne du Maurier era um best-seller e o esperto Selznick (produtor de ...E o Vento Levou) temia decepcionar os leitores caso mudasse a história. A produção ganhou o Oscar de melhor filme em 1941, mas Hitchcock não levou a estatueta de melhor diretor. Em seu livro de 1957 sobre Hitchcock, Claude Chabrol e Eric Rohmer lembram que o diretor manteve escrupulosamente o texto, mas deu outro espírito à obra. Esse seu primeiro filme americano seria já a cristalização do estilo que o tornaria famoso e queridinho para várias gerações de críticos e cinéfilos. Para os então jovens críticos dos Cahiers du Cinéma, Rebecca foi esse momento decisivo para Hitchcock. O “Hitchcock touch”, antes simples traço reconhecível, converte-se agora em visão de mundo. Daí a tensão sexual que emana do filme, sempre implícita. E a ambiguidade inquietante de seu desfecho, talvez menos uma falha de roteiro que a evidência do abismo do espírito humano e sua culpa fundamental. Há ainda outra curiosidade sobre a obra literária e sua história. Rebecca, o sucesso de Daphne du Maurier, seria plágio de um romance da escritora brasileira Carolina Nabuco (1890-1981). A Sucessora, de 1934, conta uma história muito parecida. Marina, uma jovem simples, casa-se com o viúvo Roberto Steen e muda-se para a mansão dele, no Rio de Janeiro, onde é assombrada pela memória de Alice, a primeira mulher de Roberto. O livro virou novela na Globo em 1978, quando a hipótese do plágio voltou à tona. À época com 88 anos, Carolina, filha de Joaquim Nabuco, disse ter sido contatada por um advogado norte-americano. Esse lhe propôs uma boa quantia para que a escritora brasileira assinasse um documento dizendo que as semelhanças dos dois livros seriam apenas “coincidências”. Carolina recusou a oferta. O romance está em catálogo pela Editora Instante.