Em livro, os irmãos Dardenne explicam seus filmes, roteiros e processo criativo


Os diretores Luc e Jean Pierre falam ao ‘Estadão’ sobre obra, buscada como leitura obrigatória

Por Rodrigo Fonseca
Atualização:

Badalada atração na livraria da Cinemateca Francesa, Au Dos De Nos Images III (2014-2022) virou leitura de cabeceira de cinéfilos e estudantes afoitos por entender o realismo - expresso na tela em forma de contos morais - de seus autores, o realizador belga Luc Dardenne, de 68 anos, e seu irmão mais velho, Jean-Pierre, de 71.

O livro é o terceiro volume de um projeto literário que inclui uma parte ensaística e outra dedicada a seus roteiros, que os ganhadores de duas Palmas de Ouro de Cannes - a primeira por Rosetta, em 1999, e a segunda por A Criança, em 2005 - iniciaram em 2008, continuaram em 2015 e completaram (só parcialmente) no fim de 2022. Luc assina cada volume sozinho, pois é o responsável por textos curtinhos, parecidos com diários de filmagem, em torno de seu processo criativo.

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Os irmãos e cineastas Jean-Pierre e Luc Dardenne Foto: Piroschka Van De Wouw/ Reuters

Não por acaso, o título dessa trilogia em papel pode ser traduzido como No Verso de Nossas Imagens. Esse terceiro e mais recente volume inclui anotações sobre o filme mais recente deles, Tori e Lokita, ganhador do Prix du 75ème na última edição de Cannes, em maio do ano passado.

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“A própria Bélgica não abre todo o seu circuito para exibir a gente. No sul do país, por exemplo, a gente não chega. Nossa indústria ainda é algo artesanal, adapta-se ao pouco dinheiro que a gente consegue com fundos. Mas é importante dizer que alguns desses fundos, da Comissão Regional de Cultura belga, só passaram a existir depois de Rosetta. A gente filma com um orçamento de cerca de € 5 milhões, e dependemos de festivais, como Cannes, onde nossa história se fez, para que o mundo olhe para a gente”, disse Luc ao Estadão, num encontro em Paris, durante o 25.º Rendez-Vous Avec Le Cinéma Français, fórum anual de promoção de longas-metragens europeus.

Sempre ao lado dele, Jean-Pierre completava as reflexões do irmão mais novo. “As limitações nos levaram a extrair cinema da realidade, daí filmarmos com luz natural, com equipe enxuta, deixando que o enquadramento encontre a verdade de que precisamos.”

PRODUÇÃO

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Além de filmar, os dois produzem, e muito, filmes próprios e de outras vozes autorais, como Patricia Mazuy, com quem trabalharam no ano passado no cultuado Boliche Saturno, exibido na Mostra de São Paulo e que concorreu ao Leopardo de Ouro em Locarno. A produtora deles, Les Films du Fleuve, virou grife e está debruçada hoje sobre um ambicioso projeto de animação pilotado pelo ganhador do Oscar Michel Hazanavicius (de O Artista) chamado La Plus Précieuse Des Marchandises, baseado na prosa de Jean-Claude Grumberg sobre a 2.ª Guerra.

Cena do filme Rosetta, dos irmãos Dardenne Foto: Touza Productions
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“Nossa ideia é favorecer a diversidade do cinema europeu e enriquecer os olhares do mundo com um cinema avesso a rótulos, dedicado a entender as inquietudes da condição humana”, define Luc, que escreve sobre detalhes bem corriqueiros do comportamento de suas atrizes e de seus atores (a recorrência de chiclete nos sets, por exemplo), em Au Dos De Nos Images III.

ADJETIVAÇÃO

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Em suas páginas, estão os scripts que escreveu com o irmão, como O Garoto da Bicicleta (Grande Prêmio do Júri em Cannes, em 2011). “Aprendi a apreciar quando falam que nós dirigimos ‘contos morais’, pois esse é um rótulo novo, ainda não desgastado pela mídia, para algo secular, que é a preocupação com a condição social e com situações que façam da submissão, seja econômica ou religiosa, um cabresto, uma forma de controle. A preocupação que meu irmão e eu temos ao contar histórias é não estilizar, de forma alguma, para fugir do risco da adjetivação.”

