‘Eu amo desobedecer’, diz Luisa Arraes, que está em ‘No Rancho Fundo’, ‘Transe’ e ‘Grande Sertão’


Aos 30 anos, a atriz vive a vilã Blandina na novela da Globo, está em duas adaptações do livro de Guimarães Rosa, incluindo uma de seu pai, e está em cartaz com filme sobre as eleições de 2018; leia a entrevista

Por Bruno Carmelo
Atualização:

Nos últimos anos, Luisa Arraes, 30, tem se firmado como uma artista de destaque em diversas áreas. Na TV, encarna a vilã Blandina de No Rancho Fundo. No teatro, encenou durante anos a peça Grande Sertão: Veredas, baseada em Guimarães Rosa. Após o espetáculo dirigido por Bia Lessa, estrelou duas adaptações cinematográficas ainda inéditas do clássico literário: O Diabo na Rua no Meio do Redemunho, também de Lessa, previsto para agosto, e Grande Sertão, releitura contemporânea e urbana por Guel Arraes — pai de Luisa — que deve estrear em 6 de junho.

Neste momento, ela se encontra em cartaz nos cinemas com Transe, filme de Carolina Jabor e Anne Pinheiro Guimarães. A obra foi realizada durante as manifestações de 2018, quando a juventude progressista buscava frear a ascensão da extrema-direita no País. Nesta mistura entre ficção e documentário, ela interpreta uma atriz de nome Luisa, que se preocupa com os rumos políticos de um país polarizado.

Além disso, foi premiada no Festival do Rio por seu primeiro trabalho como cineasta, no curta-metragem Dependências - que ainda não estreou no circuito comercial e segue sua trajetória em festivais. “Eu estou numa idade em que colho os frutos das minhas iniciativas”, explica Arraes ao Estadão.

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Luisa Arraes tem papeis de destaque na televisão, cinema e teatro, além de ter sido premiada por seu primeiro curta como cineasta. Foto: Maria Magalhães/Divulgação

“No começo da carreira, a gente tende a aceitar tudo, mas, com o tempo, as pessoas enxergam os nossos traços. Todos os projetos que estou lançando agora são muito importantes para mim: Transe, Grande Sertão, a novela. Não é sempre que isso acontece. A gente brinca que, com sorte, o artista consegue na vida um trabalho do qual se orgulha. O resto é ralação.”

A atriz carioca explica o processo transformador de sua primeira experiência à frente de um filme. “Uma coisa é você dar pitacos na direção, mas outra coisa é trocar de lado. O curta-metragem foi o que eu tive mais próximo de uma droga pesada. Eu acordava, e era como se eu fosse ter um ataque do coração - da hora que acordava até a hora de dormir. Só dormia de exaustão, porque é muita responsabilidade. Foi um frisson”.

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Ela diz ainda que neste meu curta-metragem, tudo o que os atores propunham, ela decidia testar. “Tudo o que vem do outro me interessa. Gosto de processos coletivos. Quando a gente ganhou o prêmio no Festival do Rio, a coisa mais emocionante para mim foi que, quando eu subi no palco, 30 pessoas subiram comigo. Eu não estou ali para assinar nada. Este filme é nosso, e quero que cada um tenha compromisso com o filme, assim como eu.”

Questionada a respeito da relação com cineastas e dramaturgos, ela pondera que há todos os tipos de diretores e que quando começou gostava que lhe dessem direções muito precisas, principalmente, ela diz, por sua “falta de confiança e experiência”.

“Eu sabia obedecer bem, mas não me sentia autônoma, enquanto criadora, para propor coisas. Ganhei este tipo de independência com o teatro. A Bia Lessa, por exemplo, jogava a gente na fogueira. Ela nos dava um texto de dez páginas e falava: ‘Eu quero uma cena em cinco minutos’. Eu pensava: ‘Mas nem vou ter tempo de ler!’, e ela me respondia: ‘Se vira’. Algo neste risco me formou. O mesmo vale para o Transe, porque o risco me amadurece. Cada vez mais eu acredito no ator-criador”.

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Antes, eu adorava obedecer, mas agora, amo desobedecer. Isso é importante para a criação artística.

