Conta a lenda que J.R.R. Tolkien, já professor renomado, corrigia provas de alunos, em 1928, quando encontrou, entre elas, uma folha em branco. Num impulso, escreveu – ‘Em um buraco no chão, vivia um hobbit’. Passaram-se dois anos antes que ele retomasse a frase e escrevesse O Hobbit, dando início à saga do mundo secundário – e da Terra-média. O sucesso, quando o livro saiu, levou os editores a lhe cobrarem novas aventuras. De 1937 a 49, durante 12 anos, ele escreveu O Senhor dos Anéis, impregnado por seus conhecimentos de linguística, filologia e mitologia. Nos anos 1960, o culto surgiu e desenvolveu-se nas universidades norte-americanas. O cinema logo se interessou pelos direitos, mas Tolkien resistia à pressão. Finalmente, os negociou com a United Artists. Em 1978, surgiu a versão animada de Ralph Bakshi – um desastre.
O começo, Frodo e a Comitiva do Anel, até que promete, embora a técnica – rotoscopia, que consiste em desenhar sobre imagens captadas em live action – seja a mais convencional possível. O desenho é feio e não dá conta da magia de Tolkien. A perseguição pelos Espectros do Mal é desanimadora. Tolkien, como outros autores míticos – James Joyce, Malcolm Lowry, etc. –, parecia infilmável. Foi quando surgiu Peter Jackson na parada. Peter quem? Hoje, todo mundo – uma licença poética – sabe de quem se trata, mas no fim dos anos 1990? Jackson se exercitara no horror – Trash e Fome Animal –, fora a Veneza com Almas Gêmeas. Fora isso, para todos os efeitos, era um modesto diretor da Nova Zelândia. Seu primeiro grande desafio foi convencer a empresa New Line, que detinha os direitos, a investir numa produção que teria de ser milionária, e com um cineasta pouco conhecido, de um país do fim do mundo.
Trash, afinal, exibira a familiaridade de Jackson com o horror, e ele a usou em sua recriação dos orques. Almas Gêmeas, sobre um crime célebre na Nova Zelândia – duas garotas que matam os pais – é sobre escolhas mortais, e é disso que trata a saga de Frodo. O anel, símbolo de poder, exerce uma atração muito forte sobre todos que o tocam, incluindo Gandalf e... Frodo, como símbolo de resistência – em sua jornada sacrificial –, terá de destruir o anel para fazer frente ao poder de Sauron. Desde que recebeu o sinal verde para o projeto, Jackson deixou claro que iria usar as ferramentas das novas tecnologias para desenvolver não apenas os efeitos, como os próprios personagens. Por meio de uma técnica ousada, chamada de ‘motion capture’, criou o Gollum inteiramente no computador. Transformou a Nova Zelândia num celeiro de efeitos de ponta. Mas havia a dúvida. Como reagiria o público à decisão de transformar O Senhor dos Anéis em uma trilogia?
A Sociedade do Anel, em 2001, foi um estouro de bilheteria. As Duas Torres, em 2002, confirmou a aceitação. O Retorno do Rei, em 2003, somou ao público o prestígio do Oscar. Foram 11 prêmios da Academia, incluindo melhor filme, direção e roteiro adaptado. O Hobbit virou outra novela. Guillermo Del Toro seria o diretor, mas desistiu e Jackson assumiu o leme. No início, seriam dois filmes, que depois viraram nova trilogia. Uma Jornada Inesperada, em 2012, A Desolação de Smaug, 2013, A Batalha dos Cinco Exércitos, 2014. Talvez, sem O Senhor dos Anéis, não tivesse existido Game of Thrones, que a HBO adaptou de As Crônicas de Gelo e Fogo, de George R.R. Martin. Pode ser que, no limite, tudo se resuma a gosto, mas Tolkien e Jackson ocupam um patamar muito superior.