Cena do filme O Garoto da Bicicleta, de Jean-Pierre e Luc Dardenne  Foto: Les Films du Fleuve
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Há um adjetivo, contudo, do qual Tori et Lokita, o longa mais recente deles, não pode fugir: áspero. Leveza nunca foi a homilia da dupla, mas o recente O Jovem Ahmed - que rendeu a eles o Prêmio de Melhor Direção em Cannes, em 2019 - ou Dois Dias, Uma Noite - pelo qual Marion Cotillard recebeu uma indicação ao Oscar, em 2015 - eram mais arejados, abertos a conciliações.

NOVO FILME

Mas o novo filme deles - acerca do modo como a Europa lida com imigrantes - não dá licença alguma à esperança. É uma narrativa de precisão cirúrgica, tensa em seu compacto espaço de tela - 1h28 que passam redondinhos. Seu novo exercício autoral é uma radiografia da desumanidade que circunda os estrangeiros egressos da África em solo belga, sob o fantasma do racismo e da exclusão. É um longa pontuado de amargura sobre um casal de irmãos - a adolescente Lokita, encarnada por Joely Mbundu, e um guri, vivido por Pablo Schils - que se aproxima de contraventores para conseguir os meios (leiam-se € 11 mil) para custear seus documentos e ficar em terras belgas.

“Nossa ideia é favorecer a diversidade do cinema, com um cinema avesso a rótulos, dedicado a entender as inquietudes da condição humana”

Luc Dardenne

“Cumplicidade é a palavra essencial a essa história, que só foi viável depois de muitas repetições com os dois. Joely é uma estrela nata, mas Pablo tinha dificuldades de se soltar”, explica Luc. “Repetimos muitas vezes, com ambos, sozinhos, até que o elenco adulto entrou e deu nova camada de sentido, e de perigo, à trama.”

“Foi um trabalho meticuloso, até que os dois se desembaraçassem”, conta Jean-Pierre. “O ponto central era que eles observassem o mundo e a si mesmos. É como a gente faz. É o que a gente convida os espectadores a fazerem.”

Badalada atração na livraria da Cinemateca Francesa, Au Dos De Nos Images III (2014-2022) virou leitura de cabeceira de cinéfilos e estudantes afoitos por entender o realismo - expresso na tela em forma de contos morais - de seus autores, o realizador belga Luc Dardenne, de 68 anos, e seu irmão mais velho, Jean-Pierre, de 71.

O livro é o terceiro volume de um projeto literário que inclui uma parte ensaística e outra dedicada a seus roteiros, que os ganhadores de duas Palmas de Ouro de Cannes - a primeira por Rosetta, em 1999, e a segunda por A Criança, em 2005 - iniciaram em 2008, continuaram em 2015 e completaram (só parcialmente) no fim de 2022. Luc assina cada volume sozinho, pois é o responsável por textos curtinhos, parecidos com diários de filmagem, em torno de seu processo criativo.

Os irmãos e cineastas Jean-Pierre e Luc Dardenne Foto: Piroschka Van De Wouw/ Reuters

Não por acaso, o título dessa trilogia em papel pode ser traduzido como No Verso de Nossas Imagens. Esse terceiro e mais recente volume inclui anotações sobre o filme mais recente deles, Tori e Lokita, ganhador do Prix du 75ème na última edição de Cannes, em maio do ano passado.

“A própria Bélgica não abre todo o seu circuito para exibir a gente. No sul do país, por exemplo, a gente não chega. Nossa indústria ainda é algo artesanal, adapta-se ao pouco dinheiro que a gente consegue com fundos. Mas é importante dizer que alguns desses fundos, da Comissão Regional de Cultura belga, só passaram a existir depois de Rosetta. A gente filma com um orçamento de cerca de € 5 milhões, e dependemos de festivais, como Cannes, onde nossa história se fez, para que o mundo olhe para a gente”, disse Luc ao Estadão, num encontro em Paris, durante o 25.º Rendez-Vous Avec Le Cinéma Français, fórum anual de promoção de longas-metragens europeus.