Luisa Arraes

Política em ‘Transe’

No longa-metragem de Jabor e Guimarães em cartaz nos cinemas, três jovens vivem um relacionamento amoroso enquanto questionam a política brasileira fora de suas bolhas de esquerda. Luisa (Luisa Arraes) investe no ativismo das ruas e dos protestos; Johnny (Johnny Massaro) procura respostas na espiritualidade e Ravel (Ravel Andrade) se comunica por meio de canções e performances. Os atores não receberam diálogos, e criaram as cenas junto das diretoras.

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“Eu me envolvi desde o início, quando a gente ainda não sabia o que seria. Coloquei muito da minha vida ali, pensando em como eu queria escrever. Transe abriu um portal na minha cabeça: no ano seguinte, eu me inscrevi no mestrado. Ali eu entendi que queria participar dos projetos em diversos níveis”, conta a atriz.

Arraes vai além e diz que gosta de coisas que a fazem pensar que se não estivesse fazendo aquilo morreria. “São balizas que me acalmam. Penso muito no meu papel enquanto artista na sociedade brasileira, que tem a desigualdade como marca principal. Isso me forma para além de outros recortes fundamentais, enquanto mulher branca de classe média. Cresci num país desigual e tenho afetos profundos por pessoas de classes sociais diferentes da minha. Tenho isso na cabeça enquanto artista. Transe fala disso”, declara.

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Para ela, existe um “distanciamento trágico entre a classe artística e a política” na época retratada no filme - 2018, quando Bolsonaro foi eleito. “Eu não podia ser uma artista e não saber quem era o governador eleito no meu Estado. Mas eu não sabia quem era o Wilson Witzel, e muita gente não sabe até hoje. Eu aprendi, foi uma porrada. O filme é uma tentativa, no calor do momento, de entender a nossa função naquela época”, explica.

Luisa Arraes estrela 'Transe' ao lado de Johnny Massaro e Ravel Andrade. Foto: Pedro Perdigão/Divulgação

Luisa, no entanto, vê uma mudança entre 2018 e as eleições seguintes - para ela, e com a ajuda do filme. “Lá, a gente queria virar votos de maneira desesperada. Em 2022, não desisti de lutar, pelo contrário, mas tinha interesse cada vez maior em escutar pessoas com opiniões contrárias às minhas, se elas estivessem dispostas a conversar de maneira razoável, é claro.” Por fim, ela diz que “o filme deixou a gente mais velho, mais triste e menos idiota”.

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Grande Sertão, uma bíblia

A respeito dos desdobramentos de Grande Sertão, Arraes se sente privilegiada de manter uma relação tão íntima com os personagens de Guimarães Rosa. Ela interpreta Riobaldo no filme dirigido por Bia Lessa, embora tenha vivido Diadorim na adaptação de Guel Arraes.

“Considero Grande Sertão como a minha Bíblia. É um livro inesgotável, que pode dar origem a um milhão de versões. Ele é como a Bíblia mesmo: existe o mundo inteiro neste livro. Já li três vezes, e me lembro da primeira vez, aos 18 anos. Pensei: ‘Isso é muito mais interessante do que viver’. Eu vivia, mas queria mesmo ler. Fazia as minhas coisas e voltava para a leitura. Às vezes eu lia trinta páginas, mas às vezes eu lia cinco frases, parava em uma delas e pensava: ‘Meu Deus, preciso de três dias para decantar isso aqui’”.

Luisa Arraes em 'O Diabo na Rua no Meio do Redemunho'. Foto: ATTi Comunicação / Divulgação

Ela conta que os dois filmes têm linguagens diferentes, mas o Grande Sertão dirigido pelo seu pai também é teatral. “Não é um filme realista. O cinema às vezes tem uma caretice, um compromisso muito chato com a realidade. Na peça, a gente às vezes fazia pássaro, fazia planta. Todo mundo interpretava homem e mulher. Isso ensina muito ao cinema sobre a liberdade da arte e as possibilidades da linguagem. Não é porque estamos num rio caudaloso que precisamos filmar, literalmente, um rio caudaloso. Podemos recriar o rio com os atores fazendo peixes que se tremem”.

