Opinião|Eu e minha branquitude - e como a arte pode transformar também seu criador


A mudança tem que começar em algum lugar. Eu, que estudei nos melhores colégios por ser branco, que entrava em qualquer lugar sem me revistarem e passava diante de policiais sem que nenhum me dissesse ‘mão na cabeça’, comecei por mim

Por Lusa Silvestre

Medida Provisória é um filme de aventura distópica: num futuro próximo, o Congresso Nacional inventa uma lei obrigando os negros a votarem para os países de onde vieram, na África. Estreou no Brasil no Festival do Rio, em 2021, depois de empilhar prêmios internacionais e desafetos nacionais dentro do governo do ex-presidente Valdemort. As pessoas têm muito medo da arte, sabe?

O projeto existia desde 2010 - eu entrei em 2016 e escrevi algumas versões de roteiro em parceria com o Aldri Anunciação (autor da peça que deu origem a tudo), com o Elisio Lopes e com o Lázaro [Ramos]. Seria o primeiro filme dele como diretor. Até então, estava conseguindo me manter anônimo. Porque eu sou louro de olho azul - e o filme trata de racismo. Imaginava que não tinha lugar de fala, por isso mesmo me calei. Nunca tinha sido perseguido por um segurança no supermercado por causa da cor da minha pele. Nunca tinha sido recebido por uma buzina, ao entrar numa loja de roupa, por ter aparência suspeita.

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Aí o filme passou na sessão de gala do Festival, e começou meu deslumbre. A plateia, majoritariamente negra, estava linda de morrer. Turbantes, roupas coloridas, atitude. Presença. Orgulho. Era a primeira vez que eu via o filme à vera, com gente de verdade assistindo - sem ser em screenings privados, sem ser na tela de um computador. Durante a sessão, eu ia percebendo que a mulher do meu lado chorava numa cena, a outra pessoa na fileira de baixo chorava por outro motivo, em outro lugar do filme. A cada minuto, um gatilho diferente. Não era só uma história bem contada. Era uma catarse coletiva.

Taís Araújo e Alfred Enoch em 'Medida Provisória'. Foto: Mariana Vianna/Divulgação

No dia seguinte, de tarde, ia acontecer a sessão do debate. No palco estavam o Lázaro, a Taís [Araújo], o Aldri, o Elísio, todos melaninados. E eu na ponta, quase querendo fugir. O microfone foi andando, de lá para cá. E conforme ia chegando perto de mim, eu ia ficando mais apavorado. Ia ter que falar alguma coisa. Quando finalmente chegou minha vez, eu meio zonzo perguntei alto: “O que eu falo?”. Foi a Taís que me tirou do desespero: “fala de sua branquitude”. Ah, pronto. Disso eu entendo. Sou branco tem cinco décadas. Faço parte do racismo: sou do povo opressor.

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Estudei nos melhores colégios por ser branco. Entrava em qualquer lugar sem me revistarem. Passava diante de policiais e nenhum me dizia “mão na cabeça”. Do alto dos meus privilégios branquelos, eu precisaria falar. Sou de humanas, sou do bem, claro que eu posso ajudar a causa. Mas como? Falar o quê? Os caras já estudavam a sério o assunto enquanto eu assistia o Sítio do Picapau Amarelo. Foi aí que entrou o Aldri. Nos cafés da manhã no hotel, ou no gim-tônica pós-prêmios, ele me contava sobre Afro-Futurismo, Quilombismo e Pan-Africanismo. E eu fui mudando.

Passei a notar se os lugares onde eu ia aceitavam negros, ou se eles estavam lá só servindo mesa. Comecei a sentir um arrepio horroroso cada vez que ouvia algum comentário racista. Encasquetei a corrigir pessoas ao redor, dizendo “ói, isso aí que você falou dá cana, viu?”. Me espantei ao notar que nos Estados Unidos somente 12% da população é negra, e eles já até elegeram presidente. Aqui, os negros são 54% e não podem nem entrar numa loja porque toca a buzina. Voldemort dizia que não havia racismo aqui porque ele tinha amigo negro. Só faltava dizer “até já fui na casa de um deles”.

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Não quero dizer que ajudei a causa, porque fiz pouco: só um filme, e com gente genial ajudando. A coisa demora, não é do dia pra noite. São quinhentos anos de humilhação e invisibilidade. Aliás, aprendi a usar “invisibilizar” - assim, como verbo - graças a outro roteirista negro: Marton Olympio. A mudança tem que começar em algum lugar, e nesse caso comecei por mim mesmo. Medida Provisória é um daqueles casos que a criação mudou o criador.

