Denys Arcand é um cineasta que sabe cutucar feridas. Essa característica atravessa seu cinema em filmes como O Declínio do Império Americano, As Invasões Bárbaras e até mesmo em menos conhecidos, como A Era da Inocência, explorando temas como fuga para o mundo das ideias, medo do próximo, tabus. Tudo isso aparece em seu texto – e em seu cinema. Mas poucos filmes são mais afiados do que Testamento, que acaba de estrear no cinema.
Esta produção, que pode ser a última do diretor de 83 anos, conta a história do sr. Bouchard, um arquivista também na casa dos 80 anos, morador de um lar para idosos, que simplesmente não compreende o mundo ao seu redor. Quer morrer tranquilamente, e só.
Até que um grupo de ativistas acampa na porta do tal asilo em que vive para protestar contra um afresco que existe ali dentro. Em tese, a pintura está toda errada: não foi aquilo que aconteceu. “É racismo!”, grita um dos protestantes. A partir daí, Arcand dispara sua metralhadora de cutucar feridas para todos os lados. Fala sobre politicamente correto, reescrita da História, moralidade. Sobra até para ciclistas e para quem pratica esportes.
“O que está acontecendo com o mundo?”, parece se questionar o personagem, vivido por Rémy Girard. Há um clima de incredulidade no filme todo. De cansaço – ainda que bem humorado. Partindo dessa história e dessas provocações, o cineasta canadense Denys Arcand conversou com o Estadão. Ele falou sobre sua inspiração, sobre o que lhe incomoda no dia a dia, sobre a morte e, enfim, se Testamento é realmente seu último filme.
O filme aborda muitos temas sensíveis. De onde veio essa ideia? O que o sr. queria transmitir? Está cansado do politicamente correto? O que o motivou?
A primeira ideia para este filme veio de um incidente que li no New York Times. Em Nova York, há um grande museu chamado Museu Nacional de História Natural. No primeiro andar, há uma pintura grande que retrata o primeiro encontro entre os povos nativos da ilha de Manhattan e exploradores holandeses. É uma pintura bastante semelhante à que você viu no meu filme. Em certo momento, algumas pessoas chegaram ao museu e disseram: “Nós somos descendentes dos indígenas originais que ocupavam a ilha de Manhattan e esta pintura não está correta, é falsa. Queremos que vocês a removam”. E então os curadores em Nova York disseram: “Ok. Quais são os piores erros? Como podemos corrigir esta pintura?”. Eventualmente, o que fizeram foi colocar um vidro na frente da pintura. É uma pintura enorme. Eles colocaram um vidro na frente e nele escreveram pequenas correções: os navios não estão no lugar certo, os indígenas não estavam vestidos daquela maneira, as mulheres não foram incluídas, e coisas assim. As pessoas que disseram ser descendentes dos indígenas concordaram com isso e foram embora. E ainda está assim. Se você for a Nova York hoje, verá essa pintura com as correções no vidro. Isso me fez pensar: se uma pintura semelhante estivesse em Montreal, o que aconteceria? E então comecei a imaginar a história que você viu no filme.
Hoje, a arte está sendo reavaliada em todo o mundo: livros, pinturas, músicas, murais. O senhor tem medo de que talvez seus filmes enfrentem essa reavaliação no futuro? O que acha que acontecerá com todos esses movimentos?
Bem, essa é a história do filme. Eu não sei. Sabe, algumas artes podem ser destruídas. Este ano, houve uma situação em uma igreja no sul da Itália, acho que foi na Sicília, onde um padre recebeu dinheiro para melhorias na igreja e ele pintou sobre um afresco do século XVIII. Há coisas assim que me preocupam. Mas, de fato, a história deste filme é sobre minha perplexidade, minha dificuldade em entender o mundo em que vivo atualmente. Para minha geração, e sou um homem muito velho, a liberdade de expressão era algo a que todos aspirávamos. Era uma qualidade enorme, um objetivo para a humanidade. Hoje em dia, acho que para a geração mais jovem, a liberdade de expressão não é um objetivo tão importante. O que importa para eles é a moralidade da expressão - se essa expressão é totalmente moral. Se não for, deve ser banida, não deve ser ouvida. Isso é absolutamente contrário ao que eu acreditava e ainda acredito. Então, isso me preocupa.