Ainda sobre o livro de Guimarães Rosa, ela diz que tem sempre seu exemplar com ela e que cada leitura será diferente - por causa de suas experiências de vida. Se tiver que fazer agora o monólogo da morte dos cavalos, por exemplo, diz que vai ficar em prantos porque seu corpo está acostumado a falar aquelas palavras e chorar. “No Grande Sertão do meu pai, todas as mil apresentações que eu fiz falando este texto estavam dentro de mim, e imprimem no filme de alguma forma. É o mesmo corpo, são as mesmas células sendo machucadas e reanimadas. Renovo meu contrato com a vida a cada novo personagem.”

“Você pode ler Grande Sertão de muitas maneiras, porque existem vários temas grandiosos ali. O que é a bondade e a maldade? O diabo existe? No final, ele nos diz: o que existe é o homem humano. Todos nós somos bons e maus. Os policiais são bons e maus. Neste última adaptação, a guerra contra o tráfico não pode ser considerada uma guerra menos importante. Ela é tão trágica quanto a guerra de Troia. As pessoas estão morrendo, estão dando o sangue. Os bandidos são bons e maus. É isso que Guimarães Rosa queria dizer com os cangaceiros”.

Trabalhos passados e encantamento com Blandina, de Rancho Fundo

A atriz afirma ser profundamente crítica em relação à sua carreira, embora não considere as participações iniciais em O Auto da Compadecida (2000) e Lisbela e o Prisioneiro (2003) como trabalhos.

“Eu não tinha noção de nada. Foram brincadeiras de quando eu era criança — são participações afetivas. Meu pai e minha mãe [a atriz Virginia Cavendish] estavam trabalhando ali, e não tinha ninguém para ficar comigo. O figurinista colocou uma roupa em mim e me levou para o fundo da cena. Todo mundo que tem criança por perto sabe o trabalho que dá, então era só para ocupar uma criança mesmo”, lembra.

Ela se diz crítica em relação a cada trabalho e afirma acreditar que sempre poderia ter feito melhor. E conta que nem revê trabalhos como o filme A Busca (2013) e séries como Louco por Elas (2012-2013). “Tenho aflição”, comenta.

Mas ela completa: “Não sou budista, mas acredito na ideia de viver o agora. Mesmo assim, aprendi a me assistir porque faz parte do nosso trabalho. Isso angustia, desnorteia, dá tontura, mas é preciso olhar como se fosse outra pessoa”.

Luisa Arraes como a vilã Blandina para a novela 'No Rancho Fundo'. Foto: Fabio Rocha/TV Globo/Divulgação

Questionada sobre projetos que ainda deseje concretizar, Luisa Arraes desconversa. “Não tenho metas a atingir porque eu sou maluca: se eu estipular metas, não vou conseguir dormir”, confessa. E diz que está na fase de agradecer pelo que tem hoje. “Estou encantada com a Blandina (de Rancho Fundo), que é a personificação da personagem feminina complexa. Ela é, ao mesmo tempo, vítima e vilã. É uma beleza interpretar esta personagem feminina complexa, presente em tantas cenas. Eu acordo e agradeço por estar neste momento”, conclui.

Nos últimos anos, Luisa Arraes, 30, tem se firmado como uma artista de destaque em diversas áreas. Na TV, encarna a vilã Blandina de No Rancho Fundo. No teatro, encenou durante anos a peça Grande Sertão: Veredas, baseada em Guimarães Rosa. Após o espetáculo dirigido por Bia Lessa, estrelou duas adaptações cinematográficas ainda inéditas do clássico literário: O Diabo na Rua no Meio do Redemunho, também de Lessa, previsto para agosto, e Grande Sertão, releitura contemporânea e urbana por Guel Arraes — pai de Luisa — que deve estrear em 6 de junho.

Neste momento, ela se encontra em cartaz nos cinemas com Transe, filme de Carolina Jabor e Anne Pinheiro Guimarães. A obra foi realizada durante as manifestações de 2018, quando a juventude progressista buscava frear a ascensão da extrema-direita no País. Nesta mistura entre ficção e documentário, ela interpreta uma atriz de nome Luisa, que se preocupa com os rumos políticos de um país polarizado.

