Pode ser mera coincidência, mas o espectador brasileiro vai terminar virando cinófilo na marra, neste final de ano. Dois filmes sobre cães darão a tônica do encerramento de 2008. O cinéfilo pode ter certeza de que o novo filme de Arnaud Desplechin, Um Conto de Natal, é o maior presente que poderia receber amanhã de Papai Noel, mas trocando-se apenas uma letra, o E pelo O, quem se liga em cães dificilmente resistirá a correr aos cinemas que vão exibir a adaptação do best-seller de John Grogan. Fenômeno editorial em todo o mundo, Marley & Eu ganhou versão com Owen Wilson e Jennifer Aniston – mas quem rouba a cena, entre os atores, é o veterano Alan Arkin, Oscar de coadjuvante por A Pequena Miss Sunshine. É preciso fazer a ressalva – entre os atores, pois na verdade Marley & Eu, como celebração do afeto incondicional, deve muito da sua empatia aos labradores que fazem o cão estabanado. Marley preenche, tanto quanto perturba, a vida de uma família, mas todo mundo tem sempre algo a aprender com ele. Veja também: Trailer de "Marley e Eu" Você ainda estará chorando com Marley & Eu – um dos temas do filme é a dor da perda – quando, no dia 1.º, outro cão estará irrompendo nos cinemas brasileiros. Prepare-se para a animação Bolt, sobre um cãozinho que protagoniza um seriado de TV e pensa que é super-herói, enfrentando todo tipo de perigo para salvar sua dona, que ele pensa estar em perigo de verdade. O que ambos os filmes têm em comum é a idéia, que todo cinófilo poderá confirmar, de que os cães são mesmo devotados a seus donos. A partir daí, cada um segue um rumo próprio. O de Marley & Eu, traçado no livro de Grogan e reafirmado pelo diretor David Frankel, de O Diabo Veste Prada, consiste em usar o labrador para contar a vida do casal (e vice-versa). E é uma história verdadeira. Marley surgiu primeiro na coluna que Grogan, um jornalista, tinha num jornal de Miami. Depois, virou livro tão bem-sucedido que Hollywood não perdeu a chance de tirar o labrador das páginas para colocá-lo nas telas. Você não precisa ser cachorreiro na vida para ter um cão no seu imaginário. Uma das mais belas – e dolorosas – páginas da literatura brasileira, a da morte de Baleia em Vidas Secas, saiu do livro de Graciliano Ramos para virar um momento antológico do cinema brasileiro, no clássico de Nelson Pereira do Santos em pleno Cinema Novo. Pode ser que, pelo seu componente social e também ontológico – por remeter à filosofia e à essência do ser –, Baleia seja um exemplo muito sofisticado. Fiquemos, então, com Lassie, Rin-Tin-Tin e até Duque, que foi a contribuição nacional à história dos cães nas telas, isso para não falar na imortal animação A Dama e o Vagabundo, da Disney, que foi uma das referências para Bolt. Cães tendem a ser estabanados e, se você não tratar logo de contê-los, serão tão destruidores quanto afetivos. É o que ocorre com Marley. Antes, talvez seja interessante situar que a iniciativa de comprar o cão parte do marido. Preocupado com o instinto maternal da personagem de Jennifer Aniston – e despreparado, material e psicologicamente, para a responsabilidade de ser pai –, Owen Wilson compra o labrador para aplacar as necessidades afetivas da mulher. O cão é amoroso, claro, mas também é uma peste. Algumas das melhores cenas, antes de se tornarem um tanto repetitivas, no estilo clipado do diretor, mostra quão pestilento Marley – cujo nome é uma homenagem ao gênio de reggae, Bob Marley – consegue ser. Com uma irreconhecível Kathleen Turner no papel da instrutora, Marley mostra que não veio ao mundo para ser disciplinado. Em outra, faz cocô na praia. Marley é, como não se cansa de dizer o personagem de Owen Wilson, o pior cão do mundo. Mas é ele, o cão, que dá unidade àquela família e faz com que cada um de seus integrantes se sinta extraordinário. Para David Frankel, Marley talvez seja substituto para a Meryl Streep de O Diabo Veste Prada, que também podia ser uma peste, passando como um vendaval pela vida das pessoas – Marley, por temer tanto os trovões, seria mais um temporal –, mas sem uma e outro a família, como a personagem de Anne Hathaway no filme anterior, certamente não conseguiria desabrochar nem amadurecer da mesma maneira. O cão tem o estilo estabanado do próprio Owen Wilson, cujos personagens são sempre desorganizados e passam pela vida provocando confusões. A maneira como ambos, Marley e ele, irrompem na imagem, logo de cara, reforça essa impressão de são que as diferentes faces da mesma moeda. Por conta disso, em não poucos momentos, você compartilha o sentimento de dúvida de Jennifer, quando ela oscila entre se livrar do marido ou de Marley, de tanto que um e outro a atazanam. Este lado, digamos, ‘realista’ das cenas de um casamento tem seu contraponto nas cenas do escritório, no caso, do jornal, quando Wilson, como Grogan, encontra no chefe (Alan Arkin) o mesmo tipo de exigência prática que a mulher faz. A convivência dos Grogans com o labrador dura mais de uma década e inclui as complicações provocadas por um trio de filhos (dois meninos e uma menina), mas o verdadeiro objetivo dessa história talvez seja preparar o público para o inevitável ciclo de crescimento e morte que atinge todos os seres vivos, sejam pessoas ou animais. Neste sentido, e hollywoodianamente, Marley & Eu trata da elaboração da perda – que o francês Arnaud Desplechin, em Um Conto de Natal , prefere tratar em chave filosófica, buscando seu referencial num texto do autor americano Ralph Waldo Emerson. Um pouco mais de equilíbrio narrativo tornaria Marley & Eu melhor, como cinema, mas aí o filme talvez não fosse tão fiel ao personagem (o cachorro) que é sua razão de ser. Marley & Eu (Marley & Me, Estados Unidos/2008, min.) – Comédia. Dir. David Frankel. Livre. Cotação: Bom