Medida Provisória é um filme de aventura distópica: num futuro próximo, o Congresso Nacional inventa uma lei obrigando os negros a votarem para os países de onde vieram, na África. Estreou no Brasil no Festival do Rio, em 2021, depois de empilhar prêmios internacionais e desafetos nacionais dentro do governo do ex-presidente Valdemort. As pessoas têm muito medo da arte, sabe?

O projeto existia desde 2010 - eu entrei em 2016 e escrevi algumas versões de roteiro em parceria com o Aldri Anunciação (autor da peça que deu origem a tudo), com o Elisio Lopes e com o Lázaro [Ramos]. Seria o primeiro filme dele como diretor. Até então, estava conseguindo me manter anônimo. Porque eu sou louro de olho azul - e o filme trata de racismo. Imaginava que não tinha lugar de fala, por isso mesmo me calei. Nunca tinha sido perseguido por um segurança no supermercado por causa da cor da minha pele. Nunca tinha sido recebido por uma buzina, ao entrar numa loja de roupa, por ter aparência suspeita.

Aí o filme passou na sessão de gala do Festival, e começou meu deslumbre. A plateia, majoritariamente negra, estava linda de morrer. Turbantes, roupas coloridas, atitude. Presença. Orgulho. Era a primeira vez que eu via o filme à vera, com gente de verdade assistindo - sem ser em screenings privados, sem ser na tela de um computador. Durante a sessão, eu ia percebendo que a mulher do meu lado chorava numa cena, a outra pessoa na fileira de baixo chorava por outro motivo, em outro lugar do filme. A cada minuto, um gatilho diferente. Não era só uma história bem contada. Era uma catarse coletiva.

Taís Araújo e Alfred Enoch em 'Medida Provisória'. Foto: Mariana Vianna/Divulgação

No dia seguinte, de tarde, ia acontecer a sessão do debate. No palco estavam o Lázaro, a Taís [Araújo], o Aldri, o Elísio, todos melaninados. E eu na ponta, quase querendo fugir. O microfone foi andando, de lá para cá. E conforme ia chegando perto de mim, eu ia ficando mais apavorado. Ia ter que falar alguma coisa. Quando finalmente chegou minha vez, eu meio zonzo perguntei alto: “O que eu falo?”. Foi a Taís que me tirou do desespero: “fala de sua branquitude”. Ah, pronto. Disso eu entendo. Sou branco tem cinco décadas. Faço parte do racismo: sou do povo opressor.

Estudei nos melhores colégios por ser branco. Entrava em qualquer lugar sem me revistarem. Passava diante de policiais e nenhum me dizia “mão na cabeça”. Do alto dos meus privilégios branquelos, eu precisaria falar. Sou de humanas, sou do bem, claro que eu posso ajudar a causa. Mas como? Falar o quê? Os caras já estudavam a sério o assunto enquanto eu assistia o Sítio do Picapau Amarelo. Foi aí que entrou o Aldri. Nos cafés da manhã no hotel, ou no gim-tônica pós-prêmios, ele me contava sobre Afro-Futurismo, Quilombismo e Pan-Africanismo. E eu fui mudando.

Passei a notar se os lugares onde eu ia aceitavam negros, ou se eles estavam lá só servindo mesa. Comecei a sentir um arrepio horroroso cada vez que ouvia algum comentário racista. Encasquetei a corrigir pessoas ao redor, dizendo “ói, isso aí que você falou dá cana, viu?”. Me espantei ao notar que nos Estados Unidos somente 12% da população é negra, e eles já até elegeram presidente. Aqui, os negros são 54% e não podem nem entrar numa loja porque toca a buzina. Voldemort dizia que não havia racismo aqui porque ele tinha amigo negro. Só faltava dizer “até já fui na casa de um deles”.

Não quero dizer que ajudei a causa, porque fiz pouco: só um filme, e com gente genial ajudando. A coisa demora, não é do dia pra noite. São quinhentos anos de humilhação e invisibilidade. Aliás, aprendi a usar “invisibilizar” - assim, como verbo - graças a outro roteirista negro: Marton Olympio. A mudança tem que começar em algum lugar, e nesse caso comecei por mim mesmo. Medida Provisória é um daqueles casos que a criação mudou o criador.