Além disso, foi premiada no Festival do Rio por seu primeiro trabalho como cineasta, no curta-metragem Dependências - que ainda não estreou no circuito comercial e segue sua trajetória em festivais. “Eu estou numa idade em que colho os frutos das minhas iniciativas”, explica Arraes ao Estadão.

Luisa Arraes tem papeis de destaque na televisão, cinema e teatro, além de ter sido premiada por seu primeiro curta como cineasta. Foto: Maria Magalhães/Divulgação

“No começo da carreira, a gente tende a aceitar tudo, mas, com o tempo, as pessoas enxergam os nossos traços. Todos os projetos que estou lançando agora são muito importantes para mim: Transe, Grande Sertão, a novela. Não é sempre que isso acontece. A gente brinca que, com sorte, o artista consegue na vida um trabalho do qual se orgulha. O resto é ralação.”

A atriz carioca explica o processo transformador de sua primeira experiência à frente de um filme. “Uma coisa é você dar pitacos na direção, mas outra coisa é trocar de lado. O curta-metragem foi o que eu tive mais próximo de uma droga pesada. Eu acordava, e era como se eu fosse ter um ataque do coração - da hora que acordava até a hora de dormir. Só dormia de exaustão, porque é muita responsabilidade. Foi um frisson”.

Ela diz ainda que neste meu curta-metragem, tudo o que os atores propunham, ela decidia testar. “Tudo o que vem do outro me interessa. Gosto de processos coletivos. Quando a gente ganhou o prêmio no Festival do Rio, a coisa mais emocionante para mim foi que, quando eu subi no palco, 30 pessoas subiram comigo. Eu não estou ali para assinar nada. Este filme é nosso, e quero que cada um tenha compromisso com o filme, assim como eu.”

Questionada a respeito da relação com cineastas e dramaturgos, ela pondera que há todos os tipos de diretores e que quando começou gostava que lhe dessem direções muito precisas, principalmente, ela diz, por sua “falta de confiança e experiência”.

“Eu sabia obedecer bem, mas não me sentia autônoma, enquanto criadora, para propor coisas. Ganhei este tipo de independência com o teatro. A Bia Lessa, por exemplo, jogava a gente na fogueira. Ela nos dava um texto de dez páginas e falava: ‘Eu quero uma cena em cinco minutos’. Eu pensava: ‘Mas nem vou ter tempo de ler!’, e ela me respondia: ‘Se vira’. Algo neste risco me formou. O mesmo vale para o Transe, porque o risco me amadurece. Cada vez mais eu acredito no ator-criador”.

Antes, eu adorava obedecer, mas agora, amo desobedecer. Isso é importante para a criação artística.

Luisa Arraes

Política em ‘Transe’

No longa-metragem de Jabor e Guimarães em cartaz nos cinemas, três jovens vivem um relacionamento amoroso enquanto questionam a política brasileira fora de suas bolhas de esquerda. Luisa (Luisa Arraes) investe no ativismo das ruas e dos protestos; Johnny (Johnny Massaro) procura respostas na espiritualidade e Ravel (Ravel Andrade) se comunica por meio de canções e performances. Os atores não receberam diálogos, e criaram as cenas junto das diretoras.

“Eu me envolvi desde o início, quando a gente ainda não sabia o que seria. Coloquei muito da minha vida ali, pensando em como eu queria escrever. Transe abriu um portal na minha cabeça: no ano seguinte, eu me inscrevi no mestrado. Ali eu entendi que queria participar dos projetos em diversos níveis”, conta a atriz.

Arraes vai além e diz que gosta de coisas que a fazem pensar que se não estivesse fazendo aquilo morreria. “São balizas que me acalmam. Penso muito no meu papel enquanto artista na sociedade brasileira, que tem a desigualdade como marca principal. Isso me forma para além de outros recortes fundamentais, enquanto mulher branca de classe média. Cresci num país desigual e tenho afetos profundos por pessoas de classes sociais diferentes da minha. Tenho isso na cabeça enquanto artista. Transe fala disso”, declara.

