Amoroso de John Ford – desde que, ainda jovem, assistiu a uma retrospectiva de seus filmes na Cinemateca Portuguesa –, de Manoel de Oliveira e Max Ophuls, João Mário Grilo assina o outro biscoito fino já em cartaz no cinema. Escrita Íntima veio somar-se ao admirável Ilusões Perdidas, que Xavier Giannoli adaptou do romance de Balzac. Outro romance – epistolar. A história dos pintores Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes (ela, portuguesa, ele, húngaro), reconstituída por meio da correspondência entre ambos. Uma bela história de resiliência urdida ao longo dos 55 anos de relacionamento entre os dois, atravessando os duros anos da 2.ª Grande Guerra, e Arpad era judeu. De Paris ao Rio, muitas vezes em trânsito, tratando-se carinhosamente por Bicho e Bichinho, teceram uma espécie de utopia, feita de amor e arte.
“Nunca quis fazer um documentário tradicional, mas tecer um relato que levasse o espectador a querer saber mais sobre essas duas pessoas admiráveis. Estamos vivendo novos tempos sombrios. Meu filme talvez seja um convite para que o público construa a própria utopia.” Escrita Íntima estreou no início do mês, dia 2, em Portugal. Sete salas em todo o país, o que parece nada, mas representa bastante dado o perfil exigente e autoral do filme. Só para efeito de comparação, o Tom Cruise, Top Gun – Maverick, entrou em mais de mil salas e faturou 2 milhões de espectadores no Brasil em dez dias. Em Portugal, são 147 salas. É um mercado menor, mas de muito prestígio. É comum, em junkets às quais o Brasil tem acesso limitado, ou nem tem acesso, encontrar vários jornalistas portugueses nas mesas de entrevistas com os ‘talentos’. Numa entrevista por Zoom, Grilo conta que, na origem do projeto, está a exposição intitulada Escrita Íntima – como seu filme –, de 2014, acompanhada de um livro com a correspondência trocada pelos artistas entre 1932 e 1961. Ele explica sua fascinação pelo cinema de arquivo. Tece uma metáfora sensível. “É o sono, o cinema que está a dormir e é possível acordar.” Seu filme inicia-se pelas imagens de Vieira e Arpad já idosos, ele fazendo uso de uma bengala. Pertencem a Ma Femme Chamada Bicho, de José Álvaro Morais, de 1978, a quem Escrita Íntima está dedicado. Seguem-se as imagens de um cemitério, a lápide com os nomes dos dois. “É minha história de fantasmas”, define Grilo. Grão-senhor do cinema português, Manoel de Oliveira morreu em 2015, aos 106 anos. Em 1956 e 1965, fez curtas como O Pintor e a Cidade e As Pinturas do Meu Irmão Júlio, que foram inspiradores para Grilo, não apenas pela questão da arte visual, mas pela palavra que sempre esteve no centro do cinema do grande autor. O formato epistolar pode evocar um filme que virou cult – Nunca Te Vi, Sempre Te Amei, de David Jones, de 1987, com Anne Bancroft e Anthony Hopkins, mas o diretor prefere citar uma obra-prima do romantismo de Max Ophüls, A Carta de Uma Desconhecida, de 1948, com Joan Fontaine e Louis Jourdan.
São referências e, em termos de cinema – de cinefilia –, das mais eruditas. Grilo não encerra a entrevista sem falar do aporte de Caio e Fabiano Gullane como coprodutores. “Foram mais do que parceiros, amigos. Amam o cinema e os autores, respeitam os formatos.”
Foram exatamente dez anos, desde o momento em que Natara Ney descobriu as cartas que originaram seu longa Espero que Esta Te Encontre, e que Estejas Bem e a apresentação do filme no Festival de Brasília, no final de 2020. O longa não recebeu nada. Nada? O carinho do público substituiu o prêmio que o júri não lhe atribuiu. Na estreia do filme no Cine Bijou, em São Paulo, um casal foi abraçar a diretora no final da sessão. Emocionado, ele só repetia: “Muito obrigado, muito obrigado!” É um filme pequeno, no tamanho, de uma distribuidora também pequena, a Embaúba. O carinho é imenso. Natara estava em um momento muito particular de sua vida. Cineasta, negra, nordestina, havia migrado para o Rio. Tornou-se montadora respeitada. Tinha terminado uma história de amor. Estava sem chão, sem rumo. “Precisava desesperadamente falar de amor, até para compensar a minha falta de um.” Foi quando encontrou e comprou, em uma feira que se realizava embaixo da Perimetral, do Rio, um maço com 180 cartas.
Ao lê-las, seu coração se aqueceu. Tomou a decisão de ir atrás de Lúcia e Oswaldo, que haviam escrito, entre 1952 e 1953, para devolvê-las. “Havia o risco de não encontrar essas pessoas, ou de que tivessem morrido.” Natara foi em frente. Lúcia morava em Campo Grande, Mato Grosso do Sul; Oswaldo, no Rio de Janeiro. Ela resolveu documentar – filmar – o processo. Foi assim que tudo começou. Ela inscreveu o projeto em um edital do Rio para curtas, mas o material rendia um longa. Natara inscreveu o filme em outro edital – de finalização – em Pernambuco. O filme de Natara é a prova de que o cinema não necessita de grandes temas, não necessita nem de histórias. A de Espero Que Esta Te Encontre foi sendo construída no processo. Natara foi batendo de porta em porta. Viajou ao coração do Brasil, encontrou suas personagens... Olha o spoiler!
Um dos encantos do filme, experimentado pelo repórter, foi-se entregar ao fluxo das imagens – e das palavras – sem nada saber do desenlace. Há, na essência desse filme, uma espécie de anacronismo. Quem ainda escreve cartas, e de amor, ainda por cima? Na era do celular, do WhatsApp, o que o filme de Natara e o de João Mário Grilo propõem é uma espécie de viagem. No tempo, nos sentimentos. A pergunta que não quer calar: Natara se curou da sua dor de amor? “Às vezes, só o que a gente precisa é de colocar um ponto final nas coisas, para iniciar novo parágrafo.” Ela está muito feliz com seu novo parágrafo.