E o senhor está preocupado com seus filmes no futuro?
Sim, claro. Os filmes fazem parte do mundo da arte, assim como os romances e as pinturas.
Então o senhor se identifica com o sr. Bouchard? Ele é uma versão sua?
Sim, há uma parte de ficção nisso, mas o comportamento dele, o fato de ele estar tão perdido diante de tudo... isso sou eu.
Dentre outras coisas, o sr. Bouchard lida com a morte de forma bastante natural. E o senhor, como encara a morte?
Eu tive uma filha muito tarde. Adotamos nossa filha quando eu tinha 54 ou 55 anos, e agora ela tem 25 anos. Se a poluição se tornar insuportável e as pessoas morrerem, eu já estarei morto há muito tempo. Então, o que me importa? Quero dizer, posso me preocupar com o futuro da humanidade, mas se isso não me afetar diretamente, não estou totalmente preocupado. Acontece que agora, por causa da minha filha, estou um pouco preocupado. Mas, para esse personagem, esse homem velho que nunca teve um filho e de repente passa a ter um bebê em sua vida, isso muda tudo. Ele passa a se preocupar com as mudanças climáticas. Acho que todos deveriam se preocupar, mas se você tem um bebê, isso é ainda mais crucial. Esse bebê terá que viver no futuro, possivelmente em uma situação horrível.
Falando em mudanças, o cinema de hoje também está mudando muito. Como vê o estado atual do cinema? Isso o assusta?
É complicado. Fui assistir a Duna: Parte 2 há alguns meses. Você viu?
Sim. E é de um conterrâneo seu, Denis Villeneuve.
Sim, ele é alguém que conheço muito bem. Na verdade, ele virá à minha no domingo almoçar. Enfim, eu vi o filme, que custou US$ 300 milhões, mais do que o orçamento de muitos países das Nações Unidas. É tão grande, tão gigantesco. É enorme, com explosões. Perguntei-me se esse é o futuro. E é possível que esse seja o futuro do cinema público, exibido em grandes salas de cinema com sistemas de som incríveis. E provavelmente haverá outro tipo de cinema, como o que estou fazendo, que é menor, algo como escrever um ensaio, que provavelmente acabará na televisão ou em serviços de streaming. Eu estou dizendo isso porque as telas caseiras hoje em dia são muito boas. Em minha casa, tenho uma tela grande e um som muito bom. Fico perfeitamente feliz em assistir a filmes em casa. É grande o suficiente, fiel o suficiente para eu aproveitar. Então, é possível que essa seja a próxima direção: grandes filmes para os cinemas e obras menores para as telas privadas. Não estou preocupado com a criatividade. Sempre haverá alguém que encontrará uma maneira de contar uma história com uma pequena câmera. Você pode fazer um filme com um iPhone e ele pode ser muito bom. A criatividade é inerente à humanidade desde o início dos tempos, e sempre estará presente. Como ela se manifestará, ainda não sei. Mas o que disse é apenas uma possibilidade.
E para finalizar: este é realmente o seu último filme? Por quê?
Não sei. Vou fazer 83 anos. É um trabalho difícil, como você sabe. É fisicamente exigente, temos que acordar muito cedo e ficar de pé por longos períodos. Mas ainda estou com boa saúde. Se uma boa ideia surgir, ou uma inspiração, certamente farei outro filme. Mas o estranho é que, ao longo da minha vida, sempre que terminava um filme eu já tinha ideia para o próximo. Desta vez, não tive nenhuma ideia ou inspiração. Absolutamente nada. Será que é um sinal dos céus de que já é suficiente? No momento, não estou trabalhando em nada, não tenho nenhum projeto, mas ainda estou lendo e escrevendo pequenas coisas. Então, vamos ver. Minha resposta é: eu não sei.