Para ela, existe um “distanciamento trágico entre a classe artística e a política” na época retratada no filme - 2018, quando Bolsonaro foi eleito. “Eu não podia ser uma artista e não saber quem era o governador eleito no meu Estado. Mas eu não sabia quem era o Wilson Witzel, e muita gente não sabe até hoje. Eu aprendi, foi uma porrada. O filme é uma tentativa, no calor do momento, de entender a nossa função naquela época”, explica.

Luisa Arraes estrela 'Transe' ao lado de Johnny Massaro e Ravel Andrade. Foto: Pedro Perdigão/Divulgação

Luisa, no entanto, vê uma mudança entre 2018 e as eleições seguintes - para ela, e com a ajuda do filme. “Lá, a gente queria virar votos de maneira desesperada. Em 2022, não desisti de lutar, pelo contrário, mas tinha interesse cada vez maior em escutar pessoas com opiniões contrárias às minhas, se elas estivessem dispostas a conversar de maneira razoável, é claro.” Por fim, ela diz que “o filme deixou a gente mais velho, mais triste e menos idiota”.

Grande Sertão, uma bíblia

A respeito dos desdobramentos de Grande Sertão, Arraes se sente privilegiada de manter uma relação tão íntima com os personagens de Guimarães Rosa. Ela interpreta Riobaldo no filme dirigido por Bia Lessa, embora tenha vivido Diadorim na adaptação de Guel Arraes.

“Considero Grande Sertão como a minha Bíblia. É um livro inesgotável, que pode dar origem a um milhão de versões. Ele é como a Bíblia mesmo: existe o mundo inteiro neste livro. Já li três vezes, e me lembro da primeira vez, aos 18 anos. Pensei: ‘Isso é muito mais interessante do que viver’. Eu vivia, mas queria mesmo ler. Fazia as minhas coisas e voltava para a leitura. Às vezes eu lia trinta páginas, mas às vezes eu lia cinco frases, parava em uma delas e pensava: ‘Meu Deus, preciso de três dias para decantar isso aqui’”.

Luisa Arraes em 'O Diabo na Rua no Meio do Redemunho'. Foto: ATTi Comunicação / Divulgação

Ela conta que os dois filmes têm linguagens diferentes, mas o Grande Sertão dirigido pelo seu pai também é teatral. “Não é um filme realista. O cinema às vezes tem uma caretice, um compromisso muito chato com a realidade. Na peça, a gente às vezes fazia pássaro, fazia planta. Todo mundo interpretava homem e mulher. Isso ensina muito ao cinema sobre a liberdade da arte e as possibilidades da linguagem. Não é porque estamos num rio caudaloso que precisamos filmar, literalmente, um rio caudaloso. Podemos recriar o rio com os atores fazendo peixes que se tremem”.

Ainda sobre o livro de Guimarães Rosa, ela diz que tem sempre seu exemplar com ela e que cada leitura será diferente - por causa de suas experiências de vida. Se tiver que fazer agora o monólogo da morte dos cavalos, por exemplo, diz que vai ficar em prantos porque seu corpo está acostumado a falar aquelas palavras e chorar. “No Grande Sertão do meu pai, todas as mil apresentações que eu fiz falando este texto estavam dentro de mim, e imprimem no filme de alguma forma. É o mesmo corpo, são as mesmas células sendo machucadas e reanimadas. Renovo meu contrato com a vida a cada novo personagem.”

“Você pode ler Grande Sertão de muitas maneiras, porque existem vários temas grandiosos ali. O que é a bondade e a maldade? O diabo existe? No final, ele nos diz: o que existe é o homem humano. Todos nós somos bons e maus. Os policiais são bons e maus. Neste última adaptação, a guerra contra o tráfico não pode ser considerada uma guerra menos importante. Ela é tão trágica quanto a guerra de Troia. As pessoas estão morrendo, estão dando o sangue. Os bandidos são bons e maus. É isso que Guimarães Rosa queria dizer com os cangaceiros”.

Trabalhos passados e encantamento com Blandina, de Rancho Fundo

A atriz afirma ser profundamente crítica em relação à sua carreira, embora não considere as participações iniciais em O Auto da Compadecida (2000) e Lisbela e o Prisioneiro (2003) como trabalhos.