Medida Provisória é um filme de aventura distópica: num futuro próximo, o Congresso Nacional inventa uma lei obrigando os negros a votarem para os países de onde vieram, na África. Estreou no Brasil no Festival do Rio, em 2021, depois de empilhar prêmios internacionais e desafetos nacionais dentro do governo do ex-presidente Valdemort. As pessoas têm muito medo da arte, sabe?

O projeto existia desde 2010 - eu entrei em 2016 e escrevi algumas versões de roteiro em parceria com o Aldri Anunciação (autor da peça que deu origem a tudo), com o Elisio Lopes e com o Lázaro [Ramos]. Seria o primeiro filme dele como diretor. Até então, estava conseguindo me manter anônimo. Porque eu sou louro de olho azul - e o filme trata de racismo. Imaginava que não tinha lugar de fala, por isso mesmo me calei. Nunca tinha sido perseguido por um segurança no supermercado por causa da cor da minha pele. Nunca tinha sido recebido por uma buzina, ao entrar numa loja de roupa, por ter aparência suspeita.

Aí o filme passou na sessão de gala do Festival, e começou meu deslumbre. A plateia, majoritariamente negra, estava linda de morrer. Turbantes, roupas coloridas, atitude. Presença. Orgulho. Era a primeira vez que eu via o filme à vera, com gente de verdade assistindo - sem ser em screenings privados, sem ser na tela de um computador. Durante a sessão, eu ia percebendo que a mulher do meu lado chorava numa cena, a outra pessoa na fileira de baixo chorava por outro motivo, em outro lugar do filme. A cada minuto, um gatilho diferente. Não era só uma história bem contada. Era uma catarse coletiva.

Taís Araújo e Alfred Enoch em 'Medida Provisória'. Foto: Mariana Vianna/Divulgação

No dia seguinte, de tarde, ia acontecer a sessão do debate. No palco estavam o Lázaro, a Taís [Araújo], o Aldri, o Elísio, todos melaninados. E eu na ponta, quase querendo fugir. O microfone foi andando, de lá para cá. E conforme ia chegando perto de mim, eu ia ficando mais apavorado. Ia ter que falar alguma coisa. Quando finalmente chegou minha vez, eu meio zonzo perguntei alto: “O que eu falo?”. Foi a Taís que me tirou do desespero: “fala de sua branquitude”. Ah, pronto. Disso eu entendo. Sou branco tem cinco décadas. Faço parte do racismo: sou do povo opressor.

Estudei nos melhores colégios por ser branco. Entrava em qualquer lugar sem me revistarem. Passava diante de policiais e nenhum me dizia “mão na cabeça”. Do alto dos meus privilégios branquelos, eu precisaria falar. Sou de humanas, sou do bem, claro que eu posso ajudar a causa. Mas como? Falar o quê? Os caras já estudavam a sério o assunto enquanto eu assistia o Sítio do Picapau Amarelo. Foi aí que entrou o Aldri. Nos cafés da manhã no hotel, ou no gim-tônica pós-prêmios, ele me contava sobre Afro-Futurismo, Quilombismo e Pan-Africanismo. E eu fui mudando.

Passei a notar se os lugares onde eu ia aceitavam negros, ou se eles estavam lá só servindo mesa. Comecei a sentir um arrepio horroroso cada vez que ouvia algum comentário racista. Encasquetei a corrigir pessoas ao redor, dizendo “ói, isso aí que você falou dá cana, viu?”. Me espantei ao notar que nos Estados Unidos somente 12% da população é negra, e eles já até elegeram presidente. Aqui, os negros são 54% e não podem nem entrar numa loja porque toca a buzina. Voldemort dizia que não havia racismo aqui porque ele tinha amigo negro. Só faltava dizer “até já fui na casa de um deles”.

Não quero dizer que ajudei a causa, porque fiz pouco: só um filme, e com gente genial ajudando. A coisa demora, não é do dia pra noite. São quinhentos anos de humilhação e invisibilidade. Aliás, aprendi a usar “invisibilizar” - assim, como verbo - graças a outro roteirista negro: Marton Olympio. A mudança tem que começar em algum lugar, e nesse caso comecei por mim mesmo. Medida Provisória é um daqueles casos que a criação mudou o criador.