Sempre ao lado dele, Jean-Pierre completava as reflexões do irmão mais novo. “As limitações nos levaram a extrair cinema da realidade, daí filmarmos com luz natural, com equipe enxuta, deixando que o enquadramento encontre a verdade de que precisamos.”

PRODUÇÃO

Além de filmar, os dois produzem, e muito, filmes próprios e de outras vozes autorais, como Patricia Mazuy, com quem trabalharam no ano passado no cultuado Boliche Saturno, exibido na Mostra de São Paulo e que concorreu ao Leopardo de Ouro em Locarno. A produtora deles, Les Films du Fleuve, virou grife e está debruçada hoje sobre um ambicioso projeto de animação pilotado pelo ganhador do Oscar Michel Hazanavicius (de O Artista) chamado La Plus Précieuse Des Marchandises, baseado na prosa de Jean-Claude Grumberg sobre a 2.ª Guerra.

Cena do filme Rosetta, dos irmãos Dardenne Foto: Touza Productions

“Nossa ideia é favorecer a diversidade do cinema europeu e enriquecer os olhares do mundo com um cinema avesso a rótulos, dedicado a entender as inquietudes da condição humana”, define Luc, que escreve sobre detalhes bem corriqueiros do comportamento de suas atrizes e de seus atores (a recorrência de chiclete nos sets, por exemplo), em Au Dos De Nos Images III.

ADJETIVAÇÃO

Em suas páginas, estão os scripts que escreveu com o irmão, como O Garoto da Bicicleta (Grande Prêmio do Júri em Cannes, em 2011). “Aprendi a apreciar quando falam que nós dirigimos ‘contos morais’, pois esse é um rótulo novo, ainda não desgastado pela mídia, para algo secular, que é a preocupação com a condição social e com situações que façam da submissão, seja econômica ou religiosa, um cabresto, uma forma de controle. A preocupação que meu irmão e eu temos ao contar histórias é não estilizar, de forma alguma, para fugir do risco da adjetivação.”

Cena do filme O Garoto da Bicicleta, de Jean-Pierre e Luc Dardenne  Foto: Les Films du Fleuve

Há um adjetivo, contudo, do qual Tori et Lokita, o longa mais recente deles, não pode fugir: áspero. Leveza nunca foi a homilia da dupla, mas o recente O Jovem Ahmed - que rendeu a eles o Prêmio de Melhor Direção em Cannes, em 2019 - ou Dois Dias, Uma Noite - pelo qual Marion Cotillard recebeu uma indicação ao Oscar, em 2015 - eram mais arejados, abertos a conciliações.

NOVO FILME

Mas o novo filme deles - acerca do modo como a Europa lida com imigrantes - não dá licença alguma à esperança. É uma narrativa de precisão cirúrgica, tensa em seu compacto espaço de tela - 1h28 que passam redondinhos. Seu novo exercício autoral é uma radiografia da desumanidade que circunda os estrangeiros egressos da África em solo belga, sob o fantasma do racismo e da exclusão. É um longa pontuado de amargura sobre um casal de irmãos - a adolescente Lokita, encarnada por Joely Mbundu, e um guri, vivido por Pablo Schils - que se aproxima de contraventores para conseguir os meios (leiam-se € 11 mil) para custear seus documentos e ficar em terras belgas.

“Nossa ideia é favorecer a diversidade do cinema, com um cinema avesso a rótulos, dedicado a entender as inquietudes da condição humana”

Luc Dardenne

“Cumplicidade é a palavra essencial a essa história, que só foi viável depois de muitas repetições com os dois. Joely é uma estrela nata, mas Pablo tinha dificuldades de se soltar”, explica Luc. “Repetimos muitas vezes, com ambos, sozinhos, até que o elenco adulto entrou e deu nova camada de sentido, e de perigo, à trama.”