“Eu não tinha noção de nada. Foram brincadeiras de quando eu era criança — são participações afetivas. Meu pai e minha mãe [a atriz Virginia Cavendish] estavam trabalhando ali, e não tinha ninguém para ficar comigo. O figurinista colocou uma roupa em mim e me levou para o fundo da cena. Todo mundo que tem criança por perto sabe o trabalho que dá, então era só para ocupar uma criança mesmo”, lembra.

Ela se diz crítica em relação a cada trabalho e afirma acreditar que sempre poderia ter feito melhor. E conta que nem revê trabalhos como o filme A Busca (2013) e séries como Louco por Elas (2012-2013). “Tenho aflição”, comenta.

Mas ela completa: “Não sou budista, mas acredito na ideia de viver o agora. Mesmo assim, aprendi a me assistir porque faz parte do nosso trabalho. Isso angustia, desnorteia, dá tontura, mas é preciso olhar como se fosse outra pessoa”.

Luisa Arraes como a vilã Blandina para a novela 'No Rancho Fundo'. Foto: Fabio Rocha/TV Globo/Divulgação

Questionada sobre projetos que ainda deseje concretizar, Luisa Arraes desconversa. “Não tenho metas a atingir porque eu sou maluca: se eu estipular metas, não vou conseguir dormir”, confessa. E diz que está na fase de agradecer pelo que tem hoje. “Estou encantada com a Blandina (de Rancho Fundo), que é a personificação da personagem feminina complexa. Ela é, ao mesmo tempo, vítima e vilã. É uma beleza interpretar esta personagem feminina complexa, presente em tantas cenas. Eu acordo e agradeço por estar neste momento”, conclui.

Nos últimos anos, Luisa Arraes, 30, tem se firmado como uma artista de destaque em diversas áreas. Na TV, encarna a vilã Blandina de No Rancho Fundo. No teatro, encenou durante anos a peça Grande Sertão: Veredas, baseada em Guimarães Rosa. Após o espetáculo dirigido por Bia Lessa, estrelou duas adaptações cinematográficas ainda inéditas do clássico literário: O Diabo na Rua no Meio do Redemunho, também de Lessa, previsto para agosto, e Grande Sertão, releitura contemporânea e urbana por Guel Arraes — pai de Luisa — que deve estrear em 6 de junho.

Neste momento, ela se encontra em cartaz nos cinemas com Transe, filme de Carolina Jabor e Anne Pinheiro Guimarães. A obra foi realizada durante as manifestações de 2018, quando a juventude progressista buscava frear a ascensão da extrema-direita no País. Nesta mistura entre ficção e documentário, ela interpreta uma atriz de nome Luisa, que se preocupa com os rumos políticos de um país polarizado.

Além disso, foi premiada no Festival do Rio por seu primeiro trabalho como cineasta, no curta-metragem Dependências - que ainda não estreou no circuito comercial e segue sua trajetória em festivais. “Eu estou numa idade em que colho os frutos das minhas iniciativas”, explica Arraes ao Estadão.

Luisa Arraes tem papeis de destaque na televisão, cinema e teatro, além de ter sido premiada por seu primeiro curta como cineasta. Foto: Maria Magalhães/Divulgação

“No começo da carreira, a gente tende a aceitar tudo, mas, com o tempo, as pessoas enxergam os nossos traços. Todos os projetos que estou lançando agora são muito importantes para mim: Transe, Grande Sertão, a novela. Não é sempre que isso acontece. A gente brinca que, com sorte, o artista consegue na vida um trabalho do qual se orgulha. O resto é ralação.”

A atriz carioca explica o processo transformador de sua primeira experiência à frente de um filme. “Uma coisa é você dar pitacos na direção, mas outra coisa é trocar de lado. O curta-metragem foi o que eu tive mais próximo de uma droga pesada. Eu acordava, e era como se eu fosse ter um ataque do coração - da hora que acordava até a hora de dormir. Só dormia de exaustão, porque é muita responsabilidade. Foi um frisson”.

Ela diz ainda que neste meu curta-metragem, tudo o que os atores propunham, ela decidia testar. “Tudo o que vem do outro me interessa. Gosto de processos coletivos. Quando a gente ganhou o prêmio no Festival do Rio, a coisa mais emocionante para mim foi que, quando eu subi no palco, 30 pessoas subiram comigo. Eu não estou ali para assinar nada. Este filme é nosso, e quero que cada um tenha compromisso com o filme, assim como eu.”

