A diretora Agnieszka Holland, presidente da Academia de Cinema Europeu, criticou o Festival de Cannes por incluir um participante russo em sua principal mostra competitiva neste ano. Zhena Chaikovskogo ('Tchaikovsky's Wife', em inglês, e 'A Esposa de Tchaikovsky', em tradução livre em português), que foi exibido na quarta-feira, 18, e é um dos 21 filmes na disputa pela Palma de Ouro, foi dirigido por Kirill Serebrennikov e financiado pelo controverso oligarca russo Roman Abramovich, junto a investidores suíços e franceses.
"Se dependesse de mim, eu não incluiria filmes russos na programação oficial do festival - mesmo que Kirill Serebrennikov seja um artista tão talentoso", disse Holland. A cineasta de 73 anos, cujo drama sobre o holocausto Europa Europa, de 1990, foi indicado para um Oscar, estava falando em um evento de mesa redonda em apoio a cineastas ucranianos, conforme reportado pela Variety. De Cannes, em uma entrevista por telefone com o The Washington Post, Holland explicou a sua posição. "Não significa que eu queira cancelar a cultura russa como um todo", disse. "Eu apenas acho que não é o momento ideal para ir ao tapete vermelho e celebrar filmes feitos na Rússia, com dinheiro russo". Enquanto alguns defendem Serebrennikov, chamando-o de artista dissidente, Holland não acredita que seja algo tão simples, ao menos não para um artista parcialmente financiado por um oligarca. "É muito difícil fazer a distinção e dizer: 'esse é um bom russo e aquele é um mau russo' porque os filmes são feitos por dinheiro, e o dinheiro não é tão nobre quanto gostaríamos".
As observações de Holland são parte de um debate em andamento a respeito das sanções contra a Rússia, e vem após outras instituições culturais terem cancelado aparições de artistas russos. Na terça, 17, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky falou por chamada de vídeo na cerimônia de abertura do festival. Na sexta, 20, uma mulher invadiu o tapete vermelho para protestar contra crimes de guerra russo, com a mensagem "parem de nos estuprar" escrita em seus seios, sobre uma pintura corporal azul e amarela. E outro filme em exibição em Cannes, The Natural History of Destruction, de Sergei Loznitsa, gerou controvérsia pelo fato de o diretor ucraniano ter sido expulso da Academia de Cinema Ucraniana por não apoiar o boicote a todos os filmes russos.
Em resposta à guerra, Cannes barrou uma delegação oficial da Rússia de comparecer ao festival. Mas eles convidaram Serebrennikov, que se posicionou publicamente contra a guerra na Ucrânia, a invasão da Rússia à Crimeia, em 2014, e aos ataques do governo russo aos direitos LGBTQ+, e foi recentemente exilado na Alemanha. Seguindo a estreia de Zhena Chaikovskogo, Serebrennikov disse "não à guerra" e clamou por um fim ao boicote cultural contra artistas russos, acrescentando que a "cultura é ar. é água e é nuvem, então é algo totalmente independente de nacionalidade". Serebrennikov também falou em defesa de Abramovich, 55, que foi dono do Chelsea Football Club e apareceu em negociações de paz entre a Rússia e a Ucrânia. Apesar de Abramovich negar ter laços financeiros com Putin, o governo britânico colocou sanções nele, citando benefícios financeiros que recebeu do governo russo e seu "relacionamento próximo" a Putin "por décadas". "Nós temos que suspender as sanções contra Abramovich", disse Serebrennikov. "Ele tem sido um verdadeiro patrono das artes, e na Rússia isso sempre foi apreciado".
Holland expressou seu desapontamento com Serebrennikov em Cannes. "Infelizmente, meus maus pressentimentos foram confirmados por suas palavras", disse ela, enfatizando que ele tentou equiparar a dor dos soldados russo à dos resistentes ucranianos. "Eu não daria uma chance dessas a ele neste momento". Os organizadores do festival defendem sua decisão por incluir Zhena Chaikovskogo apontando que sua história, que explora o casamento e a homossexualidade do compositor - algo que o governo russo por muito tempo tentou esconder - vai contra as narrativas estatais russas. Eles também notaram que o filme foi feito antes da invasão russa, apesar de membros da delegação ucraniana em Cannes terem afirmado que as gravações podem ter se estendido até a primavera. Holland, que preside a Academia de Cinema Europeu - que recentemente baniu todos os filmes russos do European Film Awards - tomou uma visão mais ampla, dizendo que toda a exportação cultural russa, mesmo os clássicos do século 18, precisam ser reavaliados, ao despertar do que ela chama de "agressão imperialista russa".
Holland tem sua própria história com a Rússia. Nascida na Polônia, em 1948, no início do regime comunista, ela passou algum tempo na prisão por seu envolvimento nos protestos da Primavera de Praga em 1968 - fortemente repreendidos pelas forças soviéticas. Posteriormente, ela fugiu da Polônia para a França, em 1981. Seu filme Mr. Jones, lançado em 2020, foi baseado em uma história real de um jornalista galês que descobriu a fome intencional da Ucrânia feita por Joseph Stalin nos anos 1930, conhecida como Holodomor. O Festival de Cinema de Cannes, que se estende até 28 de maio, inclui a estreia de Mariupolis 2, um documentário do cineasta lituano Mantas Kvedaravicius, morto por soldados russos enquanto filmava na cidade ucraniana sitiada de Mariupol. Durante o sábado, o dia inteiro do festival foi dedicado ao cinema ucraniano.
Para Holland, as atuais circunstâncias da Europa tem criado uma estranha atmosfera em Cannes. "Nós temos o discurso de Zelensky, e depois temos algum filme de humor sobre matar zumbis", contou Holland ao The Post." No meu júri, há uma jovem diretora ucraniana cujo marido está no exército. E ela está aqui. Mas o tempo todo ela está falando com ele ao telefone, tentando descobrir se ele está vivo." "Está tudo misturado junto. É muito estranho, muito surreal".