“Foi um trabalho meticuloso, até que os dois se desembaraçassem”, conta Jean-Pierre. “O ponto central era que eles observassem o mundo e a si mesmos. É como a gente faz. É o que a gente convida os espectadores a fazerem.”

Badalada atração na livraria da Cinemateca Francesa, Au Dos De Nos Images III (2014-2022) virou leitura de cabeceira de cinéfilos e estudantes afoitos por entender o realismo - expresso na tela em forma de contos morais - de seus autores, o realizador belga Luc Dardenne, de 68 anos, e seu irmão mais velho, Jean-Pierre, de 71.

O livro é o terceiro volume de um projeto literário que inclui uma parte ensaística e outra dedicada a seus roteiros, que os ganhadores de duas Palmas de Ouro de Cannes - a primeira por Rosetta, em 1999, e a segunda por A Criança, em 2005 - iniciaram em 2008, continuaram em 2015 e completaram (só parcialmente) no fim de 2022. Luc assina cada volume sozinho, pois é o responsável por textos curtinhos, parecidos com diários de filmagem, em torno de seu processo criativo.

Os irmãos e cineastas Jean-Pierre e Luc Dardenne Foto: Piroschka Van De Wouw/ Reuters

Não por acaso, o título dessa trilogia em papel pode ser traduzido como No Verso de Nossas Imagens. Esse terceiro e mais recente volume inclui anotações sobre o filme mais recente deles, Tori e Lokita, ganhador do Prix du 75ème na última edição de Cannes, em maio do ano passado.

“A própria Bélgica não abre todo o seu circuito para exibir a gente. No sul do país, por exemplo, a gente não chega. Nossa indústria ainda é algo artesanal, adapta-se ao pouco dinheiro que a gente consegue com fundos. Mas é importante dizer que alguns desses fundos, da Comissão Regional de Cultura belga, só passaram a existir depois de Rosetta. A gente filma com um orçamento de cerca de € 5 milhões, e dependemos de festivais, como Cannes, onde nossa história se fez, para que o mundo olhe para a gente”, disse Luc ao Estadão, num encontro em Paris, durante o 25.º Rendez-Vous Avec Le Cinéma Français, fórum anual de promoção de longas-metragens europeus.

Sempre ao lado dele, Jean-Pierre completava as reflexões do irmão mais novo. “As limitações nos levaram a extrair cinema da realidade, daí filmarmos com luz natural, com equipe enxuta, deixando que o enquadramento encontre a verdade de que precisamos.”

PRODUÇÃO

Além de filmar, os dois produzem, e muito, filmes próprios e de outras vozes autorais, como Patricia Mazuy, com quem trabalharam no ano passado no cultuado Boliche Saturno, exibido na Mostra de São Paulo e que concorreu ao Leopardo de Ouro em Locarno. A produtora deles, Les Films du Fleuve, virou grife e está debruçada hoje sobre um ambicioso projeto de animação pilotado pelo ganhador do Oscar Michel Hazanavicius (de O Artista) chamado La Plus Précieuse Des Marchandises, baseado na prosa de Jean-Claude Grumberg sobre a 2.ª Guerra.

Cena do filme Rosetta, dos irmãos Dardenne Foto: Touza Productions

“Nossa ideia é favorecer a diversidade do cinema europeu e enriquecer os olhares do mundo com um cinema avesso a rótulos, dedicado a entender as inquietudes da condição humana”, define Luc, que escreve sobre detalhes bem corriqueiros do comportamento de suas atrizes e de seus atores (a recorrência de chiclete nos sets, por exemplo), em Au Dos De Nos Images III.

ADJETIVAÇÃO

Em suas páginas, estão os scripts que escreveu com o irmão, como O Garoto da Bicicleta (Grande Prêmio do Júri em Cannes, em 2011). “Aprendi a apreciar quando falam que nós dirigimos ‘contos morais’, pois esse é um rótulo novo, ainda não desgastado pela mídia, para algo secular, que é a preocupação com a condição social e com situações que façam da submissão, seja econômica ou religiosa, um cabresto, uma forma de controle. A preocupação que meu irmão e eu temos ao contar histórias é não estilizar, de forma alguma, para fugir do risco da adjetivação.”