Medida Provisória é um filme de aventura distópica: num futuro próximo, o Congresso Nacional inventa uma lei obrigando os negros a votarem para os países de onde vieram, na África. Estreou no Brasil no Festival do Rio, em 2021, depois de empilhar prêmios internacionais e desafetos nacionais dentro do governo do ex-presidente Valdemort. As pessoas têm muito medo da arte, sabe?

O projeto existia desde 2010 - eu entrei em 2016 e escrevi algumas versões de roteiro em parceria com o Aldri Anunciação (autor da peça que deu origem a tudo), com o Elisio Lopes e com o Lázaro [Ramos]. Seria o primeiro filme dele como diretor. Até então, estava conseguindo me manter anônimo. Porque eu sou louro de olho azul - e o filme trata de racismo. Imaginava que não tinha lugar de fala, por isso mesmo me calei. Nunca tinha sido perseguido por um segurança no supermercado por causa da cor da minha pele. Nunca tinha sido recebido por uma buzina, ao entrar numa loja de roupa, por ter aparência suspeita.

Aí o filme passou na sessão de gala do Festival, e começou meu deslumbre. A plateia, majoritariamente negra, estava linda de morrer. Turbantes, roupas coloridas, atitude. Presença. Orgulho. Era a primeira vez que eu via o filme à vera, com gente de verdade assistindo - sem ser em screenings privados, sem ser na tela de um computador. Durante a sessão, eu ia percebendo que a mulher do meu lado chorava numa cena, a outra pessoa na fileira de baixo chorava por outro motivo, em outro lugar do filme. A cada minuto, um gatilho diferente. Não era só uma história bem contada. Era uma catarse coletiva.

Taís Araújo e Alfred Enoch em 'Medida Provisória'. Foto: Mariana Vianna/Divulgação

No dia seguinte, de tarde, ia acontecer a sessão do debate. No palco estavam o Lázaro, a Taís [Araújo], o Aldri, o Elísio, todos melaninados. E eu na ponta, quase querendo fugir. O microfone foi andando, de lá para cá. E conforme ia chegando perto de mim, eu ia ficando mais apavorado. Ia ter que falar alguma coisa. Quando finalmente chegou minha vez, eu meio zonzo perguntei alto: “O que eu falo?”. Foi a Taís que me tirou do desespero: “fala de sua branquitude”. Ah, pronto. Disso eu entendo. Sou branco tem cinco décadas. Faço parte do racismo: sou do povo opressor.

Estudei nos melhores colégios por ser branco. Entrava em qualquer lugar sem me revistarem. Passava diante de policiais e nenhum me dizia “mão na cabeça”. Do alto dos meus privilégios branquelos, eu precisaria falar. Sou de humanas, sou do bem, claro que eu posso ajudar a causa. Mas como? Falar o quê? Os caras já estudavam a sério o assunto enquanto eu assistia o Sítio do Picapau Amarelo. Foi aí que entrou o Aldri. Nos cafés da manhã no hotel, ou no gim-tônica pós-prêmios, ele me contava sobre Afro-Futurismo, Quilombismo e Pan-Africanismo. E eu fui mudando.

Passei a notar se os lugares onde eu ia aceitavam negros, ou se eles estavam lá só servindo mesa. Comecei a sentir um arrepio horroroso cada vez que ouvia algum comentário racista. Encasquetei a corrigir pessoas ao redor, dizendo “ói, isso aí que você falou dá cana, viu?”. Me espantei ao notar que nos Estados Unidos somente 12% da população é negra, e eles já até elegeram presidente. Aqui, os negros são 54% e não podem nem entrar numa loja porque toca a buzina. Voldemort dizia que não havia racismo aqui porque ele tinha amigo negro. Só faltava dizer “até já fui na casa de um deles”.

Não quero dizer que ajudei a causa, porque fiz pouco: só um filme, e com gente genial ajudando. A coisa demora, não é do dia pra noite. São quinhentos anos de humilhação e invisibilidade. Aliás, aprendi a usar “invisibilizar” - assim, como verbo - graças a outro roteirista negro: Marton Olympio. A mudança tem que começar em algum lugar, e nesse caso comecei por mim mesmo. Medida Provisória é um daqueles casos que a criação mudou o criador.

Opinião por Lusa Silvestre

Roteirista dos filmes 'Estômago', 'O Roubo da Taça', 'Medida Provisória' e 'Sequestro do Voo 375'.

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