Questionada a respeito da relação com cineastas e dramaturgos, ela pondera que há todos os tipos de diretores e que quando começou gostava que lhe dessem direções muito precisas, principalmente, ela diz, por sua “falta de confiança e experiência”.

“Eu sabia obedecer bem, mas não me sentia autônoma, enquanto criadora, para propor coisas. Ganhei este tipo de independência com o teatro. A Bia Lessa, por exemplo, jogava a gente na fogueira. Ela nos dava um texto de dez páginas e falava: ‘Eu quero uma cena em cinco minutos’. Eu pensava: ‘Mas nem vou ter tempo de ler!’, e ela me respondia: ‘Se vira’. Algo neste risco me formou. O mesmo vale para o Transe, porque o risco me amadurece. Cada vez mais eu acredito no ator-criador”.

Antes, eu adorava obedecer, mas agora, amo desobedecer. Isso é importante para a criação artística.

Luisa Arraes

Política em ‘Transe’

No longa-metragem de Jabor e Guimarães em cartaz nos cinemas, três jovens vivem um relacionamento amoroso enquanto questionam a política brasileira fora de suas bolhas de esquerda. Luisa (Luisa Arraes) investe no ativismo das ruas e dos protestos; Johnny (Johnny Massaro) procura respostas na espiritualidade e Ravel (Ravel Andrade) se comunica por meio de canções e performances. Os atores não receberam diálogos, e criaram as cenas junto das diretoras.

“Eu me envolvi desde o início, quando a gente ainda não sabia o que seria. Coloquei muito da minha vida ali, pensando em como eu queria escrever. Transe abriu um portal na minha cabeça: no ano seguinte, eu me inscrevi no mestrado. Ali eu entendi que queria participar dos projetos em diversos níveis”, conta a atriz.

Arraes vai além e diz que gosta de coisas que a fazem pensar que se não estivesse fazendo aquilo morreria. “São balizas que me acalmam. Penso muito no meu papel enquanto artista na sociedade brasileira, que tem a desigualdade como marca principal. Isso me forma para além de outros recortes fundamentais, enquanto mulher branca de classe média. Cresci num país desigual e tenho afetos profundos por pessoas de classes sociais diferentes da minha. Tenho isso na cabeça enquanto artista. Transe fala disso”, declara.

Para ela, existe um “distanciamento trágico entre a classe artística e a política” na época retratada no filme - 2018, quando Bolsonaro foi eleito. “Eu não podia ser uma artista e não saber quem era o governador eleito no meu Estado. Mas eu não sabia quem era o Wilson Witzel, e muita gente não sabe até hoje. Eu aprendi, foi uma porrada. O filme é uma tentativa, no calor do momento, de entender a nossa função naquela época”, explica.

Luisa Arraes estrela 'Transe' ao lado de Johnny Massaro e Ravel Andrade. Foto: Pedro Perdigão/Divulgação

Luisa, no entanto, vê uma mudança entre 2018 e as eleições seguintes - para ela, e com a ajuda do filme. “Lá, a gente queria virar votos de maneira desesperada. Em 2022, não desisti de lutar, pelo contrário, mas tinha interesse cada vez maior em escutar pessoas com opiniões contrárias às minhas, se elas estivessem dispostas a conversar de maneira razoável, é claro.” Por fim, ela diz que “o filme deixou a gente mais velho, mais triste e menos idiota”.

Grande Sertão, uma bíblia

A respeito dos desdobramentos de Grande Sertão, Arraes se sente privilegiada de manter uma relação tão íntima com os personagens de Guimarães Rosa. Ela interpreta Riobaldo no filme dirigido por Bia Lessa, embora tenha vivido Diadorim na adaptação de Guel Arraes.

“Considero Grande Sertão como a minha Bíblia. É um livro inesgotável, que pode dar origem a um milhão de versões. Ele é como a Bíblia mesmo: existe o mundo inteiro neste livro. Já li três vezes, e me lembro da primeira vez, aos 18 anos. Pensei: ‘Isso é muito mais interessante do que viver’. Eu vivia, mas queria mesmo ler. Fazia as minhas coisas e voltava para a leitura. Às vezes eu lia trinta páginas, mas às vezes eu lia cinco frases, parava em uma delas e pensava: ‘Meu Deus, preciso de três dias para decantar isso aqui’”.