Cena do filme O Garoto da Bicicleta, de Jean-Pierre e Luc Dardenne  Foto: Les Films du Fleuve

Há um adjetivo, contudo, do qual Tori et Lokita, o longa mais recente deles, não pode fugir: áspero. Leveza nunca foi a homilia da dupla, mas o recente O Jovem Ahmed - que rendeu a eles o Prêmio de Melhor Direção em Cannes, em 2019 - ou Dois Dias, Uma Noite - pelo qual Marion Cotillard recebeu uma indicação ao Oscar, em 2015 - eram mais arejados, abertos a conciliações.

NOVO FILME

Mas o novo filme deles - acerca do modo como a Europa lida com imigrantes - não dá licença alguma à esperança. É uma narrativa de precisão cirúrgica, tensa em seu compacto espaço de tela - 1h28 que passam redondinhos. Seu novo exercício autoral é uma radiografia da desumanidade que circunda os estrangeiros egressos da África em solo belga, sob o fantasma do racismo e da exclusão. É um longa pontuado de amargura sobre um casal de irmãos - a adolescente Lokita, encarnada por Joely Mbundu, e um guri, vivido por Pablo Schils - que se aproxima de contraventores para conseguir os meios (leiam-se € 11 mil) para custear seus documentos e ficar em terras belgas.

“Nossa ideia é favorecer a diversidade do cinema, com um cinema avesso a rótulos, dedicado a entender as inquietudes da condição humana”

Luc Dardenne

“Cumplicidade é a palavra essencial a essa história, que só foi viável depois de muitas repetições com os dois. Joely é uma estrela nata, mas Pablo tinha dificuldades de se soltar”, explica Luc. “Repetimos muitas vezes, com ambos, sozinhos, até que o elenco adulto entrou e deu nova camada de sentido, e de perigo, à trama.”

“Foi um trabalho meticuloso, até que os dois se desembaraçassem”, conta Jean-Pierre. “O ponto central era que eles observassem o mundo e a si mesmos. É como a gente faz. É o que a gente convida os espectadores a fazerem.”

Badalada atração na livraria da Cinemateca Francesa, Au Dos De Nos Images III (2014-2022) virou leitura de cabeceira de cinéfilos e estudantes afoitos por entender o realismo - expresso na tela em forma de contos morais - de seus autores, o realizador belga Luc Dardenne, de 68 anos, e seu irmão mais velho, Jean-Pierre, de 71.

O livro é o terceiro volume de um projeto literário que inclui uma parte ensaística e outra dedicada a seus roteiros, que os ganhadores de duas Palmas de Ouro de Cannes - a primeira por Rosetta, em 1999, e a segunda por A Criança, em 2005 - iniciaram em 2008, continuaram em 2015 e completaram (só parcialmente) no fim de 2022. Luc assina cada volume sozinho, pois é o responsável por textos curtinhos, parecidos com diários de filmagem, em torno de seu processo criativo.

Os irmãos e cineastas Jean-Pierre e Luc Dardenne Foto: Piroschka Van De Wouw/ Reuters

Não por acaso, o título dessa trilogia em papel pode ser traduzido como No Verso de Nossas Imagens. Esse terceiro e mais recente volume inclui anotações sobre o filme mais recente deles, Tori e Lokita, ganhador do Prix du 75ème na última edição de Cannes, em maio do ano passado.

“A própria Bélgica não abre todo o seu circuito para exibir a gente. No sul do país, por exemplo, a gente não chega. Nossa indústria ainda é algo artesanal, adapta-se ao pouco dinheiro que a gente consegue com fundos. Mas é importante dizer que alguns desses fundos, da Comissão Regional de Cultura belga, só passaram a existir depois de Rosetta. A gente filma com um orçamento de cerca de € 5 milhões, e dependemos de festivais, como Cannes, onde nossa história se fez, para que o mundo olhe para a gente”, disse Luc ao Estadão, num encontro em Paris, durante o 25.º Rendez-Vous Avec Le Cinéma Français, fórum anual de promoção de longas-metragens europeus.

Sempre ao lado dele, Jean-Pierre completava as reflexões do irmão mais novo. “As limitações nos levaram a extrair cinema da realidade, daí filmarmos com luz natural, com equipe enxuta, deixando que o enquadramento encontre a verdade de que precisamos.”

PRODUÇÃO

Além de filmar, os dois produzem, e muito, filmes próprios e de outras vozes autorais, como Patricia Mazuy, com quem trabalharam no ano passado no cultuado Boliche Saturno, exibido na Mostra de São Paulo e que concorreu ao Leopardo de Ouro em Locarno. A produtora deles, Les Films du Fleuve, virou grife e está debruçada hoje sobre um ambicioso projeto de animação pilotado pelo ganhador do Oscar Michel Hazanavicius (de O Artista) chamado La Plus Précieuse Des Marchandises, baseado na prosa de Jean-Claude Grumberg sobre a 2.ª Guerra.

Cena do filme Rosetta, dos irmãos Dardenne Foto: Touza Productions

“Nossa ideia é favorecer a diversidade do cinema europeu e enriquecer os olhares do mundo com um cinema avesso a rótulos, dedicado a entender as inquietudes da condição humana”, define Luc, que escreve sobre detalhes bem corriqueiros do comportamento de suas atrizes e de seus atores (a recorrência de chiclete nos sets, por exemplo), em Au Dos De Nos Images III.

ADJETIVAÇÃO

Em suas páginas, estão os scripts que escreveu com o irmão, como O Garoto da Bicicleta (Grande Prêmio do Júri em Cannes, em 2011). “Aprendi a apreciar quando falam que nós dirigimos ‘contos morais’, pois esse é um rótulo novo, ainda não desgastado pela mídia, para algo secular, que é a preocupação com a condição social e com situações que façam da submissão, seja econômica ou religiosa, um cabresto, uma forma de controle. A preocupação que meu irmão e eu temos ao contar histórias é não estilizar, de forma alguma, para fugir do risco da adjetivação.”

Cena do filme O Garoto da Bicicleta, de Jean-Pierre e Luc Dardenne  Foto: Les Films du Fleuve

Há um adjetivo, contudo, do qual Tori et Lokita, o longa mais recente deles, não pode fugir: áspero. Leveza nunca foi a homilia da dupla, mas o recente O Jovem Ahmed - que rendeu a eles o Prêmio de Melhor Direção em Cannes, em 2019 - ou Dois Dias, Uma Noite - pelo qual Marion Cotillard recebeu uma indicação ao Oscar, em 2015 - eram mais arejados, abertos a conciliações.

NOVO FILME

Mas o novo filme deles - acerca do modo como a Europa lida com imigrantes - não dá licença alguma à esperança. É uma narrativa de precisão cirúrgica, tensa em seu compacto espaço de tela - 1h28 que passam redondinhos. Seu novo exercício autoral é uma radiografia da desumanidade que circunda os estrangeiros egressos da África em solo belga, sob o fantasma do racismo e da exclusão. É um longa pontuado de amargura sobre um casal de irmãos - a adolescente Lokita, encarnada por Joely Mbundu, e um guri, vivido por Pablo Schils - que se aproxima de contraventores para conseguir os meios (leiam-se € 11 mil) para custear seus documentos e ficar em terras belgas.

“Nossa ideia é favorecer a diversidade do cinema, com um cinema avesso a rótulos, dedicado a entender as inquietudes da condição humana”

Luc Dardenne

“Cumplicidade é a palavra essencial a essa história, que só foi viável depois de muitas repetições com os dois. Joely é uma estrela nata, mas Pablo tinha dificuldades de se soltar”, explica Luc. “Repetimos muitas vezes, com ambos, sozinhos, até que o elenco adulto entrou e deu nova camada de sentido, e de perigo, à trama.”

“Foi um trabalho meticuloso, até que os dois se desembaraçassem”, conta Jean-Pierre. “O ponto central era que eles observassem o mundo e a si mesmos. É como a gente faz. É o que a gente convida os espectadores a fazerem.”

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