Luisa Arraes em 'O Diabo na Rua no Meio do Redemunho'. Foto: ATTi Comunicação / Divulgação

Ela conta que os dois filmes têm linguagens diferentes, mas o Grande Sertão dirigido pelo seu pai também é teatral. “Não é um filme realista. O cinema às vezes tem uma caretice, um compromisso muito chato com a realidade. Na peça, a gente às vezes fazia pássaro, fazia planta. Todo mundo interpretava homem e mulher. Isso ensina muito ao cinema sobre a liberdade da arte e as possibilidades da linguagem. Não é porque estamos num rio caudaloso que precisamos filmar, literalmente, um rio caudaloso. Podemos recriar o rio com os atores fazendo peixes que se tremem”.

Ainda sobre o livro de Guimarães Rosa, ela diz que tem sempre seu exemplar com ela e que cada leitura será diferente - por causa de suas experiências de vida. Se tiver que fazer agora o monólogo da morte dos cavalos, por exemplo, diz que vai ficar em prantos porque seu corpo está acostumado a falar aquelas palavras e chorar. “No Grande Sertão do meu pai, todas as mil apresentações que eu fiz falando este texto estavam dentro de mim, e imprimem no filme de alguma forma. É o mesmo corpo, são as mesmas células sendo machucadas e reanimadas. Renovo meu contrato com a vida a cada novo personagem.”

“Você pode ler Grande Sertão de muitas maneiras, porque existem vários temas grandiosos ali. O que é a bondade e a maldade? O diabo existe? No final, ele nos diz: o que existe é o homem humano. Todos nós somos bons e maus. Os policiais são bons e maus. Neste última adaptação, a guerra contra o tráfico não pode ser considerada uma guerra menos importante. Ela é tão trágica quanto a guerra de Troia. As pessoas estão morrendo, estão dando o sangue. Os bandidos são bons e maus. É isso que Guimarães Rosa queria dizer com os cangaceiros”.

Trabalhos passados e encantamento com Blandina, de Rancho Fundo

A atriz afirma ser profundamente crítica em relação à sua carreira, embora não considere as participações iniciais em O Auto da Compadecida (2000) e Lisbela e o Prisioneiro (2003) como trabalhos.

“Eu não tinha noção de nada. Foram brincadeiras de quando eu era criança — são participações afetivas. Meu pai e minha mãe [a atriz Virginia Cavendish] estavam trabalhando ali, e não tinha ninguém para ficar comigo. O figurinista colocou uma roupa em mim e me levou para o fundo da cena. Todo mundo que tem criança por perto sabe o trabalho que dá, então era só para ocupar uma criança mesmo”, lembra.

Ela se diz crítica em relação a cada trabalho e afirma acreditar que sempre poderia ter feito melhor. E conta que nem revê trabalhos como o filme A Busca (2013) e séries como Louco por Elas (2012-2013). “Tenho aflição”, comenta.

Mas ela completa: “Não sou budista, mas acredito na ideia de viver o agora. Mesmo assim, aprendi a me assistir porque faz parte do nosso trabalho. Isso angustia, desnorteia, dá tontura, mas é preciso olhar como se fosse outra pessoa”.

Luisa Arraes como a vilã Blandina para a novela 'No Rancho Fundo'. Foto: Fabio Rocha/TV Globo/Divulgação

Questionada sobre projetos que ainda deseje concretizar, Luisa Arraes desconversa. “Não tenho metas a atingir porque eu sou maluca: se eu estipular metas, não vou conseguir dormir”, confessa. E diz que está na fase de agradecer pelo que tem hoje. “Estou encantada com a Blandina (de Rancho Fundo), que é a personificação da personagem feminina complexa. Ela é, ao mesmo tempo, vítima e vilã. É uma beleza interpretar esta personagem feminina complexa, presente em tantas cenas. Eu acordo e agradeço por estar neste momento”, conclui.

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